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1 EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DO ESTADO CAPITALISTA

2.3 A educação e as relações de produção: a escola como modelo empresarial

Como afirma Cury, a instituição que se organiza sem assumir formas burocráticas pode desenvolver práticas de interesses à maioria. Para isso, vamos considerar a administração escolar com uma questão fundamental “efetivamente adequada a sua natureza e a seus objetivos transformadores (que) se impõe como uma tarefa que precisa ser permanentemente realizada” (PARO, 2000, p. 159). Isso é o que pretendemos identificar, considerando as circunstâncias estruturais e culturais, mas que possibilita organizar, conforme Cury afirma que a institucionalização não é o problema, mas o caráter processual que a escola assume. Dessa forma, queremos diferenciar este trabalho daqueles que desconsideram as

19 Conforme Wood (2003), “a verdade é que, embora diversas formas de trabalho livre tenham sido uma

característica comum em muitos lugares na maioria dos tempos, a condição desfrutadas pelo trabalho livre na democracia de Atenas não teve precedentes e, sob muitos aspectos, permaneceu inigualável desde então” (p. 160).

totalidades e suas mútuas e contraditórias relações, como é o exemplo da relação entre o Estado e a escola. Com isso, se possível, balizar em que circunstâncias estruturais e culturais a gestão das escolas públicas deixa de corresponder aos interesses do capital, hoje manifestada através das mistificações do mercado e do fetiche da mercadoria, como uma relação natural, universal, histórica e inevitável.

Para compreender a organização escolar no contexto dos modelos de produção do capital, precisamos ressaltar que a administração não é uma característica específica do capitalismo. De acordo com Paro, ela se constituiu ao longo da história, trazendo consigo as contradições sociais e políticas dos interesses dos diferentes modos de produção. De modo geral, podemos afirmar que a administração tem como objetivo último utilizar os recursos da melhor maneira possível para fins determinados. Significa que abstrair suas características essenciais é mantê-la no seu sentido apenas geral. No entanto, como estamos nos referindo a um modo de produção específico, precisamos compreendê-la como uma atividade burocrática no interior das instituições que traz vantagens às especificidades do capital tanto de ordem técnica, favorecendo a produção em grande escala, quanto de ordem política, que, por sua vez, garante o controle do capital sobre o trabalho.

Paro elucida esta questão:

Como é facilmente perceptível, entretanto, esses dois aspectos são mutuamente dependentes, tendo a dimensão econômica a perpassá-los e a ligá-los organicamente. O aspecto técnico não pode ser considerado somente técnico, na medida em que sua função não é apenas maior eficiência e produtividade, mas: maior eficiência e produtividade nas condições capitalista de produção, ou seja, maior exploração capitalista, maior valorização do capital, maior extração de mais- valia, tudo que resulta em maior poder do capital sobre o trabalho. Da mesma forma, a dimensão política não se esgota no político, já que o controle do trabalhador acaba por provocar elevação na produtividade (PARO, 2000, p. 69).

Significa que o capital extrai o máximo de rendimento do trabalhador através da dimensão técnica e política, diferentemente do que acontecia na Grécia, cujos trabalhadores não serviam ou não vendiam sua força de trabalho. Do ponto de vista do capital, eles não trabalhavam o suficiente.

Para os gregos o importante era a participação política que, além das tarefas de trabalho, era necessário reservar mais tempo, de forma independente, para o lazer e a participação política nas assembléias. Contrariando essa perspectiva, com uma cajadada, a política neoliberal resolveu dois problemas, visto que, através da reorganização social do trabalho, não apenas aumentou o tempo de trabalho através da produção flexível, como também associou esta a extensão de outras atividades. Os trabalhadores passaram a realizar outras tarefas nos horários fora do local de trabalho, como a busca permanente da especialização que garanta a empregabilidade, retirando, assim, o tempo ocioso, livre, disponível para a participação de qualquer atividade política ou social.

No entanto, apenas sobrecarregar o trabalhador, tanto no horário de trabalho como fora dele, não basta para garantir a dependência do trabalhador ao capital. É preciso não apenas limitar sua participação política, mas desenvolver mecanismos que subjetive definitivamente a consciência do trabalhador em prol da dominação, sendo a escola um poderoso instrumento. Nesse contexto a participação do Estado torna-se essencial como garantidor das relações de produção capitalista, como aponta Cury.

Essa política de dominação, que implica o aprofundamento da exploração mediante a manutenção das relações sociais, exige a presença do Estado. Este adquire especial importância e função com o novo papel que passa a assumir no contexto da divisão internacional do trabalho (CURY, 2000, p. 55).

