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II. SOCIEDADE, TRABALHO, CORPORALIDADE E NOVAS

2.4 A Educação Física frente às novas tecnologias

A reestruturação do capital impôs ao mundo do trabalho uma nova tutela – o paradigma da flexibilidade – ocasionando um impacto a este por conta da introdução das inovações tecnológicas e organizacionais aos processos de trabalho. Conseqüentemente, esse impacto também engendrou uma série de repercussões na instituição escolar. Porém, para não sairmos do foco em questão, pontuaremos alguns aspectos dessas novas exigências

educacionais, pela ótica da disciplina e/ou componente curricular Educação Física46, responsável na escola pela educação do corpo.

O trabalho como ordenador da sociedade constitui-se no princípio educativo conforme a acepção marxiana, aprofundada a posteriori por A. Gramsci. A Educação Física, ao longo de sua trajetória histórica, sempre apresentou claramente esse vínculo com o trabalho.

Embora partam de enfoques distintos, as reflexões desenvolvidas por Bracht (1992, 2001), Lenharo (1986), Taborda de Oliveira (2003), Soares (2001) tornam possível constatar as “roupagens” que a Educação Física assumiu – no bojo do movimento da educação –, articulada ora ao ideário médico-higienista, transitando pelas aspirações eugênicas, incorporando o discurso da preparação para o trabalho, ora vinculada ao esporte, à promoção da saúde, etc. Em todas essas perspectivas, a ligação com a manutenção da força de trabalho era evidente. Será que ela já cumpriu efetivamente esse propósito?

Conforme V. Bracht as funções sociais47 da Educação Física são:

Compensatória, na medida em que a Educação Física colabora para

compensar a insatisfação e alienação do trabalho intelectual em sala de aula. Uma atividade que compensa o desgaste na atividade séria e a implacável materialização do mundo contemporâneo (coisificação das relações humanas).

Utilitarista porque prepara para o trabalho (aptidão física e habilidades

motoras), ao mesmo tempo que prepara o indivíduo para uma atividade que tem a função de recuperar a força de trabalho.

Moralista porque é uma atividade que ajuda a suportar a disciplina e as

imposições obrigatórias da vida social, pela ocupação do tempo livre em atividades equilibradas, socialmente aceitas e moralmente corretas [...] (BRACHT, 1992, p. 45 Grifos do Autor).

Essa classificação está agregada à Educação Física numa vertente heterônoma que, segundo a crítica de Bracht (1992)48, é um dos modelos de legitimação da Educação física, cuja referência básica para a sua função social é o atendimento das demandas produtivas do mundo do trabalho.

46

O nosso entendimento sobre essa disciplina corrobora com a definição de Soares et al (1992), segundo a qual a Educação Física trata, na escola, dos conhecimentos referentes à cultura corporal: jogo, ginástica, esporte, danças e lutas.

47

Tais funções foram baseadas na classificação acerca do lazer, desenvolvida por: MARCELINO, N. C. Lazer e

educação. Campinas, SP: Papirus, 1987. Esse autor foi citado por Bracht (1992).

48

Valter Bracht (1992), centra sua análise da Educação Física no âmbito escolar, relacionando -a aos problemas pedagógicos. Contudo, a perspectiva heterônoma por ele assinalada e questionada parece ressurgir sob novas bases, no que tange à predominância do discurso que afirma a necessidade de implementação de políticas para o corpo no mundo do trabalho. É nesse plano que emergem com certo vigor os apelos em favor da Ginástica Laboral.

E hoje, será que a Educação Física escolar mantém esse elo com a necessidade de incrementar a produtividade da força de trabalho? O próprio V. Bracht volta a analisar essa situação, chegando a afirmar que a justificativa dessa disciplina curricular torna-se difícil de defender porque no contexto das novas tecnologias “[...] a aptidão física é cada vez menos importante como determinante para a produtividade no trabalho” (BRACHT, 2001, p. 73).

