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A emergência dos estudos de gênero e diversidade

O cenário de visibilização das múltiplas identidades propiciou a ascensão dos movimentos sociais que trouxeram a bandeira da denúncia, da minimização da desigualdade, da inclusão social e da eliminação da violência física e simbólica. Tais movimentos emergiram nos anos 1960 e, em conjunto com as revoltas estudantis, o ideário da contracultura e os movimentos contrários às guerras, ganharam visibilidade na arena social. Estes grupos, formados por atores de diversos segmentos da sociedade, se organizaram e passaram a disputar o poder de representação em todas as instâncias sociais e culturais (Furlani, 2003:220).

Para Hall (2001), a emergência do movimento feminista causou grande impacto, tanto no campo teórico quanto no campo das lutas por reconhecimento de direitos. Em sua concepção, o feminismo se configurou como o movimento social que suscitou o descentramento dos conceitos de sujeitos iluminista e sociológico, além de ter politizado a identidade feminina, contribuindo de forma contundente para a contestação do status quo.

O movimento de mulheres começou a ter visibilidade no final do século XIX com o sufragismo. Analfabetas e alijadas do espaço público, as mulheres no mundo e no Brasil passaram a lutar, primeiramente pela educação e pelo voto. Assim, o Movimento Sufragista, iniciado na Inglaterra e nos Estados Unidos, reuniu mulheres que reivindicavam o direito à participação política. Esta manifestação pelos diretos das mulheres é considerada como a primeira onda do feminismo. Já no final da década de 1960, na chamada segunda onda do feminismo, o movimento se expandiu e começou a debater mais do que a reivindicação de direitos. A partir de então, além do sentido igualitário no campo político e social, o movimento de mulheres também passou a operar através das críticas teóricas.

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Hall chama a atenção para o fato de que o feminismo circunscreveu aspectos realmente novos na sua manifestação de contestação política, na medida em que abordou temas como família, sexualidade, trabalho doméstico, cuidado com as crianças etc. Sobre essa profunda mudança, Hall afirma que o feminismo politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como mães/pais, filhas/filhos, homens/mulheres) assim sendo, o que começou como um movimento reivindicatório e contestador da posição social das mulheres, passou a atuar na formação das identidades dos sujeitos. Para Hall (2006), o feminismo e o movimento negro são pioneiros no que é possível nomear de política identitária ou política da diferença, que marcam o cenário denominado multicultural ou intercultural.

No contexto brasileiro, a concepção de gênero passou a fazer parte da agenda de estudos acadêmicos a partir de 1990. Desde então, cada vez mais frequente em estudos e pesquisas, o conceito de gênero, que se contrapõe à ideia de essência, refuta as teorias pautadas no determinismo biológico, construídas para explicar os perfis comportamentais de homens e mulheres e que delineavam uma visão naturalizada, universal e imutável dos comportamentos e do papel de cada sexo na sociedade. A teoria do determinismo operou muitas vezes como justificativa das desigualdades entre os sexos, a partir das diferenças físicas. Neste sentido, o conceito de gênero representou um avanço, pois se abandonou a definição mais tradicional de papéis sexuais, valorizando-se cada vez mais a dimensão de relatividade entre o indicador anatômico e a elaboração cultural (Heilborn, 1994). O conceito de gênero, tal como esboçado, tem como origem a noção de cultura e opera na estrutura dos sistemas sociais, funcionando como organizador da vida em sociedade que afeta homens e mulheres.

Na perspectiva das relações de gênero é basilar discutir os processos de construção ou formação histórica, social e linguística, imbricadas na formação de mulheres, homens, meninas e meninos. A teoria das ciências sociais enfatiza que as identidades masculina e feminina são construções culturais engendradas sobre os corpos, não se configurando, portanto, como dados biológicos naturais e universais. Para Maria Luiza Heilborn (1997) as diferenças de gênero são principalmente diferenças estabelecidas entre homens e mulheres nas relações sociais ao longo da história. Desta forma, gênero tornou-se uma categoria de classificação dos indivíduos, assim como classe social e raça/etnia.

Pesquisadoras como Joan Scott (1995) e Guacira Louro (1997) também entendem que o conceito de gênero se apresenta como uma ferramenta teórica

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potencialmente útil para os estudos das ciências sociais e, além disso, se configura como uma importante categoria analítica para a história, especialmente para a história da educação.

Para Louro, o caráter político da teoria de gênero é, sem dúvida, uma de suas marcas mais significativas:

Objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção, que haviam se constituído convencionalmente, em condições indispensáveis para ao fazer acadêmico, eram problematizados, subvertidos, transgredidos. Pesquisas passavam a lançar mão, cada vez com mais desembaraço, de lembranças e de histórias de vida; de fontes iconográficas, de registros pessoais, de diários, cartas e romances. Pesquisadoras escreviam na primeira pessoa. Assumia-se, com ousadia, que as questões eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetória histórica específica que construiu o lugar social das mulheres e que o estudo de tais questões tinha (e tem) pretensão de mudança. (Louro, 1997:19)

Louro ainda reforça a vocação social e relacional do conceito de gênero e aponta “o gênero como constituinte da identidade dos sujeitos” (1997:24). Os indivíduos são homens e são mulheres e o gênero faz parte desta constituição. Neste caso, a identidade de gênero diz respeito ao fato de que os indivíduos se reconhecem como homens ou como mulheres. Entretanto, as identidades são múltiplas, plurais, os indivíduos não são apenas homens ou apenas mulheres, assim, “o sentido de pertencimento a diferentes grupos – étnicos, sexuais, de classe, de gênero etc. – constitui o sujeito” (Louro, 1997:25). O pressuposto básico é de que as identidades são sempre construídas, não são fixas e imutáveis, ao contrário, transformam-se e são inacabadas.

A identidade de gênero tem a ver com o fato de ser mulher e ser homem, o exercício da masculinidade e da feminilidade, diferentemente da identidade sexual, que se refere à maneira como os indivíduos exercem a sexualidade, ao modo como vivem seus desejos e prazeres corporais. Assim, as “identidades sexuais se constituiriam, pois, através das formas como vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as” (Louro, 1997:26). Neste sentido,

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indivíduos femininos ou masculinos, do ponto de vista do gênero, podem ser heterossexuais, homossexuais e bissexuais, do ponto de vista da identidade sexual.

Portanto, o conceito de gênero é frequentemente articulado com o conceito de sexualidade, já que as duas noções estão imbricadas na vida social e são revisitadas a partir de normas estabelecidas cultural e socialmente. Neste sentido, Brandão & Heilborn afirmam que:

As experiências particulares de homens e mulheres no tocante à sexualidade e à reprodução só podem ser consideradas á luz das diferenças de gênero que conformam as representações e práticas masculinas e femininas em cada cultura. (Brandão & Heilborn, 2006:1422)

A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a sexualidade como uma forma integral de personalidade de cada indivíduo, afirmando que é na verdade, um aspecto do ser humano que não pode ser separado dos outros aspectos da vida.

Sexualidade é um aspecto central do ser humano do começo ao fim da vida e circunda sexo, identidade de gênero e papel social, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. Sexualidade é vivida e expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos. Enquanto a sexualidade pode incluir todas estas dimensões, nem todas são sempre vividas ou expressadas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, éticos, legais, históricos, religiosos e espirituais. (OMS, 1975 apud Corrêa et al., 2004)

A contribuição da OMS revela que a sexualidade é um conceito bem mais abrangente do que o ato sexual em si, fazendo parte da personalidade do indivíduo. Neste sentido, Michel Foucault descreveu a sexualidade como uma construção social que surgiu para que o corpo individual fosse submetido ao controle da sociedade. De acordo com o autor, a sexualidade é uma categoria social que, como tal, somente pode existir no contexto social (Foucault, 1993:21).

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Em 2007, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/MEC), na publicação “Cadernos SECAD - Gênero e Diversidade Sexual na Escola: reconhecer as diferenças e superar preconceitos” corrobora o entendimento de que as relações de gênero são fruto da construção social e cultural em relação ao sexo biológico, o que reflete diretamente nas relações de poder, engendrando atitudes discriminatórias como sexismo e homofobia:

Ao se falar em gênero, não se fala apenas de macho ou fêmea, mas de masculino e feminino, em diversas dinâmicas de masculinidades e feminilidades. Gênero, portanto, remete a construções sociais, históricas, culturais e políticas que dizem respeito a disputas materiais e simbólicas que envolvem processos de configuração de identidade, definições de papéis e funções sociais, construções e desconstruções de representações e imagens, diferentes distribuições de recursos e de poder e estabelecimento e alteração de hierarquias entre os que são socialmente definidos como homens e mulheres e o que é – e o que não é - considerado de homem ou de mulher, nas diferentes sociedades e ao longo do tempo. (Cadernos SECAD, 2007:16)

O que se discute então é o enfrentamento do fato de que as relações de gênero no cotidiano circunscrevem a naturalização histórica dos papéis sociais de cada um dos sexos e, neste sentido, a masculinidade é construída a partir do discurso determinista, universal e imutável que justifica assimetrias entre homens e mulheres, a partir de suas diferenças físicas, o que garantiria, equivocadamente, uma ascendência do poder masculino sobre o feminino.

Gênero, sexualidade e raça-etnia também constituem uma articulação de vetores que resultam em exclusão, influenciando e determinando o lugar hierarquizado dos indivíduos no âmbito da sociedade brasileira. De acordo com Márcia Lima (2011) raça e etnia, assim como gênero, são construções sociais, históricas e simbólicas que não possuem fundamento biológico e que só encontram existência na realidade social, ou seja, no universo das relações entre indivíduos. Entretanto, o discurso histórico de que o povo brasileiro é fruto de um processo de miscigenação, que resultou em uma nação singular, formada por indivíduos culturalmente diversos, rebate na realidade das relações cotidianas de inúmeras práticas discriminatórias, preconceituosas e racistas,

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principalmente no que diz respeito à população negra, mas que também atinge as mulheres, e a população LGBT (lésbicas, gays, transexuais e transgêneros).

Movimentos sociais que atuam combatendo a discriminação racial, como o movimento negro e o movimento de mulheres negras, lutam contra o racismo, ao mesmo tempo em que buscam usar o conceito de raça como elemento aglutinador em termos políticos. Portanto, raça é um conceito que agrega em um grupo indivíduos com uma história em comum de modo que a autodeclaração de pertencimento a uma categoria racial é um ato individual e político.

Neste sentido, a existência da diferença, seja ela étnico-racial ou ainda de gênero e orientação sexual, diz respeito a uma possível hierarquia que se construa sobre estas diferenças e que influencie equidade de oportunidades e de distribuição de bens materiais ou imateriais na sociedade. Quando este fenômeno ocorre ele é responsável pela criação de desigualdades (de ordem racial, étnica, de gênero e orientação sexual) que ferem o princípio democrático de nossa sociedade, que se entende pautado em uma isonomia de oportunidades e justiça.

35 Capítulo 2 – Educação e inclusão social