Como o modelo de produção fordista/taylorista foi dominante praticamente em todo o século XX, as empresas operavam sob a lógica racional da produção em massa, enquanto a sociedade deveria seguir a mesma lógica, ou seja, democrática, racional, moderna e populista. Precisava, então, de um novo sistema de produção da força de trabalho, de um consumo também em massa e, principalmente, de uma política de controle, formação e gerenciamento do trabalho. Isto é, o binômio “baseava-se na produção em massa de mercadorias, que se estruturava a partir de uma produção mais homogeneizada e enormemente verticalizada” (ANTUNES, 1999, p. 36).

Nas fábricas, na estrutura rígida que separa concepção e execução, o trabalhador desenvolve atividades fragmentadas através da “decomposição das tarefas, o que reduz a ação operária a um conjunto repetitivo de atividades cuja somatória resulta no trabalho coletivo

produtor” (Id. Idib, p. 37) de mercadorias. Neste modelo traçava-se uma linha rígida de produção que articulava os diferentes tipos de trabalho, organizando as relações entre as ações repetitivas dos trabalhadores, na qual a esteira responsabilizava-se não apenas pelo ritmo das tarefas, mas pela ligação do resultado do trabalho executado anteriormente com o seguinte. Como resultado, o trabalhador torna-se um segmento da máquina, que é a apropriação real do trabalho ao capital sendo a capacidade intelectual do trabalhador transferida para a dimensão gerencial da indústria, e a “mais-valia extraída extensivamente, pelo prolongamento da jornada de trabalho e do acréscimo de sua dimensão absoluta, intensifica-se de modo prevalecente a sua extração intensiva, dada pela dimensão relativa da mais-valia” (Id. Idib, p. 37).

Essa concepção ideológica da sociedade moderna teve como percussor a Inglaterra e, posteriormente, os Estados Unidos, que projeta seu modelo sobre o resto do mundo. A disciplina exigia do trabalhador um esforço para a produção suficientemente capaz de permutar no processo produtivo mundial e, como recompensa, recebia altos salários acompanhados de uma assistência social. Vale lembrar que essa relação entre formas disciplinares de trabalho e recompensa não se estendia aos países subordinados, como o Brasil, pois o que importava era a promessa da modernidade, que “serviu como um atrativo ideológico para assegurar um consenso suficiente para o projeto de modernização. A substância real do esforço, a real decolagem para a modernidade, de fato alcançada, foi a difusão do regime disciplinar [...]” (HARDT, NEGRI, 2001, p. 269).

Nesse contexto, o Estado, de um lado, adquire real relevância não apenas como mediador de conflitos para atenuar as tensões entre capital e trabalho, através do Estado do bem-estar social, como também responsabiliza-se diretamente pelo desenvolvimento social na regulamentação da economia. “Numa sociedade disciplinar, toda a sociedade, com todas as suas articulações produtivas e reprodutivas, é subordinada ao comando do capital e do Estado; e que a sociedade tende, gradualmente, mas com uma continuidade inevitável, a ser governada apenas pelo critério da produção capitalista” (Id. Idib, p. 264). Por sua vez, o Estado deve garantir a hegemonia como um momento consensual das relações de dominação, tornando-se central para o avanço do modelo fordista/taylorista que se impõe em toda a parte.

Para esse momento histórico do capitalismo atribuímos a importância da jornada de trabalho da produção em massa. Se, de um lado, alienava-se o trabalhador em atividades

repetitivas durante o período de trabalho, visando a manutenção das características da exploração da mais-valia, do outro lado, por ser uma produção em massa, exigia-se também o trabalho da mesma forma, ou seja, em massa, o que permitia aos trabalhadores uma organização coletiva, considerando o tempo ocioso desses para a participação política em movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos.

“A nova mobilidade transversal de força de trabalho disciplinado é significativa porque indica uma busca real e poderosa da liberdade” (HARDT, NEGRI, 2001, p. 274) dos trabalhadores que assumem modos diferentes de resistência, como a fuga do trabalho, a busca do trabalho não-operário, greves gerais e parciais, contestações da divisão hierárquica do trabalho, entre outros. A confluência da estagnação econômica, dada pela produção excessiva das fábricas que não conseguem vender seus produtos, com a intensificação das lutas dos trabalhadores que buscavam o controle social do processo produtivo foram fatores decisivos para colocar o modelo de produção do capital em crise, no caso o fordista/taylorista. Como os trabalhadores não conseguiram contrapor hegemonicamente à sociabilidade do capital associado ao crescente desenvolvimento tecnológico, “as forças do capital conseguiram reorganizar-se, introduzindo novos problemas e desafios para o mundo do trabalho, que se viu a partir de então em condições bastante desfavoráveis” (ANTUNES, 1999, p. 44).