O que então está destinado ao componente manual na escola, se a Educação Física – denominação que indica sua limitação e ao mesmo tempo sua estreita relação com o corpo, o físico, o manual – não prepara para o trabalho os corpos dos sujeitos que freqüentam a escola? O componente intelectual pode prescindir do componente manual? Vejamos que há uma certa precipitação na afirmação sobre a diminuição da importância da aptidão física na produtividade, pois, mesmo nos postos de trabalho caracterizados por uma maior exploração do componente intelectual, não se negligenciam os atributos físicos.

Os trabalhos considerados mais intelectualizados requerem de alguma forma ações corporais. Considerando a Gerente Administrativa da empresa analisada, ela pode não realizar movimentos repetitivos como uma costureira na linha de produção, mas há um desgaste do seu ser social em sua totalidade ao final da sua jornada de trabalho. A carga psíquica inerente às atividades desta função também reflete em seu corpo49.

O discurso da saúde e do cultivo de hábitos saudáveis que hoje invade o mundo do trabalho parte do entendimento expresso abaixo:

A aptidão ou condição física é conhecida, vulgarmente, pela famosa boa

forma e corresponde à capacidade de desempenhar e resistir, sem fadiga

excessiva, a ações diversas (como tarefas profissionais, ocupações diárias, de lazer, imprevistos...) que implicam esforço físico. De maneira geral, a aptidão física seria traduzida pela capacidade de executar as mais variadas tarefas com vigor, vivacidade, entusiasmo, alegria e prontidão (DELLA FONTE, 1996, p. 38 Grifos da Autora).

Até mesmo nos postos de trabalho cuja qualificação incide predominantemente sobre a exploração do componente intelectual, vigor, vivacidade, entusiasmo, alegria e prontidão serão qualidades essenciais. O ponto sobre a legitimidade da Educação Física que nos preocupa, embora não seja o nosso interesse principal de análise, permite-nos deduzir que a aptidão física tem relevância na produtividade, tanto nos trabalhos que exigem mais o componente manual, quanto nos que requerem o componente intelectual. Se a Educação Física na escola não cumpre e/ou assume esse papel utilitarista, esta é outra questão.

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A Ginástica Laboral não fazia parte da rotina diária dos trabalhadores lotados no setor administrativo da empresa X.

Isso para não mencionarmos que a flexibilidade acaba por exigir a boa aparência como um atributo necessário – principalmente no setor de serviços –, criando novos sentidos às atividades que o trabalhador desenvolve no tempo liberado do trabalho. Assim

também o lazer do trabalhador se modifica, pois o seu tempo livre é cada vez mais utilizado em atividades que visam incrementar seus atributos qualificacionais e/ou reconstituí-los. Não só proliferam as academias de ginástica onde se busca exercitar o físico cada vez menos solicitado50 nos locais de trabalho, mas também enquadrá-lo dentro de um modelo estético padronizado [...] (BRUNO, 1995, p. 96).

Conforme Bracht (1992), a Educação Física deveria ter como aporte referencial o mundo do não-trabalho, dentro do que ele denomina de perspectiva autônoma. No entanto, a referência sugerida também é afetada pela dinâmica do mundo do trabalho, haja vista que “[...] a um trabalho empobrecedor está ligado um lazer também empobrecedor e vice-versa” (MARCELLINO, 1996, p. 15).

Depreende-se que na realidade o corpo mantém sua hegemonia, seja como objeto de exploração essencial ao processo produtivo, seja como objeto de consumo. A esse respeito é contundente a reflexão a seguir ao demonstrar que

[...] as estruturas actuais [sic] da produção/consumo induzem no sujeito uma dupla prática, conexa com a representação desunida (mas profundamente solidária) do seu próprio corpo: o corpo como capital e como feitiço (ou objecto [sic] de consumo. Em ambos os casos, é necessário que o corpo, longe de ser negado ou omitido, se invista (tanto no sentido econômico [sic] como na acepção psíquica do termo) com toda determinação (BAUDRILLARD, 1995, p. 137 Grifos do Autor).

Poderíamos fazer uma pequena mudança às considerações de Eagleton (1998), dizendo que os corpos, sejam eles libidinosos (fetiche) ou laboriosos (capital) estão in51.

