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A escolha da indústria: Gêneros, homogeneização e totalização

PARTE I – REPETIÇÃO, GÊNEROS E TOTALIZAÇÃO NA INDÚSTRIA

2. A escolha da indústria: Gêneros, homogeneização e totalização

Em Feitiço do tempo (1993), dirigido por Harold Hamis, Phil Connors (Bill Murray), um repórter egocêntrico, recebe a maldição de ficar preso em uma cidade que detesta, revivendo sempre o mesmo dia ad infinitum. O que se destaca desde o início da diegese é que, sendo o filme pertencente ao gênero comédia romântica, ele aparentemente não se enquadra como uma personagem estereotipada, romântica, gentil e altruísta; ademais, em um primeiro momento, ao contrário do que é de praxe nesse tipo de filme, não aparenta sofrer grandes modificações (ou mesmo estar disposto a isso). Dessa forma, o elemento mágico da narrativa fílmica cumpre ironicamente o papel da Indústria cultural, de barrar a progressão da personagem, até que ela esteja pronta para desempenhar sua função da forma mais lucrativa, em se considerando o que seriam os desejos de consumo do público-alvo.

No entanto, Connors não aceita seu destino tão facilmente, tentando sobrepor o indivíduo ao mercado. Ao descobrir sua condição, ele de início não só recorre nos mesmos

erros, mas também passa a deixar de cumprir as funções que realizava anteriormente, como

ser responsável pelo movimento da diegese ao realizar seu trabalho, se não com boa vontade, pelo menos com competência. Dialogando com dois habitantes relativamente pobres da pequena cidade, queixa-se de que, havendo chegado àquele lugarejo, os dias são sempre iguais e repetitivos, ao que recebe a resposta de um deles que esse é também o resumo de suas vidas, sugerindo a correspondência entre diferenças sociais e o cinema voltado para a classe média estadunidense, de forma que só personagens mais proeminentes (financeiramente, bem como em tempo de tela) têm algum espaço de manobra para suas vidas, mesmo que, no limite, todos terminem por obedecer ao capital.

Após reconhecer a impossibilidade de avançar sem ser enquadrado, ele tenta cumprir falsamente seu objetivo na tela de ganhar o coração da heroína com gestos e emoções falsos, construindo o dia a partir de dicas dadas anteriormente por ela (por exemplo, ele descobre coisas de que ela gosta num dia e realiza-as no seguinte);

novamente, contudo, ele não é bem sucedido, pois há empecilhos na suspensão de descrença do público para heróis que fingem o que não são. Após verificar que a mudança superficial não vai libertá-lo de seu problema sisífico, ela passa a realizar ações para mudar o gênero do filme: engaja-se em perseguições para transformá-lo em um filme de ação, rouba um saco de dinheiro de um carro forte para forçá-lo a ser um filme de heist16, tenta frustradamente salvar a vida de um mendigo que inevitavelmente morre, entra numa depressão que caracterizam um melodrama e chega a cometer suicídio várias vezes, sempre acordando às seis da manhã no mesmo lugar.

Finalmente, reconhecendo que não há escapatória, dedica-se a desenvolver sua sensibilidade, aprendendo a falar línguas estrangeiras, a tocar piano e a esculpir gelo, lendo literatura e dedicando boa parte de seu dia a ajudar os habitantes daquela cidadezinha sem esperar retorno (em uma recaída, ele reclama de nunca ter recebido um agradecimento de um menino que cai de uma árvore, diariamente), até tornar-se o herói esperado para um filme daquele tipo, podendo, então ganhar o coração da garota e seguir com a diegese.

A estrutura narrativa desse filme ilustra bem o que acontece nas esferas de poder dos grandes estúdios cinematográficos, que barram filmes não facilmente redutíveis a um gênero como incertos em sua capacidade de conquistar um nicho específico do público consumidor e arriscando-se, assim, a não recuperar o investimento milionário que foi feito para sua realização. Então, o foco desse capítulo é discorrer sobre algumas estratégias dessa indústria da cultural, em especial a partir das teorizações de Adorno (2001) e sua colaboração com Horkheimer (1985). Elas incluirão três temas principais, a criação de um estilo total, o esquematismo kantiano e as estratégias específicas de comercialização desses produtos.

