• Nenhum resultado encontrado

São Bernardo teve de se separar da família quando completou oito anos, pois já era tempo de ser enviado à escola para receber educação apropriada a um nobre. Na França do século XII, aqui e ali haviam surgido escolas cujas lições se davam a partir da tutela de bispos. Em Reims, Chartres, Tours, Poitiers, Mans e Auxerre foram estabelecidas grandes escolas-catedrais e, por mais que anteriormente tenha sido vacilante a sorte da civilização carolíngia, nelas o currículo de estudos do Trivium e do Quadrivium havia se tornado fixo e tradicional. Meio século antes do nascimento de São Bernardo, relembremos, o ensino havia saído do campo, da guarda dos mosteiros, e se instalado nas grandes cidades.

De todos os irmãos, parece que ele foi o único a frequentar a escola pública.119 Todos, entretanto, em virtude da nobre descendência, possivelmente tivessem noções do vernáculo da região, a língua romance, e do latim. Se crermos no testemunho de Pedro Berengário de Poitiers, apologista de Pedro Abelardo e seu implacável opositor, não feriremos a história ao supor que seus irmãos também possuíssem algumas noções de literatura, pois, quando jovens, disse Berengário em tom de chiste, brincavam de passatempos poéticos. Bartolomeu, ademais, possuía fama de grande admirador de Gregório Magno, e Gerardo aparece como signatário de alguns documentos em latim.120

Tescelino e Alice dispunham de um bom número de escolas célebres na França para as quais poderiam enviar São Bernardo. Escolheram, a despeito da conceituada Saint-Benigne em Dijon, consignar a educação do filho aos cônegos da também

119

LUDDY, [s/d],. p. 17.

120

46 célebre Saint-Vorles, em Chatillon-sur-Seine, distante setenta quilômetros de Fontaine-lès-Dijon. Ephelge Vacandard sugere que a escolha de Saint Vorles deu- se, para além da elevada reputação da escola, em virtude de ser Chatillon-sur-Seine a cidade natal de Tescelino, como vimos, e de abrigar, ademais, um dos castelos da família.121 Lá, São Bernardo, aos cuidados de parentes, dedicar-se-ia aos estudos sem as distrações que a familiaridade poderia trazer, ao passo que estaria disponível para receber as visitas de sua mãe, quando necessário, no castelo da família.

Pouca coisa existe a indicar o conteúdo formal ensinado pela escola, mas é provável que, do Quadrivium, o jovem não tenha adquirido noções para além das elementares. Do Trivium, ao invés, testemunha a favor da intimidade que possuía com as letras os excertos que traremos à baila em toda a nossa dissertação. Ninguém que se ponha minimamente familiarizado com suas obras duvidará de que possuía um enorme domínio da Retórica e da Gramática.

São Bernardo frequentou com estima122 clássicos latinos como Cícero (106 a.C.- 43 d.C.),123 Boécio, Horácio (65 a. C.- 8 d. C.),124 Lucano (39-65), Estácio (c.45 - c.95), Virgílio (70-19 a. C.) e Ovídio (43-18 a. C.) quando jovem. São copiosas nos tratados, cartas e sermões as apropriações de versículos das Sagradas Escrituras, e raríssimas as vezes, ao invés, nas quais se dedica à citação de algum texto profano, em que pese certamente os objetivos pontuais – teológicos e morais – de seus escritos. É digno de admiração e estudo posterior, por conta disso, vê-lo prescindivelmente citar em sua Apologia um verso do satírico Pérsio,125 em duas cartas comparar a dificuldade que é reaver para a Igreja suas posses das mãos dos laicos à penosa tentativa de arrancar a clava da mão de Hércules126 e, em outras tantas, citar dois conhecidos trechos de Virgílio, um da Eneida127 e outro de suas

121

VACANDARD, 1910, p. 11. COLOMBÁS, 1993, p. 107, também ressoa a afirmação, advinda de Ferrucio Castaldelli.

122

COLOMBÁS, 1993, p. 108.

