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ORIENTAÇÃO DOS VALORES E CONDUTAS DO LEITOR

A HISTÓRIA EM SUA EXPRESSÃO PEDAGÓGICA DE FORMAÇÃO DO “POVO”

I

“O que te devo de tua história é, em primeiro lugar, a tua, o que tive de revelar-te de teu berço e o que apóia a própria base de tua vida moral. Contei-te primeiro como nasceste, as dores, os infinitos cuidados de tua mãe e todas as vigílias, quantas vezes ela sofreu, chorou, quase morreu por ti. Essa história, minha filha, deve ser tua cara legenda, tua recordação religiosa e teu primeiro culto aqui na terra.

Depois, contei-te sumariamente o que é e foi tua segunda mãe, a grande mãe, a Pátria. Deus te propiciou a nobreza de nascer nestas terras da França, por quem o mundo inteiro, minha filha, tem gana, paixão – ninguém é frio para com ela, todos falam bem e mal. Sem razão? Com razão? Quem sabe. Quanto a nós, limitamo-nos a uma palavra: ‘Só se sofre alegremente na França. É o povo que sabe morrer’.

(...) O ensino da história será o mesmo para os meninos e as meninas? Sim, por certo, como base de fé. Tanto a uns como aos outros, ela fornece seu grande fruto moral, o sustentáculo do coração e o alimento da vida, ou seja, a magnífica identidade da alma humana sobre a

questão do justo, a concordância histórica das crenças do gênero

humano acerca do dever e acerca de Deus.

Mas que fique claro também que, como o homem é chamado aos negócios, ao combate do mundo, a história deve prepará-lo em especial para isso. Ela é, para ele, o tesouro da experiência, o arsenal de armas de todo tipo que ele utilizará amanhã. Para a menina, a história é sobretudo uma base religiosa e moral.”

JULES MICHELET215

Ao final da primeira metade do século XIX, Jules Michelet legitima-se como o historiador do povo ao escrever uma obra que busca “ressuscitar” a nação francesa, condenada na Europa, segundo o autor, por uma literatura que retratava a vida social na França como uma

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realidade condenável e defeituosa, no curso de uma história coletiva, já que para ele o povo faz a força e a fraqueza dos regimes.

Le Peuple, de 1846, além de contar a vida de Michelet, seu passado ligado à história

da França e à noção de pátria como uma grande família, mostrava também o desconforto do autor com a “literatura da moda” que, no seu entender, oferecia da França a mais falsa das imagens. Assim, acusa os “românticos”216, principalmente Eugène Sue, George Sand e Honoré de Balzac de ostentarem uma imagem enganosa do povo francês, privilegiando o “feio” como regra e não como exceção:

“Os românticos acreditavam que a arte estava sobretudo no feio. Acharam que os efeitos artísticos mais infalíveis residiam no feio moral. (...) Desviaram os olhos para o fantástico, o violento, o bizarro, o excepcional. Não se dignaram informar que pintavam a exceção. Os leitores, sobretudo os estrangeiros, acreditaram que eles pintavam a regra. E disseram: ‘Esse povo é assim’.”217

No intuito de sobrepujar essa idéia veiculada na literatura do período, Michelet escreve Le Peuple, tornando-se um dos primeiros a imputar um valor definitivo à intervenção do povo na História. Para ele, os romancistas tinham pontos de vista fracionados, que, muitas vezes, levava-os a isolar seus objetos de estudo em detrimento de outras instâncias da realidade, permitindo assim que tais particularidades apresentassem falsos perfis e produzissem enganos sobre a totalidade:

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Michelet negou explicitamente que fosse um romântico, mas tal como afirma Hayden White em Meta-História, o historiador teria representado “uma posição diferente dentro do movimento romântico com respeito à concepção que este possuía do processo histórico. (...) Michelet pretendeu ter descoberto o meio de elevar a apreensão romântica do mundo à condição de um enfoque científico. Para ele, uma sensibilidade poética, criticamente autoconsciente, proporcionava o acesso a uma apreensão especificamente ‘realista’ do mundo.” WHITE, Hayden. “Michelet: O Realismo Histórico como Estória Romanesca”. Meta-História. A Imaginação Histórica do Século XIX. São Paulo, EDUSP, 1992, pp. 160-161. Grifo do autor. De acordo com White, enquanto o movimento romântico florescia, Michelet estava ocupado nos arquivos, concebendo um novo método histórico, do qual A Ciência Nova, de Vico, seria o modelo ao permitir que o historiador ressuscitasse e revivesse o passado em sua totalidade.

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“Romances clássicos, imortais [Indiana e Lélia218], revelando as tragédias domésticas das classes abastadas, estabeleceram solidamente no pensamento europeu que não há mais família na França.

Outros, de grande talento, de uma fantasmagoria terrível, pintaram a vida comum de nossas cidades como um local onde a polícia concentra os reincidentes da justiça e os condenados libertados [Les Mystères de Paris219].

Um pintor de gênero, admirável pela genialidade do detalhe, diverte-se em pintar um horrendo cabaré do campo, uma taberna de criadagem e gatunos, e, abaixo desse esboço hediondo, ele escreve atrevidamente uma palavra que vem a ser o nome da maioria dos habitantes da França [Les Paysans220].

A Europa lê avidamente, admira, reconhece este ou aquele pequeno detalhe. De um acidente mínimo, cuja verdade percebe, ela conclui facilmente a verdade do todo.”221

Michelet nota que a esses literatos o amor errante parecia mais poético que a família, o roubo mais que o trabalho, a prisão mais que a oficina, e conclui: “Se eles próprios tivessem descido, por seus sofrimentos pessoais, às profundas realidades da vida da época, veriam que a família, o trabalho, a vida mais humilde do povo possuem, por si mesmos, uma poesia sagrada”222.

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Indiana (1832) e Lélia (1833) foram as primeiras novelas produzidas por George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa Dudevant – 1804-1876). Indiana é uma transcrição das experiências pessoais da autora com o “desagradável” marido Dudevant, além de uma exposição da sua teoria das relações sexuais fundamentada nessas experiências. Em Lélia, Sand segue o mesmo caminho ao fazer uma denúncia contra a sociedade e a lei matrimonial. SAND, George. Indiana. Paris, Gallimard, Collection “Folio Classique”, 1984 e Lélia. Paris, Classiques Garnier, 1960.

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Les Mystères de Paris, obra do novelista francês Eugène Sue (1804-1857), saiu em folhetim do Journal des

Débats do dia 19 de junho de 1842 a 15 de outubro de 1843. Nela, o autor procura traçar os usos e costumes do povo

“bárbaro” das cidades francesas, que se aglomera no escuro de becos e ruelas, às margens do rio Sena, para combinar o crime, o roubo e para repartir os despojos de suas vítimas. SUE, Eugène. Les Mystères de Paris. Paris, Robert Laffont, 1989. Os “selvagens da civilização” descritos por Sue são um dos temas abordados por Marlyse Meyer em

Folhetim: uma história. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 220

Em Les Paysans, Honoré de Balzac (1799-1850) retrata a vida no campo de meados do século XIX como uma realidade monstruosa e cheia de vícios, em oposição ao quadro devaneador dos costumes campestres tão freqüentemente apresentado nos romances da época. Atendo-se ao problema das relações entre grandes proprietários e camponeses, o autor demonstra que o regime da propriedade, estabelecido durante a Revolução Francesa, teria transformado os homens do campo em devedores dos usurários da roça, tornando-os ásperos, cobiçosos, desconfiados e interesseiros. BALZAC, Honoré de. “Os Camponeses”. A Comédia Humana. Estudos e Costumes:

Cenas da Vida Parisiense. Rio de Janeiro, Globo, v. XIII, 1954, pp. 07-285. Les Paysans (Os Camponeses) é um dos

livros póstumos de Balzac, sendo que, em vida, o autor só viu ser publicada a primeira parte desse romance, tendo saído em folhetim do jornal La Presse, de 03 a 21 de dezembro de 1844. Em 1855, cinco anos após a morte do romancista, a Revue de Paris publicou novamente a parte já impressa e mais uma segunda parte até então inédita. Vale lembrar que a primeira edição em volumes data do mesmo ano.

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MICHELET, Jules. O Povo, op. cit., p. 06.

222

No seu ponto de vista, é a experiência que vai proporcionar uma leitura correta da sociedade, o que o levaria a questionar a autoridade desses autores ao construir uma imagem “desfavorável e vergonhosa da França” diante das nações estrangeiras:

“Não captei essa personalidade superficialmente, em seus aspectos pitorescos ou dramáticos; não a vi de fora, experimentei-a por dentro. E, graças a essa experiência, muita coisa íntima do povo, que ele tem em si sem compreender, eu compreendi. E por quê? