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Notas metodológicas sobre a análise dos memoriais

Módulo IV – Relações étnico-raciais

MÉDIO SUPERIOR INCOMP SUPERIOR ESPECIALIZAÇÃO MESTRADO DOUTORADO NÃO INFORMADO

3.2.1. Notas metodológicas sobre a análise dos memoriais

A teoria sobre as pesquisas autobiográficas definem Memorial Acadêmico como “uma narrativa autobiográfica da vida intelectual e profissional, escrita em resposta a uma demanda institucional” (Passeggi, 2006:205). A autora desdobra o documento em duas opções: memorial descritivo, que apresenta uma reflexão individual demandada por um edital, e o memorial de formação, que é, na verdade, um trabalho de conclusão de curso. Este último caso se aplica ao memorial empregado no curso GDE - o texto deveria refletir o aprendizado de determinado conteúdo, recentemente aplicado. A autora afirma ainda que as duas versões de memoriais têm caráter público, fazem parte de um determinado processo avaliativo, e se convertem em documentos institucionais que podem se consultados.

É certo que ao falar de memoriais, nos referimos às memórias pessoais, o que poderia levar a pensar que a análise aqui empreendida seria efetuada com base apenas nas opiniões individuais. Entretanto, de acordo com Maria Lúcia Maurício (2009:117), a literatura sobre memórias pessoais estabelece que tal conceito faz parte de um campo

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de estudos denominado Memória Social, que determina um conjunto de fenômenos (ou instâncias sociais) da memória e o adjetivo “social” indica que tal memória está situada na interação em sociedade. Neste caso, as memórias pessoais abordadas nesta pesquisa, não se referem ao indivíduo de forma isolada, pois abrangem o campo da memória, que são constituídas pela interação na sociedade e, no caso dos educadores, são construídas também em sua prática na sala de aula e na interação com os estudantes, com a comunidade escolar e com seus pares, após a participação nos fóruns de discussão do GDE.

O acervo produzido pelos memoriais do GDE é constituído por textos autorais e a orientação é que deveriam expressar a opinião dos cursistas sobre os assuntos discutidos e sobre a pertinência do curso. As condições de produção leia-se, a pressão de ter o documento avaliado, pode envolver sobremaneira o autor do discurso, mostrando a existência de uma complexidade de questões ideológicas. Neste sentido, para analisar estes memoriais era necessário certa atenção para o fato de que o professor cursista, autor de determinado memorial, poderia ter apenas negociado, em seu discurso, os elementos abordados em uma determinada formação, conforme alertado por Carmem Oliveira e Evelyn Orrico (2005:80), sem necessariamente incorporar tal discurso em seu fazer pedagógico. Este fenômeno, na verdade, não está vinculado apenas aos documentos de avaliação. De acordo com Foucault, a prática discursiva e os poderes que a atravessam demonstram que existem variados mecanismos que controlam e regulam a produção dos discursos em nossa vida cotidiana:

(...) em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjugar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório (...) sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim não pode falar de qualquer coisa. (Foucault, 1996:8-9)

Neste sentido é importante salientar que a característica “documento de avaliação” do memorial (e de autoavaliação, mesmo que informalmente) poderia se sobrepor à sua dimensão como instrumento de formação, ou melhor, como via de reflexão sobre os conhecimentos recentemente adquiridos.

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Outra questão que perpassa a análise dos memoriais diz respeito ao que está embutido no discurso dos cursistas, no sentido das interdições. No âmbito social temos regras morais e de convivência que produzem interdições, revelando o que Foucault (1996:9) chama de “tabu do objeto” (não temos o direito de dizer tudo); “ritual de circunstância” (não podemos falar de tudo em qualquer circunstância); e “direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala” (qualquer um não pode falar de qualquer coisa). Para o autor, estes três tipos de interdição se interpõem, formando uma complexidade de observações na formação do discurso.

As regras apontadas por Foucault estão intimamente conectadas às temáticas exploradas pelo curso GDE. No caso específico dos módulos que tratam de gênero e de sexualidade e orientação sexual, por exemplo, ficou claro o entendimento de alguns dos professores cursistas de que tais temas fazem parte do âmbito privado da vida das pessoas, não sendo assunto para se discutir publicamente, com pessoas desconhecidas. E que também não são assunto para discussão na sala de aula, mas sim, com “profissionais qualificados”, fora do contexto escolar.

De acordo com o Relatório de Avaliação dos Professores online (2006), o módulo sobre sexualidade foi o mais polêmico, o que causou maior debate e “sem dúvida, o módulo mais difícil de se trabalhar”. Os professores online apontaram uma forte influência do discurso religioso como um fator inibidor, tanto da discussão, quanto da compreensão, além de que alguns cursistas “não se mostraram muito abertos a refletir e a repensar conceitos”.

Também no Relatório de Orientação Temática (2006)24, foi apontado o tema abordado como estimulante da redução da participação dos professores cursistas no fórum de discussão. Foi relatado que alguns cursistas afirmaram não entender qual a relação de questões como homossexualidade, gravidez na adolescência, aborto, por exemplo, com a realidade da prática pedagógica. Tal observação sugere que, no entendimento do senso comum, tais assuntos estariam relacionados a determinados campos do saber. Em se tratando de professores, o tratamento desses temas no âmbito escolar seria tarefa daqueles ligados à área de biologia e, em outras instancias da vida social, seria área dos profissionais da psicologia.

No caso das temáticas tratadas pelo GDE, parte-se do pressuposto que estes são assuntos da alçada dos profissionais da educação de um modo geral, uma vez que a

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tarefa de formação proposta pelo sistema escolar assume o envolvimento multidisciplinar de diversos campos do conhecimento, atuando diretamente com situações de preconceito e discriminação, dentro e fora da sala de aula. Neste caso, há uma desconstrução do senso comum, no sentido de que os temas de gênero e sexualidade não são “direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala”, ou seja, não é necessário dominar determinado sistema perito para se entender a desigualdade social. Mas é necessário que, neste caso, os sistemas peritos atuem produzindo o conhecimento positivado e que tais conhecimentos sejam apreendidos pela sociedade em geral, produzindo um processo dialético, onde a teoria influencia as práticas e vice-versa. A ponte para que tais conhecimentos sejam difundidos na escola e em outras instituições sociais, se inicia na atuação dos movimentos sociais, através da ação de representações identitárias que pressionam os setores governamentais por direitos e por igualdade de condições, enfim, protestam por políticas públicas inclusivas. Tais políticas na área de gênero e diversidade podem e devem atuar, sensibilizando a sociedade para serem traduzidos em “mecanismos” e “ações”, que visem combater crimes e eventos indesejados, como situações de violência, discriminação e preconceito de maneira geral.

88 Capítulo 4. Análise dos memoriais

O estudo dos memoriais considerou a análise do discurso do cursista sobre as duas dimensões que compõem o processo formativo: o conteúdo temático, que parte do pressuposto da construção social da noção de gênero e a estratégia de ação do GDE, a metodologia de educação a distância. O objetivo foi perceber a recepção dessas duas novas dimensões de inclusão na atuação do professor cursista, investigando se a abordagem transversal das temáticas de gênero, sexualidade e relações étnico-raciais, aliada à metodologia de estudo online, que convergiram em um conjunto de novas informações, provocaram reações nos cursistas e quais foram estas reações.

As categorias utilizadas para a análise dos memoriais foram sendo definidas a medida que a leitura dos documentos foi avançando. Ela não tem necessariamente a ver com a forma que os cursistas organizaram seus textos, já que a escrita do memorial era livre, mas sim com os objetivos definidos para esta pesquisa. Para analisar a recepção do conteúdo, as categorias utilizadas envolveram quatro dimensões do impacto do estudo desses temas transversais e procuraram apreender (1) as reflexões dos professores sobre o papel da escola e do profissional da educação em meio a um contexto de mudanças; (2) as transformações na percepção sobre as relações de gênero; (3) a ação na escola a partir do GDE; e (4) as possíveis mudanças a notadas para além do ambiente escolar.

Sobre a estratégia de ação utilizada no GDE, o foco de atenção foram as considerações dos professores sobre a educação a distância e sobre as diretrizes pedagógicas desenvolvidas para viabilizar o estudo dos temas a partir da realidade dos educadores na sala de aula.

Os nomes dos professores cursistas foram alterados, mantendo assim o anonimato das contribuições. Os depoimentos foram incluídos neste texto exatamente como foram escritos pelos professores em seus memoriais, sem qualquer tipo de correção ou adaptação.

É importante salientar que este trabalho não possui a inglória pretensão de esgotar as possibilidades de investigação contidas no material do curso GDE e, menos ainda, de homogeneizar a avaliação/apreensão dos cursistas que participaram da versão piloto, uma vez que, em função do tempo escasso disponível para a pesquisa de

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mestrado, foi delimitado um recorte para a investigação dentro do universo de professores matriculados.

4.1. Conteúdo temático