123

Cujas influência em algumas de suas noções sobre o amor, a amizade e a benevolência não podem ser negadas (GILSON, 1940, p.10).

124

O amor profano de Ovídio certamente era proibido nos mosteiros, mas as sátiras de Horácio, Pérsio e Juvenal ainda eram de uso para os que desprezavam o mundo. (GILSON, 1940, p. 8)

125

Saturae II,69, em SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1983a, p. 289.

126

Carta 180 ao Papa Inocêncio II (1144) e Carta 227 ao bispo de Soissons (1143), em SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1990, p. 607; 719.

127

Aeneida II,49, na carta 129 aos genoveses (1134), em SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1990, p. 487.

47

Bucólicas;128 quatro de Ovídio, seu preferido: um verso das Heroides129, dois de

Remedia Amoris,130 e um trecho da Epistola ex Ponto – este, inclusive, no De

Consideratione.131 Foi este elegíaco que, ademais, Pedro Berengário de Poitiers o acusou de imitar em versos profanos,132 tamanha familiaridade de São Bernardo com o lirismo ovidiano.133 Advertiu ele, inclusive, que os escritos de São Bernardo deram-lhe grande fama, mas que se seus leitores tivessem visto suas cantilenas, ririam de sua pobreza de estilo. Berengário foi ácido, mas não se pode levar a sério essa parte de sua apologia, tanto porque São Bernardo era jovem quando as escreveu, quanto porque a defesa que fazia de Pedro Abelardo beirava muitas vezes o desenfreio.

São Bernardo era muito tímido e pensativo, como disse Guilherme de São Teodorico,134 de modo que no que dissesse respeito ao conteúdo de seus estudos, tudo o que fazia tinha por razão cultivar o amor pelo estudo das Sagradas Escrituras. A maior parte de suas obras, com efeito, dedicavam-se a falar de e com a Escritura. São Bernardo não foi exegeta no sentido moderno da palavra, mas também não foi um comentador no sentido medieval.135 Explicava, mas aplicava a Escritura em seus ensinamentos.

São Bernardo terminou seus estudos em meio ao escolasticismo, que mais tarde iria combater, de mestres como Roscelino de Compiègne, Guilherme de Champeaux (que se tornou seu amigo) e, como não dizer, principalmente de Pedro Abelardo. Quando Bernardo contava vinte anos, o nominalismo de Roscelino e o realismo de Guilherme, entre farpas e polêmicas, já haviam saído de cena em virtude mesmo da pertinácia e energia de Pedro Abelardo em defender sua tese conceitualista sobre a

128

Eclogae II, 17-18, na carta 412 a um discípulo, em SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1990, p. 1161.

129

Heroides I,11, na carta 74 a Rainaldo, abade de Foigny (entre 1125 e 1131), em SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1990, p. 283.

130

Remedia Amoris, 91-92, na carta 191 ao Papa Inocêncio II, em SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1990, p. 635.

131

Epistola ex Ponto I 3,17, em SAN BERNARDO DE CLARAVAL, 1994a, p. 155.

132

BERENGARII SCHOLASTICI APOLOGETICUS, Contra beatum Bernardum Claraevallensem

abbatem, et alios qui condemnaverunt Petrum Abaelardum.

133

São Bernardo renunciou a Ovídio, e às letras latinas quando entrou em Cister (GILSON, 1940, p. 8). Certamente, tendo por base essa dispensa obrigatória foi que Pedro Berengário de Poitiers o tentou causticar relembrando esse passado não muito distante.

134

GUILLELMO SANCTI THEODERICI, S. Bernardi vita et res gestae libris septem comprehensae Livro 1.II.5.

135

48 querela dos universais. Pondo-se abertamente contra a posição de seus antigos mestres, Abelardo atraiu a si os olhares do século. O reinado de Aristóteles principiara-se no Cristianismo,136 mas para um agostiniano como Bernardo de Claraval, altercar contra as intromissões e silogismos dos seguidores do Estagirita nos domínios da doutrina, quer em Concílios quer em tratados e correspondências, não era mais que sua obrigação de cristão.