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No mesmo artigo,59 Abade (1942, p. 14) utiliza outras idéias de Rousseau. Por exemplo:

Hoje, não mais se considera a criança como sendo um homúnculo, isto é, um homem em miniatura ou em proporções reduzidas. Pelo contrário, ela constitui um tipo especial, quer quanto por sua natureza física, quer por sua natureza de ordem espiritual.

A diferenciação entre homem e criança é uma das idéias mais conhecidas de Rousseau. Em Emílio, essa idéia está presente em várias partes da obra, pois, segundo o próprio autor, o que se pretendeu foi discutir a parte mais difícil de toda educação e que os tratados da época negligenciaram, qual seja, “[...] a crise de passagem da infância à condição de homem” (ROUSSEAU, 1762-1992, p. 499).

A infância é considerada, então, por Rousseau (1762-1992), um período com características próprias, tanto físicas quanto mentais,60 que a diferenciavam da fase

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Fenômenos do crescimento “[...] série de transformações estruturais e funcionais por que passa o corpo infantil no seu conjunto e em cada uma de suas partes” (GODIN, apud ABADE, 1942, p. 15).

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Crescimento “[...] considerado como expressão sintética de todas as manifestações de desenvolvimento, bem como os fatores que agem diretamente sobre ele, fornecem-nos dados para julgar da significação e alcance na determinação da unidade somática da criança” (MENEZES, apud ABADE, 1942, p. 15).

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Pedagogia individual: “O estudo do crescimento é o terreno movediço da pedagogia individual. Ela proporciona ao mestre as leis segundo as quais se produzem as mudanças e revela-lhe as relações que mantém entre si nos diferentes momentos da evolução o corpo (soma), o cérebro e o germe - os três fatores da personalidade” (ABADE, 1942, p. 15).

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Necessidade da educação física para firmar espiritual e fisicamente a personalidade da criança

(ABADE, 1942).

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Cabe abrir um parêntese e ressaltar que essa era, de acordo com Claparède (1905-1956), uma idéia central no campo da Pedologia (ciência cujo objeto é o estudo da criança): “A primeira coisa, com efeito, de que se deve estar persuadido, sempre que se empreendem explicações no campo da Pedologia, é que a criança, não é como geralmente se acredita, um homem em miniatura. Sua mentalidade não é apenas quantitativamente distinta da nossa, mas também qualitativamente. Não é

adulta. Nesse sentido, a educação deveria estar de acordo com cada fase do desenvolvimento, considerado desde o nascimento até a idade adulta: “Cada idade, cada condição na vida tem sua perfeição conveniente, sua espécie de maturidade própria” (ROUSSEAU, 1992, p. 164). Assim, é necessário que se siga a marcha da natureza, “[...] é preciso considerar o homem no homem e a criança na criança” (ROUSSEAU, 1762-1992, p. 63).

Segundo Abade (1942), atentar para os “fenômenos” do crescimento seria tarefa fundamental do educador, visto que ele influencia diretamente na marcha do desenvolvimento intelectual. Para o autor, caberia ao professor adaptar o trabalho mental das crianças ao seu desenvolvimento fisiológico, isso seria feito por meio de uma “racional educação física”.

Uma “racional educação física”, como integrante de um sistema educacional integral, além de assegurar à criança um “[...] desenvolvimento normal, sem prejuízo da saúde física e psíquica [...]” (ABADE, 1942, p. 16), é importante também, pois “[...] é nos exercícios físicos e nos jogos que se firma, espiritual e fisicamente, a personalidade da criança, o que é de grande importância sob aspecto educativo” (ABADE, 1942, p. 16).

Os exercícios físicos e os jogos seriam importantes também, pois, por meio deles, poder-se-iam descobrir inclinações e capacidades da criança que se manifestariam mais tarde, sob forma de vocações. Abade (1942, p. 16) escreve:

[...] livres, entregues ao jogo, verificaremos que quem dirige é o mais forte em espírito e quase sempre o menos corpulento; o mais afoito cuida da parte perigosa; o mais artista trata da parte sentimental; o menos forte de espírito se entrega ao trabalho comum, enquanto o mais engenhoso trata das minúcias particulares ao jogo [...]