Para dar conta da crise do modelo de produção, a nova reorganização social do trabalho visando recuperar seu ciclo produtivo, desta vez apresenta-se por meio da constituição de formas de acumulação flexível. Foi uma necessidade do capital que atendeu duas frentes como resposta à sua crise estrutural: a concorrência intercapitalista que visa beneficiar os grandes grupos transnacionais monopolistas e a contenção das lutas sociais, retirando definitivamente o tempo ocioso do trabalhador, o qual era destinado a uma vida política participativa, como anunciamos acima. Para isso, o capital utiliza-se de outra promessa, não mais a de progresso e a do sonho da modernidade, em que o trabalhador especializado terá a realização pessoal e profissional no espaço de trabalho, ou seja, “uma nova forma de organização industrial e de relacionamento entre o capital e o trabalho, mais favorável quando comparada ao fordismo/taylorismo, uma vez que possibilitaram o advento de um trabalhador mais qualificado, participativo, multifuncional, polivalente” (Id. Ibid, p. 48). Desta vez, o tempo livre do trabalhador deixa de ser utilizado para seus interesses pessoais e coletivos, tempo este absorvido pelo capital em que o trabalhador entrega-se

integralmente a vida profissional, de forma individual, na busca de qualificação para fins de permanência ou ascendência no trabalho.

Diferentemente do fordismo/taylorismo em que o Estado era forte e protetor, agora, sob nova roupagem da política neoliberal continua com a mesma missão, a de manter as relações de dominação. Isso coloca o mercado e seus mecanismos de venda como reguladores das relações econômicas e financeiras, tendo o aval e a proteção do Estado mínimo, que se mantém isento nas transações econômicas, mas forte em relação ao cumprimento de leis e incentivos fiscais, permitindo a liberdade de contrato entre os agentes econômicos e financeiros. As repercussões não se estendem ao modo de produção do capital, mas às mudanças nas relações de trabalho que são profundamente alteradas, como a “desregulamentação enorme dos direitos do trabalho, que são eliminados cotidianamente em quase todas as partes do mundo onde há produção industrial e de serviços; aumento da fragmentação no interior da classe trabalhadora; precarização e terceirização” (Id. Ibid, p. 53) do trabalho.

De acordo com Paro (2000), as relações de produção no modo de produção capitalista são determinantes para as demais organizações da sociedade, relações estas que se caracterizam pela exploração de uma classe sobre a outra, através do trabalho alheio que produz um excedente, que, por sua vez, não é exclusivo do capitalismo. O que possui de específico e que se diferencia dos demais modos de produção, é a produção da mais-valia desenvolvida no processo de produção de mercadorias.

Desta forma, “a administração especificamente capitalista que, mercê dos condicionantes sociais e econômicos de um particular modo de produção, se apresenta, tanto no nível estrutural, quanto no superestrutural, como mediadora da exploração e domínio de uma dada classe social sobre as demais” (Idib. p. 125). No nível superestrutural encontramos a escola aceitando a ordem capitalista como um produto do progresso humano, aplicado aos mais diversos tipos de administração, que supera a própria história como o modelo ideal de sociedade.

No Brasil, a administração escolar adota o modo empresarial de forma implícita ou explicita, tendo como pressuposto básico a aplicação dos “mesmos princípios administrativos adotados na empresa capitalista” (PARO, 2000, p. 124). Prova disto, no fordismo/taylorismo,

encontramos as características semelhantes entre as administrações escolar e empresarial, onde ambas centralizam a autoridade e o conhecimento na figura do diretor e supervisor, responsabilizando-os pela gestão. Enquanto que, professores (na escola) e trabalhadores (na fábrica), são responsáveis pela execução das tarefas pré-determinadas. Já, na produção flexível, além das tarefas de ofício, os trabalhadores e professores interagem na gestão, aumentando, assim, o prolongamento da jornada de trabalho sob a ilusão de que participaram das tomadas de decisão. Assim a administração escolar passa a ter validade social apenas quando assume técnicas e métodos da organização capitalista.

Como a administração empresarial desconsidera qualquer perspectiva articulada entre economia, política e cultura, a administração escolar percebe os problemas educativos do ponto de vista técnico, tendo como parâmetro satisfatório de resultados os mesmos que acontecem na fábrica, que é um local por excelência de exploração. Os mecanismos adotados pela administração capitalista, como a gerência e a divisão do trabalho, são utilizados para resolver os problemas da escola, com procedimentos burocráticos e hierarquizados, os quais contribuem para dificultar quais são os verdadeiros determinantes da prática administrativa escolar, colocando a educação escolar em crise.