Vale à pena começar, antes de adentrar a Indústria cultural propriamente dita, pensando como ela pôde se configurar a partir do mercantilismo do século XVIII. Antes, o artista dependia da boa vontade dos mecenas, ficando preso aos objetivos destes e perdendo parte da autonomia que lhe era necessária para construir uma grande obra. Com o advento

16 O filme de heist, um dos poucos gêneros surgidos na Inglaterra, consiste em planejar e executar um assalto

do mercantilismo, o artista não fica mais sujeito à vontade de um único ser, mas agora depende de um senhor sem rosto, o mercado, de forma que

As demandas do mercado passam por tantas mediações que o artista escapa a exigências determinadas, mas em certa medida apenas, é verdade, pois ao longo de toda história burguesa esteve sempre associado à sua autonomia, enquanto autonomia meramente tolerada, um aspecto de inverdade que acabou por se desenvolver no sentido de uma liquidação total da arte (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 147).

Dessa forma, a primeira ressalva a ser feita é a de que a chamada Indústria cultural, na realidade, é o resultado de um ajuste nas forças do mercado, não havendo, por trás dela, qualquer tipo de mente diabólica conspirando para controlar o mundo. Segundo, a autonomia da arte dependia da tensão entre esses dois pólos, a liberdade proporcionada por um mercado sem exigências diretas e a pressão de todos os lados para que a obra comprometa sua autonomia expressiva em nome da busca do lucro. Para Adorno e Horkheimer, a Indústria cultural é fruto de um momento específico de desequilíbrio dessas duas forças, em que a busca do lucro venceu o desejo utópico que a autonomia artística proporcionava. No entanto, é importante reconhecer que ambas, a chamada alta cultura e a indústria cultural, são “fenômenos objetivamente relacionados e dialeticamente interdependentes, [como] formas gêmeas e inseparáveis da fissão da produção estética sob o capitalismo” (JAMESON, 1992, p. 14), de onde a força da teoria estava justamente “na demonstração da inesperada e imperceptível introdução da estrutura de commodity na forma e conteúdo próprios da obra de arte em si” (ibid., p. 12).

Assim, o termo Indústria cultural foi cunhado com duas funções diretas. A primeira delas foi a de distanciá-lo da expressão corrente Cultura de Massas17, pois este último poderia ser interpretado como uma cultura espontânea que surgisse das massas, ao contrário de uma cultura racionalmente pensada e controlada para atingir as massas de maneiras ideológicas específicas. A segunda função desse termo foi a de juntar duas partes contraditórias em si, a cultura, definida como manifestações livres e autônomas nos moldes dos Românticos, e a indústria, com a aparência formulaica e repetitiva de uma linha de

17 Mesmo que o próprio Adorno, em outros momentos (2001), e seus seguidores, como Jameson (1992), por

produção. No entanto, o fato dessa expressão ter se tornado um nome familiar [household

name], sem estranhamento, prova o avanço da indústria em relação à cultura.

A Indústria cultural seria, nesse sentido, o momento de desequilíbrio dessas duas forças opostas, em que a lógica do sistema social sacrifica a lógica da autonomia e a arte passa a admitir abertamente seu nível de mercantilização, orgulhando-se de prefigurar como objeto de consumo (cf. HULLOT-KENTOR, 2010, p. 7). Nesse aspecto, dentro da lógica capitalista, a arte assume um alto valor de uso hierárquico, acima dos produtos meramente industrializados, por sua classificação como um item supérfluo, uma pedra preciosa.

No entanto, mesmo não sendo considerada, a priori, uma produtora de itens de consumo essenciais, a Indústria cultural parte de uma idealização de acessibilidade para todas as pessoas. Esse é a base da argumentação da imposição de “métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 114), a partir da promessa de barateamento individual, e consequente democratização18, que a produção em massa permitiria a cada DVD ou livro de fotos.

