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JULES MICHELET E A MAGISTRATURA DA HISTÓRIA

A ESCRITA COMO FORMA DE AÇÃO: A TESSITURA D´O POVO

I

“Os que surgem assim, com a seiva do povo, não deixam de trazer para a arte um grau novo de vida e rejuvenescimento, ou, pelo menos, um grande esforço. Em geral, põem seu alvo mais alto e mais longe que os outros, consultando pouco suas forças, mas bastante seu coração. Seja esta minha parte no futuro, não ter atingido, mas assinalado o alvo da história, ter-lhe dado um nome que ninguém lhe havia dado. Thierry via nela uma narração e Guizot uma análise. Chamei-a ressurreição, e este nome permanecerá.”

JULES MICHELET335

Michelet foi um autor, antes de tudo, político. Sua visão era simples, mas não simplista, baseada em oposições que considerava reais, como matéria e espírito, individual e social, natureza e cultura. Havia sempre um fluxo ascendente de progresso, de História, e as forças que tentavam impedi-lo deveriam ser rejeitadas e combatidas, pois se oporiam a uma elevação do inferior em direção ao superior.

Sua maneira de escrever, “pulsional” na visão de Georges Duby336, bem como as palavras com as quais pontuava seu discurso, como tantas profissões de fé enfáticas, lembremos que eram lançadas contra outras palavras. No campo da política, o objetivo do historiador era sem dúvida sensibilizar os franceses, e talvez o mundo inteiro, em relação às injustiças cometidas pelos escritores, artistas, médicos, padres e intelectuais que se debruçavam sobre o “povo” para notar-lhe seus estranhos costumes, as maneiras que ainda tinha de se vestir, de se alimentar, de cortejar, de sonhar o mundo.

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MICHELET, Jules. O Povo. São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 20. Grifos do autor.

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O historiador acreditava na virtude da palavra escrita. O livro continuava a ser para ele o instrumento revolucionário por excelência, e é por isso que a classe letrada arcava com a pesada responsabilidade de ter sido incapaz de desenvolver uma verdadeira literatura popular e republicana. Assim, sua obra foi para uns o “medicamento social” que o médico prescreve “da mesma maneira que o láudano ou a atropina”: a ética forte e científica que traria remédio aos males sociossomáticos.

“Este livro é mais que um livro; sou eu mesmo”337. É com essa afirmação que Michelet inicia Le Peuple, obra dedicada ao amigo Edgar Quinet, “livro-testemunho”, denunciador das agruras da vida no século XIX. Nele, a história da França, ou, pelo menos, a história da sociedade industrial francesa oitocentista, é uma “auto-representação”, no sentido de que o conhecimento de uma determinada realidade remete a uma experiência pessoal, sem a qual nada é dado a conhecer. E prosseguia na mesma frase: “Sou eu e é você, meu amigo, ouso dizer. Conforme você observou com razão, nossos pensamentos, comunicados ou não, estão sempre de acordo. Vivemos com o mesmo coração...”338.

Por suas raízes industriais e as de Quinet, militares339, declarou que ambos representavam as duas faces modernas do “povo” e seu recente advento, e que merecia, por isso, o reconhecimento como representante do homem moderno, apto, nesse sentido, a falar dele, ao que se seguia o testemunho de fazer parte desse povo, sofrer com ele as vicissitudes que atingiam os mais humildes. Natural, assim, a sua preocupação em relatar a História desse povo, já que havia compartilhado de suas desventuras e, portanto, necessitava recolocar a verdade em relação a esses homens. Ao declarar-se “povo”, Michelet afirmava: “Passei então a consultar os homens, a ouvi-los falar da própria sorte, a recolher de sua boca o que nem sempre se encontra nos escritores mais brilhantes, as palavras do bom senso”340.

Essa filia com as classes humildes teria paralelo na sua própria história. As duas famílias de que procede, uma da Picardia e outra das Ardenas (Os Michelet eram provenientes de Laon; os Millet de Renwez, nas Ardenas), eram originalmente camponeses que mesclavam à agricultura uma certa indústria. Como eram famílias muito grandes (doze, dezenove filhos), boa

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MICHELET, Jules. O Povo, op. cit., p. 01.

338

Ibid.

