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1 O DESENVOLVIMENTO HUMANO E SUA RELAÇÃO COM O ENSINO

2.1 A eleição de critérios para a periodização

Ao negar a centralidade dos processos evolutivos naturais na orientação do desenvolvimento infantil, Vygotski e Elkonin, enfrentaram algumas questões fundamentais na elaboração da periodização desse processo. A primeira delas refere-se à necessidade de eleger critérios para a definição dos períodos.

Ao elaborar essa questão, Vygotski (1996) se debruça sobre as principais concepções acerca da periodização existentes até então e tece críticas a respeito dos critérios que adotam, reunindo-as em três grupos, a saber: as que dividem o processo de desenvolvimento infantil com base em outros processos relacionados a ele; as que tomam como critério a eleição de algum elemento específico do desenvolvimento; e as

que enfatizam os processos de maturação e crescimento, em detrimento do processo cultural que com eles interatua e a eles supera na determinação do desenvolvimento.

Elkonin (1987) compartilha das críticas feitas por Vygotski (1996) e as complementa com sua argumentação. Mediante a exposição de tais críticas e argumentos, os autores revelam elementos significativos para a compreensão da proposta materialista histórica e dialética da periodização. Por conseguinte, trataremos de apresentá-las, em seus principais aspectos.

A respeito do primeiro grupo de concepções criticado por Vygotski (1996), nas palavras do autor, “(...) se incluem os intentos de periodizar a infância sem fracionar o próprio curso do desenvolvimento da criança, sobre a base da estruturação escalonada de outros processos relacionados de um ou outro modo com o desenvolvimento infantil” (VYGOTSKI, 1996, p.251).

Integra essa perspectiva a teoria biogenética que pressupõe um rigoroso paralelismo entre o desenvolvimento filogenético e o desenvolvimento da criança, fracionando o desenvolvimento infantil segundo as fases do desenvolvimento da humanidade. Essa teoria desconsidera o caráter histórico e, portanto, variável do desenvolvimento psíquico ao longo do tempo. Em uma perspectiva histórica, percebe-se que a infância não é um fenômeno constante e universal presente e manifesto igualmente em todas as épocas e organizações sociais. Há variações significativas no lugar social que a criança ocupa em cada período da história humana, que precisam ser consideradas na periodização do desenvolvimento psíquico (ELKONIN, 1987; VYGOTSKI, 1996).

Pertence também a esse grupo, a periodização que se constrói sobre a base da sequenciação das atividades de educação e ensino. Segundo Vygotski (1996) e Elkonin (1987), esse fato torna a classificação dos períodos não de todo equivocada por fundamentar-se num acúmulo de experiência prática e seguir o princípio pedagógico em sua realização. Entretanto, parte também de um dado externo ao desenvolvimento infantil, não desvelando a essência desse desenvolvimento, a qual o processo pedagógico necessita, antes de mais, reconhecer.

Os processos de desenvolvimento psíquico estão ligados estreitamente com a educação e o ensino da criança e a divisão do sistema educativo e de ensino está baseada em uma enorme experiência prática. Naturalmente, a divisão da infância, estabelecida sobre bases pedagógicas, se aproxima relativamente à verdadeira, porém não coincide com ela e, o que é essencial, não está ligada com a solução da

questão acerca das forças motrizes do desenvolvimento da criança, das leis das passagens de um período a outro (ELKONIN, 1987, p.104- 105).

O segundo grupo destacado por Vygotski (1996, p.251) propõe “a eleição de algum indício no desenvolvimento infantil como critério convencional para sua periodização”. De acordo com o autor, alguns pesquisadores, como P. P. Blonski, baseavam a periodização do desenvolvimento infantil segundo o fenômeno da aparição e modificação da dentição; outros como K. Stratz tomavam como critério principal, o desenvolvimento sexual; e, ainda, W. Stern baseava-se em critérios psicológicos, tais como o grau de desenvolvimento da consciência, expresso no tipo de atividade realizada pela criança.

Stern distingue a primeira infância durante a qual a criança manifesta tão somente a atividade lúdica (até os seis anos); o período de estudo consciente no qual se compartilha o jogo e o trabalho; o período da maturação adolescente (quatorze-dezoito anos) quando se desenvolve a independência do indivíduo e se esboçam os projetos de vida futura (VYGOTSKI, 1996, p.252).

Para Vygotski (1996), os critérios eleitos por esse grupo não podem ser considerados válidos, devido o caráter arbitrário e, portanto, subjetivo, de sua escolha.

Os esquemas desse grupo são, em primeiro lugar, subjetivos, ainda que proponham como critério para a periodização da idade um indício objetivo, este indício se analisa subjetivamente em dependência dos processos que chamam mais a atenção. A idade é uma categoria objetiva e não convencional, nem eleita voluntariamente, nem fictícia. Por isso, os signos de separação da idade não podem colocar-se em qualquer ponto da vida da criança, mas tão somente naqueles aonde acaba objetivamente uma etapa e começa outra (VYGOTSKI, 1996, p.252).

Outro problema apontado por Vygotski (1996) acerca dessa concepção é a delimitação de um critério único para identificar a passagem a todos os períodos de idade9, sendo que a cada etapa, o elemento escolhido como representante dessa

9 O termo idade utilizado por Vygotski e Elkonin ao discutirem a periodização do desenvolvimento não se refere à idade cronológica do indivíduo. Os períodos de idade referem-se aos períodos do desenvolvimento, conforme exposto ao longo desse capítulo.

passagem muda sua importância no quadro geral do desenvolvimento, não podendo ter a mesma significação em todos os períodos.

Vygotski (1996) traz como exemplo desses possíveis indícios de desenvolvimento a maturação sexual, tão fundamental e representativa da puberdade, mas carente da mesma significação nas idades anteriores. Também a erupção dentária, tão significativa no primeiro ano de vida, como expressão indicativa do desenvolvimento geral da criança, perde esse caráter nas idades seguintes, quando a troca de dentes e o aparecimento dos molares já não têm a mesma representatividade.

Um indício valioso e importante para determinar o desenvolvimento da criança num período dado, perde seu significado no seguinte, já que os aspectos que ocupavam antes o primeiro plano no curso do desenvolvimento se deslocam ao segundo (VYGOTSKI, 1996, p.252). A crítica de Vygotski (1996) a essas concepções ancora-se no fato delas estarem fundamentadas em indícios externos ao desenvolvimento infantil, não atingindo os aspectos que constituem a essência desse processo. Segundo o autor, a aparência externa de um fenômeno constitui um aspecto importante do mesmo, contudo, coloca-se longe de esgotar todas as determinações que o compõem. Por isso, a investigação científica visa ao desvelamento do objeto em todas as suas faces, em seus indícios externos e internos, e não apenas na aparência – face acerca da qual não necessitaria de ciência para conhecer. (VYGOTSKI, 1996).

Todavia, a verdadeira tarefa consiste em investigar o que se oculta por trás desses indícios, aquilo que os condiciona, quer dizer, o próprio processo de desenvolvimento infantil com suas leis internas. Em relação com o problema da periodização do desenvolvimento infantil isso significa que devemos renunciar a toda intenção de classificar as idades por sintomas e passar, como o fez em seu tempo outras ciências, a uma periodização baseada na essência interna do processo estudado (VYGOTSKI, 1996, p.253).

O terceiro grupo criticado por Vygotski apresenta um equívoco de ordem metodológica. Embora passe “do princípio puramente sintomático e descritivo à discriminação das peculiaridades essenciais do próprio desenvolvimento infantil”, o faz mediante uma concepção antidialética e dualista de desenvolvimento, o que resulta numa compreensão fragmentada e, portanto, não integral desse processo (VYGOTSKI, 1996, p.252).

Vygotski (1996) traz como exemplo desse grupo a teoria de Gesell, por tomar o desenvolvimento que ocorre nas primeiras idades como marco e critério para o desenvolvimento posterior. Nessa teoria, o desenvolvimento que ocorre após os primeiros anos de vida, não possui a mesma complexidade e importância desse período.

A teoria de Gesell se inclui no grupo daquelas teorias modernas que, segundo sua própria confissão, convertem a primeira infância no critério supremo para interpretar a personalidade e a sua história. Para Gesell o mais importante e principal no desenvolvimento infantil sucede nos primeiros anos inclusive nos primeiros meses de vida. O desenvolvimento posterior, tomado em seu conjunto, não pode nem comparar-se sequer com um só ato desse drama repleto de conteúdo (VYGOTSKI, 1996, p.253-254).

Vygotski (1996) aponta para o equívoco que se expressa na compreensão do desenvolvimento que se realiza nos primeiros anos de vida como mais rico ou repleto de conteúdo em comparação com o desenvolvimento posterior. Isso porque a maior significação dada ao período do desenvolvimento em que os processos de maturação e crescimento encontram-se mais expressivos, denota uma ênfase atribuída às propriedades biológicas desse processo, negando o caráter essencialmente cultural das principais transformações que ocorrem no desenvolvimento infantil.

É certo que nas primeiras idades se observa um ritmo de desenvolvimento máximo das premissas que condicionam o desenvolvimento posterior da criança. Os órgãos e as funções elementares básicas amadurecem antes que as superiores. Entretanto, é errôneo supor que todo o desenvolvimento se limita ao crescimento das funções elementares, essenciais, que são a premissa das facetas superiores da personalidade (VYGOTSKI, 1996, p.254).

A observação de tais críticas conduz o problema da periodização à questão da eleição de critérios que contemplem a lógica interna do processo de desenvolvimento infantil, assim como os indícios objetivos que sinalizem a passagem de um período a outro, perpassando todas as idades. Além do mais, é necessário que o critério central no desvelamento dessa passagem, considere o caráter revolucionário do desenvolvimento humano - dado que se opõe à concepção evolucionista, na qual as transformações orientam-se à simples adaptação ao meio natural.

Mediante o pressuposto fundamental de que o processo de desenvolvimento humano é um processo revolucionário, que subjuga a maturação e o crescimento ao

trato social no qual ocorrem, Vygotski (1996) supera as concepções criticadas por ele, propondo um critério coerente com as premissas acima citadas: a produção das novas formações no desenvolvimento infantil.

As novas formações se identificam com a manifestação de características e propriedades antes não existentes no ser que se desenvolve e, assim, marcam a passagem de um período a outro no desenvolvimento. De cunho essencialmente cultural, as novas formações expressam objetivamente as transformações promovidas na criança, ao longo de um dado período, pelos processos socialmente organizados de vida e educação. De forma revolucionária, a cada período de idade, elas incorporam o funcionamento guiado pelos processos biológicos de desenvolvimento e tendem a superá-los mediante sua consolidação no comportamento infantil, transformando a criança em sua totalidade.

Entendemos por novas formações o novo tipo de estrutura da personalidade e de sua atividade, as alterações psíquicas sociais que se produzem pela primeira vez em cada idade e determinam, no aspecto mais importante e fundamental, a consciência da criança, sua relação com o meio, sua vida interna e externa, todo o curso de seu desenvolvimento no período dado (VYGOTSKI, 1996, p.254-255). As novas formações no desenvolvimento infantil colocam-se, pois, como critério central na determinação dos períodos do desenvolvimento psíquico da criança. Nas palavras de Vygotski (1996, p.260), “O critério fundamental, do nosso ponto de vista, para classificar o desenvolvimento infantil em diversas idades é justamente a formação nova”.

Feita esta constatação, Vygotski (1996) afirma que, para além da premissa do surgimento do novo no processo de desenvolvimento, é preciso também reconhecer a dinâmica na qual esse novo se produz. Em outras palavras, a questão que agora se coloca é a de compreender como se produzem essas novas formações na criança e como esse fenômeno se expressa na periodização do desenvolvimento infantil.