Outro argumento falacioso da Indústria cultural seria a de que os padrões dos produtos culturais teriam primeiramente saído das necessidades dos consumidores, motivo pelo qual não haveria resistência para seu consumo. No cinema, por exemplo, isso seria reforçado pela existência de ciclos de produção, onde um produto específico atingiria um sucesso inesperado e desencadearia uma série de produtos com características similares, também consumidos com intensidade até atingir certa saturação, quando seriam substituídos por outros. Contudo, essa lógica de necessidade dos consumidores cai por terra com o exame das escolhas de produtos específicos. Para Adorno e Horkheimer (ibid., p. 115), a lógica da Indústria de excluir certos tipos de expressão em detrimento de outros é verificada a partir da transformação de certos produtos para a lógica do sistema social,

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A ironia da chamada democratização do consumo estaria justamente no barateamento desses produtos homogeneizados, partindo de um pressuposto capitalista de que a escolha das pessoas se basearia em uma distorção da relação de custo e benefício em que a quantidade valeria mais que a qualidade, o que permitiria a todos consumir os produtos mais massificados e impediria, ao mesmo tempo, a compra de produtos diferenciados.

como as adaptações de obras literárias canônicas para o cinema. Adorno (2001, p. 67) ainda complementa que “Toda a cultura de massa é essencialmente adaptação”, o que não significa que toda adaptação é necessariamente maléfica, do ponto de vista da estultificação da plateia19.

Em se tomando como exemplo a adaptação recente de Orgulho e preconceito (2005), dirigida por Joe Wright, pode-se ver que a meta não é exatamente a exclusão de produtos com temas menos distantes do grande público20, mas, pelo contrário, esse tipo de adaptação tem um lugar de fetiche na Indústria, pavoneando-se inclusive como substituto para a leitura do romance. No entanto, em termos formais, apesar da maioria dos eventos importantes do enredo não ter sido muito modificada nem rearranjada, o tom irônico do romance original de Jane Austen é abrandado em prol do gênero romance no filme, eliminado, assim, quase toda a crítica social presente na obra original e passando a chancelar uma falsa projeção de amor, pulsão a ser frustrada na vida real, reprimida e utilizada na produção do trabalho.

O resultado dessa falácia da Indústria cultural em relação à suposta necessidade da plateia é a homogeneização das formas cinematográficas, negando qualquer possibilidade de inovação estética e desembocando na “reprodução do que é sempre o mesmo” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 126), em um sentido diverso do que negava Kierkegaard e mais próximo de Nietzsche. O pesadelo para Adorno e Horkheimer (1985, p. 118), nesse caso, é o fato de não haver mais qualquer tipo de surpresa na estruturação da cultura, de forma que essa repetição infindável do mesmo passa a ser a única reconhecida como boa, funcionando como um valor estilístico total a priori. Dessa forma, o chamado estilo mainstream de se fazer cinema, frequentemente criticado por ser uma espécie de antiestilo, já que em geral não permite a manifestação de expressões individualizadas, é na realidade um estilo totalizante e inflexível, completando o ciclo onde “as formas

19 Há, inclusive, um chiste em relação às adaptações, dito por quem estuda cinema: bons livros dão péssimas

adaptações, enquanto bons filmes adaptados saem de livros medíocres, sendo raríssimos casos em que ambos seriam de boa qualidade, como o da adaptação de Coração das trevas, escrito por Joseph Conrad em 1902, para o filme Apocalypse now dirigido por Francis Ford Coppola, em 1979.

20 Se fosse esse o caso, não haveria adaptação de livros de alto acabamento estético, como Sra. Dalloway

(1997) ou Orlando, a mulher imortal (1992), baseados em romances de Virginia Woolf, ou Bloom (2003) e a série de TV dinamarquesa The Wake (2000), baseados respectivamente em Ulysses e Finnegan’s Wake, de James Joyce.

tradicionais e mais velhas da atividade humana são reorganizadas e ‘taylorizadas’ instrumentalmente, fragmentadas e reconstruídas analiticamente de acordo com os vários modelos de eficiência” (JAMESON, 1992, p. 10), por fim revelando-se como “a meta do liberalismo” (ADORNO, HORKHEIMER, 19985, p. 123) de homogeneizar a humanidade e disciplinar os consumidores.