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Michelet refere-se ao pai de Quinet, comissário militar sob o Diretório, o Consulado e o Império, e a seu próprio pai, operário e depois mestre impressor.

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parte dos irmãos do pai e da mãe de Michelet não quis se casar para facilitar a educação de alguns dos meninos que iam para a escola. Seu avô paterno, professor de música em Laon, reuniu suas pequenas economias, depois do Terror, e foi para Paris, onde seu pai era funcionário da tipografia que imprimia papel-moeda (assignats). Ao invés de comprar terras, como tantos outros faziam, confiou o que tinha à sorte de seu filho mais velho, Jean Furcy, pai de Michelet, aplicando tudo num estabelecimento tipográfico que se viu sujeito aos imprevistos da Revolução. Um irmão e uma irmã de Furcy não se casaram para facilitar o negócio, mas seu pai esposou Angélique- Constance Millet e Michelet nasceu em 1798 no coro de uma igreja de religiosas, ocupada então pela tipografia da família341:

“A faculdade do devotamento, a força do sacrifício, eis aí, confesso-o, minha medida para classificar os homens. Quem a tem no mais alto grau está mais perto do heroísmo. As superioridades do espírito, que em parte resultam da cultura, nunca podem ser comparadas com esta faculdade soberana.

A isso costuma-se responder: ‘As pessoas do povo são geralmente pouco previdentes; seguem um instinto de bondade, o impulso cego de um coração bondoso porque não adivinham o que isso lhes pode custar’. Ainda que a observação fosse justa, não destruiria a que podemos fazer também a respeito do devotamento perseverante, do sacrifício infatigável de que as famílias trabalhadoras dão freqüente exemplo, devotamento que não se esgota nem mesmo diante da absoluta imolação de uma vida, mas que continua freqüentemente de uma a outra ao longo das gerações.

(...) Esta é uma rara ocasião de reconhecer os sacrifícios perseverantes, heróicos, que minha família fez por mim, e de agradecer a meus parentes, pessoas modestas, algumas das quais envolveram em obscuridade seus dons superiores, e só quiseram viver em mim.”342

No começo a tipografia prosperou, alimentada pelos debates das assembléias, pelas notícias dos exércitos, mas por volta de 1800 foi atingida pela supressão dos jornais. Só foi permitido ao pai de Michelet manter um jornal eclesiástico, mas a empresa teve muita despesa inicial e a autorização foi bruscamente retirada para ser dada a um padre que Napoleão achava de confiança, e que logo o atraiçoou. Com a redução do número de impressores, a família do historiador começou a imprimir para os credores algumas obras pertencentes a seu pai. Como não

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A capela abandonada das religiosas de Saint-Chaumont, Rue de Tracy, 16, esquina da Rue Saint-Denis, seria demolida em 1907.

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tinham empregados, fizeram eles mesmos o trabalho: o pai, ocupado fora, não podia ajudar, a mãe, doente, encadernava, cortava e dobrava, Michelet, com então doze anos, compunha, e o avô, muito fraco e velho, ocupava-se do duro trabalho da prensa e “imprimia com suas mãos trêmulas”. A esse respeito, Michelet diria mais tarde: “Muito solitário e muito livre, entregue totalmente a mim mesmo graças à indulgência excessiva de meus pais, eu era todo imaginação”343. E concluiria: “A mais forte impressão da infância, depois dessa, foi o Museu dos monumentos franceses, tão desastrosamente destruídos. Foi lá, e em nenhuma outra parte, que pela primeira vez tive a viva impressão da história”344.

Michelet dizia que entre duras privações, “muito superiores às que suportam os operários comuns”, ele tinha compensações:

“(...) a bondade de meus pais, sua fé em meu futuro, aliás verdadeiramente inexplicável, quando se pensa no quanto eu era pouco avançado. (...) Nasci como uma erva sem sol entre duas pedras de calçada de Paris (...) mas essa erva conservou sua seiva, tanto quanto aquela dos Alpes. Meu deserto em plena Paris, meu livre estudo e meu livre ensino (sempre livre e por toda parte o mesmo) me engrandeceram sem me mudar. Quase sempre aqueles que sobem perdem isso, porque se transformam; tornam-se mistos, bastardos; perdem a originalidade de sua classe sem adquirir a de outra. O difícil não é subir, mas subir permanecendo o mesmo.”345