Para este problema da administração escolar e, conseqüentemente, da crise da escola, Paro afirma:

Com relação ao seu conteúdo técnico, não há dúvida de que as conquistas teóricas da administração capitalista poderiam fornecer uma consistente contribuição ao incremento da produtividade da escola, desde que se procedesse à efetiva racionalização das atividades e à sistematização dos procedimentos, no sentido de um ensino de melhor qualidade. O que se verifica, entretanto, no dia-a-dia das escolas, é a hipertrofia dos meios representados pelo número excessivo de normas e regulamentos com atributos meramente burocratizantes, desvinculados da realidade e inadequados à solução dos problemas, o que só faz agravá-los, emperrando o funcionamento da instituição escolar (PARO, 2000, p. 130).

Com as transformações nas relações de trabalho a partir dos modelos de produção fordista/taylorista e toytismo/produção flexível, considerando a administração escolar como uma extensão da fábrica, compreendemos essas implicações na gestão escolar. Como vimos,

com a crise do modelo fordista/taylorista20, o capital organiza-se através da produção flexível, que exige outro perfil do trabalhador, cujas características não se limitam somente as exigências físicas, como também mentais. Nesta fase, o desenvolvimento tecnológico apresenta-se como um importante instrumento de organização do trabalho, sem eclipsar a centralidade do trabalho como organizador social, pois as novas formas de trabalho se diferenciam daquela que aconteciam nas fábricas, as quais passaram do trabalho formal para o informal. Da mesma forma quando o modelo de produção do capital entra em crise, a educação, por contribuir na reprodução das relações de trabalho, também entra em crise. Esta situação abre possibilidades de repensar a gestão escolar, já que ela segue as determinações do capital pelo fato de seguir, de forma similar, a organização empresarial.

Em resumo, do ponto de vista do desenvolvimento humano, que necessita de valores voltados à promoção da autonomia das maiorias, a educação pouco contribuiu para a transformação social, com exceção da educação ateniense, cujas características estavam relacionadas com as práticas democráticas da sociedade21. Para essa afirmação, abordamos o modo de produção fordista/taylorista, que necessita de trabalhadores dóceis e disciplinados para atender a demanda empresarial e a tarefa domesticadora dessas necessidades na qual coube à educação desempenhar. É a comprovação histórica mais evidente da subjugação da educação aos interesses do capital. Com a crise do modelo fordista/taylorista, houve a necessidade de flexibilizar a produção a fim de tornar as empresas mais competitivas. Nessa nova organização social do trabalho, a educação aparece novamente como instrumento central às exigências das empresas, porém, desta vez, responsável pela formação do trabalhador também flexível e competitivo.

Para responder a demanda empresarial, na passagem do modelo fordista/taylorista para a acumulação flexível, a escola tem como objetivo formar trabalhadores com habilidades intelectuais aptos à rápida adaptação, à iniciativa frente às dificuldades, ao raciocínio abstrato, à autonomia de decisões com vistas à maximização da produção, às competências relacionais e possuir habilidades comunicacionais. Nesse universo de habilidades e competências, de um lado, a escola, por suas características estruturais e culturais, lança à sorte sua “clientela”, à

20 A seguir, vamos caracterizar a crise do capital e da escola como aparente. Por enquanto, vamos analisar o

fenômeno como se apresenta, que é superficial e aparente. Não podemos confundir, a crise é do modelo, mas não é do capital.

21 Ellen Wood (2003) na parte II do livro “Democracia contra capitalismo”, elabora uma interessante

argumentação de que a democracia não na Grécia, mas em Atenas apresenta características democráticas que nunca foram igualadas.

qual submete ao processo “natural” de seleção, onde somente os melhores entre os melhores podem vender diretamente sua força de trabalho no processo de super-exploração tanto físico quanto mental. Do outro lado, as constantes mudanças nas relações de trabalho são tão rápidas que a escola pouco consegue acompanhar, mesmo que seja para reproduzir as relações de produção. São tantas as exigências que ela, contraditoriamente em relação a sua função hegemônica, encontra-se em crise, isto é, precarizada em sua concepção de integração ou de recusa às determinações capitalistas.

É por conta desta contradição que a escola deve manter-se em crise para evitar que ela se construa na segunda possibilidade, a que nega as determinações do capital. Isto é, manter a escola em crise é condição necessária para ela não se tornar um lócus privilegiado de reflexão das contradições do capital. Somente quando a escola toma consciência de sua limitação (contradições), é que a educação pode avançar nas possibilidades e instaurar um tempo de mudanças. Lembrando que o que entra em crise é o modelo de produção, não o capital, a crise da escola é crise do ponto de vista do trabalhador (sociedade), não do capital, pois ela corresponde aos interesses do capital a partir de seus objetivos hegemônicos.