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INFÂNCIA Especificidade

5 PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO

5.3 A hospedagem do estrangeiro

(...) quando entramos num lugar desconhecido, a emoção sentida é quase sempre de uma indefinível inquietude. Depois começa o lento trabalho de familiarização com o desconhecido, e pouco a pouco o mal-estar se interrompe. Uma nova familiaridade se segue ao susto provocado em nós pela irrupção de outro (DUFOURMANTELLE, 2003, p. 28).

Quem nunca se sentiu estrangeiro, ainda que na sua própria terra, com sua própria gente? Isto é, pensando estrangeiridade (KOHAN, 2007) para além da dimensão física, para além de estar em outro espaço, em outro lugar, no sentido literal da palavra.

Falamos de um sentir-se fora, independente do espaço e do tempo. Um incompatível, incoerente, um desencaixe, um estranho, um ser fora, mas que desejava entrar. Não porque tornou-se um mesmo, mas porque foi aceito e considerado na sua especificidade.

Basta pensarmos um pouco e vemos logo que é algo comum. Assim, acreditamos que fica mais fácil falarmos de estrangeiridade, sobretudo estrangeiridade voltada à infância, pois a infância é um estrangeiro. Um estranho no mundo à procura de hospitalidade. Mas a questão é: como efetivar essa hospitalidade (DERRIDA, 2000, 2003, 2005)? Como incluir o estrangeiro sem que perca aquilo que o marca, a diferença, a singularidade? Como tratá-lo sem a ambição de destituir sua outridade (SKLIAR, 2003)?

Kohan (2007, p. 119) nos diz:

[...] Os infantes são estrangeiros, falam outra língua, não falam a nossa língua; contudo, temos que acolhê-los. Eis a questão principal de toda educação: como acolher a esses infantes estrangeiros? Como receber a infância? Que perguntas fazer-lhes? Que língua falar-lhe? Que convite propor-lhe? Com que forças acolhê-la? Qual hospitalidade oferecer-lhe? Como não sucumbir perante a tentação de acabar com a infantilidade da infância, em nome da tolerância, da solidariedade, do diálogo, e de tantas outras palavras bem pronunciadas? Quando a infância assoma, as perguntas não são fáceis de serem respondidas.

Há que se considerar que ver a infância na perspectiva da estrangeiridade não significa partir do princípio de que é uma terra inabitável, fora do mundo. Muito pelo contrário, é habitável, pertence ao mundo, porém é outra terra, a lógica que a rege é multifacetada, é uma derivada dos encontros, das relações, das experiências. Logo, toda ação voltada à hospitalidade deve estar pautada na consideração dessa especificidade.

Falamos isso por que a tendência é acolher o estrangeiro na tentativa de torná-lo como o mesmo. Alguém semelhante. Contudo, o sentido de hospitalidade, fundamentado em Derrida (2000, 2003, 2005), ao qual nos apoiamos, é a acolhida que não ofusca a diferença, muito menos a menospreza.

Entendemos a hospitalidade como reciprocidade. Uma relação mútua, com idas e vindas, sem ser encarada como uma imposição, ou um dever:

(...) a hospitalidade não pode pagar uma dívida, nem ser exigida por um dever: grátis, ela não “deve” abrir-se ao hóspede nem “conforme o dever”, nem mesmo, para usar ainda a distinção Kantiana, “por dever”. Essa lei incondicional da hospitalidade, se pode pensar nisso, seria então uma lei sem imperativo, sem ordem e sem dever (DUFOURMANTELLE, 2003, p. 73).

A hospitalidade é uma relação, um encontro. Logo, exige a tentativa de compreender e fazer-se compreender. Mutualidade e não imposição, pois,

(...) o outro, o estrangeiro, aquele que não fala a minha língua e cuja língua também não falo, traz a questão da tradução. Somos todos desterrados em nossa própria terra, carregando nossas línguas que nos envolvem como uma pele. Babélicos somos todos. E como viver em Babel? (DERRIDA, 2005, p. 54).

Hospedar implica, portanto, a tradução (DERRIDA, 2005). Mas, será que “devemos exigir ao estrangeiro compreendermo-nos e falar nossa língua, em todos os sentidos desse termo, em todas suas extensões possíveis, antes e para poder acolhê-lo entre nós?” (DERRIDA, 2000, p. 21-22). Não é bem assim. O ato de tradução é como seguir pegadas, sabendo que esse percurso não tem fim. É a constante tentativa de aprender a língua do estrangeiro e então aproximar-se, traduzir e aprender, pois

Aprender é traduzir. Traduzir é inventar. Inventar é inventar-se. Inventar-se é escutar o que não se escuta, pensar o que não se pensa, viver o que não se vive. A infância fala uma língua que não se escuta. A infância pronuncia uma palavra que não se entende. A infância pensa um pensamento que não se pensa. Dar espaço a essa língua, aprender essa palavra, atender esse pensamento pode ser uma oportunidade não apenas de dar um espaço digno, primordial e apaixonado a essa palavra infantil, mas também de educarmo- nos a nós mesmos, a oportunidade de deixar de situar sempre os outros na outra terra, no des-terro, no estrangeiro, e poder alguma vez sair, pelo menos um pouquinho, de nossa terra pátria, nosso cômodo lugar. Essa parece ser uma das forças da infância: a de uma nova língua, de um novo, outro, lugar para ser e para pensar, para nós e para os outros (KOHAN, 2009, p. 59).

Pensar a tradução como uma captação total do outro é correr o risco de, como disse Skliar (2014, p. 29), “reduzir o outro a algumas poucas palavras”, sendo que traduzir concomitantemente implica a intraduzibilidade. A incapacidade de desvelar o outro, pois, na medida em que a tradução acomoda o leitor camuflando as diferenças, as acentua cada vez mais. Afinal, é apenas uma tradução e toda tradução é também diferença (SKLIAR, 2014).

Por isso, é imprescindível a hospitalidade. Mas, não são as crianças que devem vir a nós, mas nós é que temos que ir às crianças. Sair “da nossa terra pátria, nosso cômodo lugar” (KOHAN, 2009, p. 59). Sair não simplesmente geograficamente, mas principalmente, como bem colocou Skliar (2014, p. 150), “sair de si”, dando tempo e lugar para a diferença.

O convite é para abrir um livro. Esse é o gesto. “Um gesto que abre um espaço algo mais tíbio e mais profundo que a pronúncia; mais suave e mais longo que presença do silêncio; mais alto e mais indisciplinado que a pontuação” (SKLIAR, 2014, p. 64). Ao abrir

um livro temos que confessar que se abre um mundo, à espera de ser lido. É como uma hospedagem, uma acolhida, que inclui uma tradução para aprender, não decifrar. Traduzir para chegar pertinho e experimentar um modo de pensar outro, tal como uma degustação, aguçando os sentidos, dando espaço para a experiência falar e assim tecer os fios de um educar e educar-se.