As provações da infância estiveram sempre presentes na vida de Michelet, que teria guardado do trabalho, de uma vida áspera e laboriosa, “um profundo sentimento do povo, o pleno conhecimento do tesouro que existe nele: a virtude do sacrifício”346, bem como a terna lembrança das “almas de ouro” que conheceu nas mais humildes condições. Por essa razão, reivindicaria ao historiador o papel de ressuscitador, por fazer falar os silêncios que funcionam como significantes dos mortos:

“Jamais em minha carreira perdi de vista esse dever do historiador. A muitos mortos esquecidos dei a assistência que eu mesmo sinto necessitar.

343 Ibid., p. 13. 344 Ibid., p. 14. 345 Ibid., pp. 14, 15 e 19 respectivamente. 346

Eu os exumei para uma segunda vida. Vários não haviam nascido no momento que lhes teria sido propício. Outros nasceram às vésperas de circunstâncias novas e surpreendentes que vieram apagar, por assim dizer, sufocar sua memória (...)

A história acolhe e renova essas glórias deserdadas: dá vida aos mortos, ressuscita-os. Sua justiça associa assim os que não viveram num mesmo tempo, faz reparação a vários que só surgiram um momento para desaparecer em seguida. Eles vivem agora junto a nós, que nos sentimos seus parentes, seus amigos. Assim se faz uma família, uma cidade comum entre os vivos e os mortos.”347

A “história-ressurreição” proposta por Michelet estaria apta a recriar a própria vida na medida em que se recupera a fala de outrem, de alguém que viveu no passado. Ao historiador caberia procurar nos documentos a voz desse sujeito, desvendando o significado profundo de sua existência348:

“O historiador não é César nem Cláudio, mas quer freqüentemente em seus sonhos uma multidão que chora e se lamenta, a multidão daqueles que não viveram o bastante, que gostariam de reviver. (...) Não é apenas uma urna e lágrimas que vos pedem esses mortos. Não lhes basta que se volte a suspirar por eles. Não é de cantos fúnebres, de uma carpideira que sentem falta, mas de um adivinho, vates. Enquanto não tiverem esse adivinho, errarão em torno de seu túmulo mal fechado e não repousarão jamais.

Sentem falta de um Édipo que lhes explique seu próprio enigma cujo sentido não desvendaram, que lhes ensine o que queriam dizer suas palavras, seus atos, que não compreenderam. Sentem falta de um Prometeu, e de que no fogo que ele roubou as vozes que flutuam geladas no ar se insurjam, adquiram um som, ponham-se de novo a falar. É preciso mais: é preciso ouvir as palavras que jamais foram ditas, que

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No original: “Je les ai exhumés pour une seconde vie. Plusieurs n’étaient pas nés au moment qui leur eût été propre. D’autres, à la veille de circonstances nouvelles et saisissantes qui sont venues les effacer, pour ainsi dire, étouffer leur mémoire (...). L’histoire accueille et renouvelle ces gloires déshéritées; elle donne nouvelle vie à ces morts, les ressuscite. Sa justice associe ainsi ceux qui n’ont pas vécu en même temps, fait réparation à plusieurs qui n’avaient paru qu’un moment pour disparaître. Ils vivent maintenant avec nous qui nous sentons leurs parents, leurs amis. Ainsi se fait une famille, une cité commune entre les vivants et les morts.” MICHELET, Jules. “Histoire du XIXe Siècle, t. II: Jusqu´au 18 Brumaire, Préface”. Oeuvres Complètes de Michelet. Paris, Flammarion, t. XXI (1872-1874), 1982, p. 268.