Os corpos como “embalagem” da mercadoria peculiar força de trabalho não perdem sua importância no atual contexto do mundo do trabalho, pois são de extrema necessidade para a acumulação de capital. Não esqueçamos que o corpo/força de trabalho é capital, ou melhor, a parte variável deste. Por conseguinte, sobre ele recaem investimentos a fim de assegurar o bom funcionamento dessa “coisa”. Tais investimentos são injetados num momento em que se fala de superação do trabalho manual a partir dos avanços conquistados

50

Esse não era o caso dos trabalhadores da produção que trabalhavam na empresa X; pelo contrário, o físico era muito solicitado.

51

Segundo Eagleton (1998, p. 74), “para a nova somatologia, nenhum corpo velho serve. Se o corpo libidinoso está in, o corpo laborioso está out”.

nas diversas áreas das ciências e sua aplicação no mundo do trabalho. É nesse alvo que incide a aplicação da Ginástica Laboral, representando um tipo de intervenção na corporalidade dos trabalhadores.

Enquanto o componente intelectual do trabalho sobrepõe-se relativamente ao componente manual, a escola organizada pela base material da sociedade vem modificando o sentido e a importância da Educação Física em seu seio. Nesses termos fica claro, no que concerne à preparação do trabalhador, que o componente intelectual tem uma certa autonomia, podendo prescindir dessa disciplina curricular, sendo a sua presença questionável sob o ponto de vista pedagógico e injustificável sob o prisma pragmático utilitário que outrora a sustentava.

Então, qual o lugar e papéis destinados à Educação Física diante das novas tecnologias? Educar para os momentos de trabalho ou de não-trabalho? Ressaltamos que não temos a pretensão de responder aos questionamentos enunciados, haja vista a pouca coerência em tomar precipitadamente uma solução para um problema complexo, além de não ser o propósito desta pesquisa.

Apenas concordamos que na escola a educação do corpo através da Educação Física deveria considerar importante que os sujeitos se apropriem das práticas corporais construídas historicamente.

A esse respeito concordamos que

[...] é preciso considerar a educação estética ou da sensibilidade como elemento importante do que poderíamos chamar de criticidade [...] Isso significa que a recuperação do corpo como sujeito pode fazer com que reformulemos o nosso conceito de criticidade, ampliemos o nosso conceito de razão, englobando as dimensões estéticas e éticas (BRACHT, 2001, p. 77).

As dimensões estéticas e éticas fazem parte da cultura corporal de movimento, por isso, a recuperação do corpo pode estar “[...] na sua capacidade de transformar a si próprio durante o processo de transformar os corpos materiais à sua volta” (EAGLETON, 1998, p. 75). Enquanto essa transformação de si não ocorre dentro de uma perspectiva emancipatória, a natureza (corpo inorgânico) que nos circunda continuará a ser modificada pelo que nos distingue dela, a saber, atividade da consciência e vontade, mas sob a constituição de uma corporalidade reificada.

Prescindir da Educação Física escolar não significa abolir a necessidade de uma educação corporal. O corpo, ainda que não seja preparado na escola para atender às demandas do mundo do trabalho, constitui-se em fator essencial ao processo produtivo.

Portanto, as próprias empresas – que não abrem mão do fornecimento de uma educação do corpo – estão cuidando do componente manual do trabalho que recebe os cuidados devidos através da implantação dos programas de Ginástica Laboral, a fim de atenuar os males ocasionados por ações motoras repetitivas, posturas incorretas e demais fatores estressores do trabalho.

Confirmando que mesmo sob a vigência do capital financeiro não se pode eliminar o trabalho vivo52, pois o capital que se amplia valoriza-se e se reproduz nessa esfera, ainda é gestado na produção (CHESNAIS, 1996; NETTO; BRAZ, 2007).

Sendo assim, o ato de produzir remete necessariamente ao emprego da força de trabalho, portanto à exploração de quem precisa vender essa mercadoria peculiar. Quando pensamos em força de trabalho, irremediavelmente estamos falando de um ser social, cuja corporalidade através da manifestação alienada de sua atividade essencialmente humana – o trabalho – constitui-se numa das engrenagens essenciais ao processo de produção capitalista e ao ciclo de expansão do capital.