Aliás, as expressões repetidas nas propagandas de veiculação dos produtos, “o novo filme de” ou “nova tendência em”, servem para encobrir o fato de que, na verdade, não há muita novidade nas diegeses cinematográficas, exceto em se contando as novas formas de esconder que isso acontece. Por exemplo, nos filmes de ação, a ausência de elementos diferenciados é manipulada por uma intensificação da linguagem, pela curva dramática mais íngreme ou pelos planos fechados que confundem a percepção dos espectadores. Além disso, essa tendência frenética dos produtos narrativos recentes confirma a tese de que a “máquina gira sem sair do lugar” (ibid, p. 126), onde o que se tem é virtuosismo sem conteúdo de qualquer natureza. Assim, a máxima de Aristóteles (1996, p. 56) de que um dramaturgo deveria primar pelo esmero da linguagem, mas somente quando isso não atrapalhasse o andamento da peça, é extremada ao ponto de toda a narrativa poder ser reduzida ao virtuosismo puro, sem função estética.

Esse girar frenético sem sair do lugar, na forma de um fluxo ininterrupto, dificulta a contemplação necessária para uma crítica coerente, de modo que toda a energia do espectador em geral vai para a apreensão simples daquele produto, por si só exigindo, “é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 129). A dificuldade em se apreender a forma através do fluxo21, aparentemente sem começo ou fim e sem diferenciação entre o que seria o produto e os anúncios publicitários, só pode, a princípio, ser atacada a partir de uma atitude arbitrária e violenta, marcando forçadamente o

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início e o fim, além de outros movimentos como o de fazer a découpage22 do produto, para que se possa, então, tentar estetizar a estrutura do objeto.

Chega-se, aqui, a um dos aspectos mais interessantes da obra de Adorno e Horkheimer (1985) sobre a Indústria cultural, de que se pode contestar as ideias simplórias de uma divisão clara entre o que seria a Arte verdadeira, complexa, autônoma e com um grau de acabamento elaborado, e a Indústria cultural, uma expressão predominantemente comercial, sem grande complexidade estética. Além da diferença na dinâmica da autonomia, dois aspectos saltam aos olhos como diferenciadores23 entre as duas, a forma, podendo ser caracterizada a partir da harmonia entre suas partes e o todo, e a função que assume perante seus consumidores.

Em termos de estrutura, pode-se traçar uma linha mais ou menos divisória entre as duas a partir de como é estruturada a harmonia entre o todo e as partes individuais. Para Adorno e Horkheimer (ibid., p. 118), a arte verdadeira tem uma constituição bastante específica entre partes e todo, de maneira que cada seção de uma obra de arte se sustenta por si mesma, independentemente, ao passo que contribui para a completude harmônica e, no entanto, não previsível; por outro lado, as obras pertencentes à indústria cultural têm uma “harmonia de antemão”, desnecessariamente repetida e sem surpresas24, em que o “todo se antepõe inexoravelmente aos detalhes como algo sem relação com eles[...]. O todo e o detalhe exibem os mesmos traços, na medida em que entre eles não existe nem oposição nem ligação”. Assim, considerando-se a discussão entre a letra e o espírito da arte, pode-se dizer que, enquanto o todo (o espírito) na arte verdadeira apresenta-se como maior que suas partes constitutivas (a letra), na Indústria cultural o contrário é válido, de forma que cada

22 Termo técnico do cinema, que consiste em dividir uma cena em seus planos fundamentais, paralisando

forçadamente seu fluxo.

23 Foi uma opção minha reduzir essa discussão às principais diferenças que aparecem no capítulo “A Indústria

cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” da Dialética do esclarecimento, por motivos de espaço; a discussão aprofundada da Teoria estética de Adorno (1997), além de fugir ao escopo deste trabalho, tomaria centenas de páginas.

24 Lembrando que, em 1945, à época da escrita da Dialética do esclarecimento, as sessões de cinema eram

estruturadas em loop, com um programa formado por filmes, jornais, desenhos animados, etc., em sequência, e as pessoas podiam entrar a qualquer momento e ficar na sala de cinema o tempo que desejassem, em geral até completarem todo o ciclo, tornando essa previsibilidade na estrutura narrativa dos filmes uma característica necessária pelo menos até a década de 1960, quando Alfred Hitchcock exigiu que os espectadores não pudessem entrar após o início de Psicose (1960), para não estragar a surpresa do final.

seção, por sua concisão de apresentar a prévia de toda a linha narrativa, aparenta ser maior que o todo, em seu ciclo de movimentos repetitivos e previsíveis.