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Ao percorrer os “temas micheletistas”, Roland Barthes nota que, para o historiador, as raízes da verdade histórica são os documentos como voz, não como testemunhos: “Michelet considera neles [nos documentos], apenas, essa qualidade de terem sido um atributo da vida, o objeto privilegiado onde se fixa como que uma remanência dos corpos passados. Assim, quanto mais o documento se aproxima de uma voz, menos ele se afasta do calor que a produziu, e mais se torna o verdadeiro fundamento da credibilidade histórica. Por isso, o documento oral é, em última instância, superior ao documento escrito, e a lenda aos textos.” BARTHES, Roland. Michelet. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, pp. 73-74.

permaneceram no fundo dos corações (escavai o vosso, elas estão aí); é preciso fazer falarem os silêncios da história (...)”349

Para Michelet, a história deve relembrar, celebrar os mortos e fazer-lhes justiça350. Portanto, conceberia a tarefa do historiador como sendo semelhante ao sacerdócio, uma vez que “ritualiza” as ações e os sacrifícios feitos pelo povo no passado, transformando-se no guardião

da memória dos mortos. Seguindo Michelet, Barthes sublinharia:

“O historiador não é de modo algum um ‘leitor’ do passado e, se reorganiza a história, não é no nível das idéias, das forças, das causas ou dos sistemas, mas no de cada morte carnal. Os deveres do historiador não se estabelecem em função do conceito geral de verdade histórica, mas somente diante de cada morte da história; sua função não é de ordem intelectual, é ao mesmo tempo de ordem social e sagrada.

(...) Essa magistratura civil acompanha-se evidentemente de um sacerdócio: trata-se menos de velar pela memória dos mortos que de completar por uma ação mágica o que sua vida pôde ter de absurdo ou de mutilado. O historiador é um Édipo (ele decifra retrospectivamente enigmas humanos). Os mortos da história não compreendem jamais porque viveram, pois, segundo a fórmula sofocliana, a vida só é inteligível quando a morte a dotou de um termo irremissível. O historiador é precisamente o mago que retoma dos mortos seus atos, seus sofrimentos, seus sacrifícios, e lhes dá um lugar na memória universal da história.”351

O historiador, “magistrado fúnebre”, seria o demiurgo que liga o que estava disperso, descontínuo, incompreensível, ao estabelecer uma espécie de comunhão, de fraternidade com os mortos, podendo trocar com eles os signos da vida:

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Apud MONOD, Gabriel. La Vie et la Pensée de Jules Michelet, 1798-1842. Paris, Champion, t. II, 1923 (reimp. 1975), p. 73. Grifo do autor. Em seu CD-Rom Michelet historien de la France, Pierre Nora afirma existirem dois Michelet: um pequeno-burguês que Proudhon descreveu como “um velho saltitante, vaidoso e lúbrico”, e um taumaturgo que exercia a História como uma magistratura, um “adivinho” como ele próprio se denominava ao fazer uso da palavra latina vates.

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De acordo com Jacques Le Goff, Michelet é um “necromante”, que ama os mortos para trazê-los novamente à vida, não como fantasmas ou fragmentos arqueológicos de um passado remoto, mas como homens reais encerrados nas pedras e documentos: “Sim, Michelet é muito melhor que um necromante, ele é, segundo o belo neologismo que ele inventou para si próprio e que ninguém ousou conservar depois dele, um ‘ressuscitador’.” No original: “Oui, Michelet est beaucoup mieux qu’un nécromant; il est, selon le beau néologisme qu’il a inventé pour lui-même et qu’on n’a pas osé garder après lui, un ‘ressusciteur’.” LE GOFF, Jacques. “Michelet et le Moyen Âge, Aujourd´hui”.

Oeuvres Complètes de Michelet. Paris, Flammarion, t. IV (Histoire de France, Livres I-IV), 1974, p. 46. 351

“Eu tive uma triste doença que cobriu de sombras minha juventude, mas muito própria do historiador. Eu amava a morte. Tinha vivido nove anos ao lado do Père-Lachaise, então meu único passeio. Depois morei junto ao Bièvre [afluente do Sena], em meio a grandes jardins de conventos, outros sepulcros. Eu levava uma vida por assim dizer enterrada, tendo por sociedade apenas o passado e, por amigos, os povos sepultados. Refazendo suas lendas, eu despertava neles mil coisas desaparecidas. Certas cantigas de ninar, cujo segredo eu conhecia, produziam um efeito certo. Quando as entoava, eles acreditavam que eu era um deles. O dom que são Luís pede e não obtém, eu o possuí: ‘o dom das lágrimas’.”352

Em Michelet, a história abarca a “ressurreição da vida integral”: ela não é um simples encadeamento de causas e efeitos, mas uma seqüência de identidades que vão organicamente se fundindo até a conformação da obra maior e mais nobre: no caso, a pátria francesa353:

“É um grande e maravilhoso espetáculo abraçar com o olhar esse vasto e poderoso organismo em que as diversas partes estão tão habilmente aproximadas, opostas, associadas (...). Considerada em longitude, a França ondula em dois longos sistemas orgânicos, assim como o corpo humano é duplamente dotado dos aparelhos gástrico e cérebro-espinhal (...), a força e a beleza do conjunto consistem na reciprocidade dos recursos, na solidariedade das partes, na distribuição das funções, na divisão do trabalho social.”354

Através da homogeneidade e pela continuidade da matéria e duração, o historiador perseguiria a nação desde suas origens mais remotas até a França enquanto produto de uma fusão operada na Festa da Federação de 1790, quando se apagariam todas as particularidades provincianas e pessoais para se dar origem ao “povo”, sujeito dessa história nacional.

352

No original: “J’avais une belle maladie qui assombrit ma jeunesse, mais bien propre à l’historien. J’aimais la mort. J’avais vécu neuf ans à la porte du Père-Lachaise, alors ma seule promenade. Puis j’habitai vers la Bièvre, au milieu de grands jardins de couvents, autres sépulcres. Je menais une vie que le monde aurait pu dire enterrée, n’ayant de société que celle du passé, et pour amis les peuples ensevelis. Refaisant leur légende, je réveillais en eux mille choses évanouies. Certains chants de nourrice dont j’avais le secret, étaient d’un effet sûr. A l’accent ils croyaient que j’étais un des leurs. Le don que Saint Louis demande et n’obtient pas, je l’eus: ‘le don des larmes’.” MICHELET, Jules. “Préface de 1869”. Oeuvres Complètes de Michelet. Paris, Flammarion, t. IV, op. cit., p. 17.

353

Segundo Barthes, Michelet herda de Herder o esquema da “história-planta”, ou seja, esta cadeia de identidades cujo movimento seria menos sucessão do que constância: “Há, propriamente falando, fatos históricos? Não: a história é antes um contínuo de identidades, assim como a planta ou a espécie são a duração de um mesmo tecido.” BARTHES, Roland, op. cit., p. 32.

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O autor de Le Peuple é tanto mais tentado a identificar-se com seu herói quanto continua a partilhar com ele uma série de hábitos. Consagra à sua obra, mais que a energia frenética de um Balzac, os esforços pacientes do artesão. Sabe que, nele, o trabalho precede e provoca a inspiração. Por vezes se queixa disso, temendo faltar à gratuidade da arte, como quando confessa a Dumesnil, a 11 de janeiro de 1857, durante a redação de L´Insecte: “Estou trabalhando como nunca. Talvez, receio, com uma fúria demasiado cega e sem aguardar os momentos da inspiração. Eis no que dá ter sido operário a vida inteira”355. Mas o operário não se deixaria desencorajar com facilidade. É ele quem afirma no prefácio de Le Peuple: “Nós, os bárbaros, temos uma vantagem natural; se as classes superiores têm a cultura, temos muito mais calor vital. Aquelas não têm nem o trabalho pesado nem a intensidade, a aspereza, a consciência no trabalho”356. O trabalho “forte” exige uma vontade de ferro, dizia Michelet, que em vez de ostentar as privações sofridas na pobreza preferiu reconstituir um dia de inverno no qual, num desabafo vigoroso, teria batido com o punho sobre sua mesa de carvalho: “Sim, é preciso ser pobre, ou tornar-se pobre em espírito, para saborear o alimento da vida, cujo gosto é alterado pelos temperos da riqueza”357.

Michelet tinha vinte e nove anos quando publica seu primeiro livro, Précis de

l’Histoire Moderne, em 1827. A verdadeira filosofia da história consistia em “ressuscitar o

passado”, em fazer sentir as forças diretrizes, em lhe devolver sua forma e suas cores. No dizer de Monod, “(...) ele nos dá outra coisa e mais que uma história política ou uma história da civilização, ele faz reviver os homens e as nações; ele evoca o passado ainda todo pulsante diante dos jovens espíritos que ele inicia na história”358.

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No original: “Je travaille plus que jamais. Peut-être, je le crains, avec un trop aveugle acharnement, et sans

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