Esse é o momento “[...] que se nos apresenta mais satisfatoriamente para apreciar as milhares formas de imaginação, de temperamento, de organização sensorial e sensitiva dos [...] pequenos escolares”, argumenta Abade (1942, p. 16).

somente menor, é também diferente” (CLAPARÈDE, 1905-1956, p. 375, grifos do autor), e é diferente, também, do ponto de vista do crescimento físico. Podemos enxergar, nas idéias de Claparède, concepções de Rousseau: “Verifica-se, com efeito, que o crescimento da criança não é um simples aumento em bloco, comparável ao aumento de um cristal: o futuro adulto não se acha pré-formado no embrião, como a teoria do ‘homúnculo’ dos fisiologistas do século XVIII” (CLAPARÈDE, 1905-1956, p. 386). O ano de 1905 foi o da primeira edição de Psicologia da criança e

Essas ponderações também podem ser relacionadas com as proposições que Rousseau apresenta sobre a “liberdade infantil” na concepção de “educação negativa”.

Na concepção de “educação negativa” presente em Rousseau (1762-1992), na impossibilidade de se trabalhar a razão intelectual, a educação deve dar ênfase à educação corporal, pois a razão é uma faculdade tardia.

No entanto esse método (negativo) teria também outra finalidade, a de deixar a criança livre para que o educador pudesse observar suas inclinações e capacidades, a fim de que, na sua educação posterior, quando fosse possível lhe ensinar preceitos morais, o professor soubesse que tipo de inclinações o jovem possui, uma vez que essas se revelaram na infância, quando ele tinha maior liberdade.

Outra consideração que confirma a utilidade deste método está no temperamento particular da criança, que é preciso conhecer bem para saber que regime moral lhe convém [...]. Homem prudente atentai longamente para a natureza, observai cuidadosamente vosso aluno antes de lhe dizerdes a primeira palavra; deixai antes de tudo que o germe de seu caráter se revele em plena liberdade, não exerçais nenhuma coerção a fim de melhor vê-lo por inteiro [...] (ROUSSEAU, 1762-1992, p. 81).

As aulas de Educação Física e os jogos ofereceriam, então, possibilidades de desenvolvimento físico e moral, não no sentido de ensino de preceitos morais, mas no sentido de que, nesses momentos (com locais e horários definidos), a criança tem mais “liberdade” – pois se trata de uma liberdade vigiada – do que na sala de aula, sendo possível, portanto, ao educador vislumbrar suas capacidades e inclinações.

É preciso ressaltar que, para Rousseau, a liberdade da criança refere-se a uma liberdade corporal, relacionada com os movimentos, a liberdade quanto às decisões; a liberdade intelectual não seria possível, uma vez que a razão era uma faculdade tardia.

Semelhante interpretação é feita por Mariano Narodowski (2001), quando salienta que a criança é, em Emílio, um ser completamente heterônomo, que só adquire liberdade quando se torna adulto, pois é apenas nessa fase que a razão pode ser desenvolvida. Para o autor, “[...] essa linha argumentativa nos [o] separa

por igual dos apologistas de Rousseau como teórico da liberdade da criança na educação escolar” (NARODOWSKI, 2001, p. 57).61

A idéia da liberdade corporal ou liberdade de movimentos também pode ser vislumbrada nas imagens do artigo (Figura 2), em que as crianças correm e imitam “um avião” (seguindo os movimentos do instrutor), durante uma brincadeira em uma lição de Educação Física.

Figura 2 - Brincadeira em uma lição de Educação Física em forma de jogo Fonte: Revista de Educação Física, n. 4, 193362

Abade (1942) finaliza o artigo queixando-se, então, da falta de professores de Educação Física nas escolas, da falta de recreios, em virtude de os grupos escolares possuírem três períodos, e ressalta que essa era uma grave falha no ensino nacional.

A representação de Educação Física presente aqui também é a de uma “racional educação física” como parte de uma “educação integral”. Um sistema educacional integral não poderia “[...] desconhecer as leis gerais do crescimento e os meios racionais e científicos aconselhados para assegurar o desenvolvimento normal, sem prejuízo da saúde física e psíquica dos nossos pequenos escolares” (ABADE, 1942, p. 16).

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A questão da liberdade infantil, em Emílio, é complexa. Se autores como Narodowski (2001) enxergam a criança como ser heterônomo, outros autores, como Natália Maruyama (2006), vislumbram, na proposta educacional de Rousseau, possibilidades de dar a criança maior liberdade e, conseqüentemente, maior domínio sobre suas forças e maior autonomia e independência dos adultos.

62Essa imagem está publicada na Revista no artigo da seção Lição de Educação Física de autoria do