Em termos de funções exercidas, a primeira distinção marcante entre as duas é que a arte verdadeira promove uma espécie de catarse sublimal, enquanto a Indústria cultural cambiou a sublimação em repressão (ibid., p. 131). Ao sublimar a energia psíquica, a arte promove um esvaziamento das tensões cotidianas, contribuindo para o melhor funcionamento da psique e causando um prazer verdadeiro (apesar de sempre parcial); por outro lado, ao reprimir essas energias, mesmo com uma máscara de desejo realizado (cf. JAMESON, 1992, p. 25), o consumidor da Indústria cultural aumenta a tensão em seu aparelho psíquico, provocando uma intensificação nas tendências neuróticas das pessoas e retendo a energia pulsional, o que se inicia prazerosamente, mas logo passa a causar desconforto, isso tudo para essa energia poder ser utilizada posteriormente pelo capital na forma de uma maior dedicação ao trabalho. Essa delimitação da verdadeira manipulação exercida pela indústria em seu público

nos permite compreender a Cultura de Massas não como uma distração vazia ou “mera” consciência falsa, mas antes como um trabalho transformacional sobre ansiedades e fantasias sociais e políticas que devem, então, ter uma presença efetiva no texto da Cultura de Massas para subsequentemente ser “gerenciado” ou reprimido (ibid., p. 25).

Colin Campbell (2001, p. 90) reconstrói essa diferença entre sublimação e repressão na dicotomia satisfação e prazer. Enquanto aquela sugere “um processo de ser ‘impelido’ a partir de dentro a agir com o fim de restaurar um equilíbrio perturbado”, este “implica um outro, de ser ‘puxado’ de fora com o fim de experimentar um estímulo maior”. Ademais, Campbell (ibid., p. 91), em paralelo com a “arte viva” de Adorno, afirma que só a utilização profunda e real dos objetos pode provocar satisfação, o prazer viria apenas do estímulo aos sentidos, adiando o equilíbrio interno (v. ibid., p. 129).

Além disso, em termos de repetição, vale uma comparação das duas em termos de novo e conhecido. Os mecanismos narrativos usados pela arte verdadeira, mesmo quando já

conhecidos25, em geral propõem um rearranjo da tradição recente. Por exemplo, temos, no início do século XIX, a obra Northanger abbey, publicada em 1818 por Jane Austen, em que os enredos e os tipos de personagens já eram bastante conhecidos de grande parte da população leitora da época, por dialogarem diretamente com outras obras, como a de Ann Radcliffe, Samuel Richardson ou Henry Fielding, no entanto inovando principalmente em relação a uma combinação da posição do narrador nos romances e da ironia com que os fatos são narrados, que aproximam as personagens de Richardson e a dramaticidade de Radcliffe com a ironia de Fielding.

Por outro lado, a Indústria cultural segue mais ou menos o contrário desse percurso. As tentativas de se moldar novidades na expressão do cinema, por exemplo, são frequentes, através da cooptação de diversas tecnologias como, hoje, a computação gráfica e a melhoria na qualidade de gravação e edição de som; no entanto, essas novas tecnologias de expressão são quase sempre subutilizadas, sem qualquer projeto estético que escape ao comum, limitando-se a repetir os mesmos enredos e as mesmas funções narrativas da tradição recente, com, no máximo, modificações na velocidade visando ludibriar a plateia acerca das repetições, ao invés de explorar as possibilidades tecnológicas em sua plenitude.

Por isso, um erro bastante comum na crítica cinematográfica de hoje é o de desconsiderar os aspectos formais do texto em detrimento das interpretações que considerem somente aspectos temáticos (ou, pior, técnicos) do filme. A leitura da construção dos componentes da narrativa deve ser considerada in toto, ao contrário das relações temáticas, posto que, por vezes, aquelas contradizem a essas. Por exemplo,