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INFÂNCIA Especificidade

6 COLORINDO A TELA DA EDUCAÇÃO COM MOVIMENTOS DE VIDA E DE OUTROS POSSÍVEIS DA PRÉ-ESCOLA

6.4 A escola e o poder: repensando a força da criação

Isa: a gente pode fazer o que quiser né tia? Pesquisadora: sim, o que quiser (momento do desenho, roda de conversações).

A escola contém poder, não temos dúvidas. Poder em várias direções e em vários sujeitos. Na verdade, poder como uma “rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (FOUCAULT, 2016, p. 45). A escola reverbera forças em ação, jogos de forças que se confrontam cotidianamente dando abertura para um mundo de possibilidades.

Mas, por que existe escola? Ou melhor, por que existe educação? Essa questão ressoa e intriga, pois, de acordo com Danelon (2015, p. 217),

(...) Por mais que essa pergunta instaure em nós uma sensação abismal de não enxergar um fim ou um solo no qual possamos apoiar nossos pés, essa pergunta remonta a uma resposta absurdamente cristalina: existe educação porque crianças nascem. Existe isso que chamamos educação porque existe também isso que chamamos infância.

A infância agrega a novidade, “esse é o perigo que toda infância carrega para nosso mundo centrado” (DANELON, 2015, p. 217), por isso a necessidade de controle e segurança, concomitantemente a necessidade da escola enquanto dispositivo (FOUCAULT, 1977, 2008) em prol de tais necessidades. Porém, seria essa a função da escola? Existe coerência dessa

função com a perspectiva do direito à educação? Não percamos de vista que a escola tem um papel social. Afinal, estamos falando de formação humana e se é humana não pode ser mecanizada. É preciso lugar e espaço para a criação.

Na realidade, felizmente a força de governo, no interior da escola, não é capaz de impedir a criação. As crianças não são, simplesmente, o que querem que ela seja, mesmo com toda imposição das leis e dos contratos pressionando seus “corpos-sentintes-pensantes” (PRANDO, 2016). Fabricam em meio às imposições e redesenham contextos, mesmo “dentro do campo do inimigo”, [...] e no espaço por ele controlado” (CERTEAU, 2014, p. 94).

Assim o fazem porque existe escoamento nessa estrutura impositiva, não é um bloco monolítico, sem fissuras, mas uma rede com ligamentos e espaços para a diferença (SCÖPKE, 2004) humana. Ademais, na escola o poder não é só da imposição, mas também da resistência, da produção e da transformação. O poder é abertura, junto às circunstâncias, ao tempo, ao espaço e ao sujeito, este com sua capacidade de diferir, o poder ganha matizes diferenciadas, é apropriado de maneiras distintas.

Assim, as crianças criam. Mesmo quando parece inviável nos fazem acreditar na construção do novo. Bastava permitir a imaginação para desenterrarmos um campo de possibilidades. Por exemplo, no momento do desenho, na roda de conversações, vimos em liberdade a imaginação. O desenho era a representação da capacidade de invenção do ser humano, na verdade demonstrava a harmonia que o ser humano possui com a arte, arte que nos faz pensar até no impossível, nas coisas mais impensadas e sem noção.

O desenho mediava nossa conversa. Enquanto falavam sobre a escola as crianças iam projetando no papel suas ideias. Assim, tivemos registros incríveis, como o de Késia expresso a seguir:

Foto 21: Desenho de Késia

Fonte: A Autora, 2017.

A gente estudava, lanchava, estudava, brincava. Vinha pra aqui brincar com a senhora e ficava aqui e na hora de ir embora eu ia embora e dava xau para as professoras. Tia aqui no meu desenho tem Princesa, Maria Clara e cavalheiro, a gente entrava e sentava no tapete, no tapete a gente voava e voava eee voltava pra cá. Aí a senhora falava pra gente a gente faria a escola do jeito que a gente queria, uma parte como cada um queria. Aqui é uma casinha de brinquedos, essa é a porta e essa é a janela e esse é o telhado. Essa é a sala mágica que tem o tapete mágico. E essas são as salas que tem as séries. Essa é a minha sala (1º). Essa é a sala do meu amigo que é perto no negócio de beber água. Esse é o lugar da gente brincar, a gente tem brinquedo e vem brincar e a gente vira uma família pra brincar (KÉSIA, explicação do desenho, roda de conversações, grifos nossos, 2017).

Para além dos dados advindos das observações, os desenhos mostravam a questão da importância dos brinquedos e da brincadeira na escola como unanimidade entre as crianças. De acordo com Moretti e Silva (2011, p. 35), “a brincadeira é algo sério para as crianças, impossível de ser encaixotada em definições objetivas e estáticas”. Brincar é um direito da criança. Portanto, a escola precisa organizar seu espaço e tempo para garanti-lo.

No contexto observado, brinquedo, brincadeira e arte não se dissociavam. A escola para as crianças podia ser um barco ou mesmo um caminhão como nos mostram os desenhos a seguir:

Foto 22: Desenho de Power Rangers

Fonte: A Autora, 2017.

Foto 23: Desenho de caminhão

Vemos que até desenhando e imaginando as crianças brincam, pois brincando a criança pode ser o que quiser, sem limites para as possibilidades (PRADO, 1999). Vejamos que até os nomes escolhidos por elas mesmas já mostravam essa força criadora:

Foto 24: Desenho de Abacaxi

Fonte: A Autora, 2017.

Percebemos nos desenhos que os projetos de escola sinalizavam o gosto pelo meio ambiente, pelas árvores, pelo ar livre. As crianças sinalizavam a necessidade de ar, que queriam um ambiente seguro, mas como diz Faria (1998, p. 100) “não precisa ser ultra- protetor”, pois precisam de espaço para espontaneidade e exercício do poder de criação.

Fonte: A Autora, 2017.

Foto 26: Desenho de Isa

Foto 27: Desenho de Vitória

Fonte: A Autora, 2017.

As crianças mostravam-se verdadeiros artistas. Mesmo sem intenção, nos ensinavam com suas artes acerca da riqueza de suas especificidades e de suas diferenças. “O maior ensinamento da arte parece ser mesmo este; o de que cada obra de arte é autônoma, única e insubstituível, assim como cada ser, cada pensador (...)” (SCHÖPKE, 2004, p. 17). Se criam, as crianças fazem arte e ao fazê-las expõem e afirmam suas singularidades interrompendo padrões, verdades e silêncios.

Ao criar, as crianças gritam, inflamam, até mesmo desafinam para compor. Se as escutamos conseguimos elevar o pensamento ao infinito. Pensamento que não se enquadra em modelos prévios, que luta para se manter livre dos modelos da representação, que é uma máquina de guerra nômade agindo contra toda invasão de pensamento (SCHÖPKE, 2004). Pensamento como uma fenda no meio do caos, um desmanche do que está montado, uma ferida para a nascente de outras versões.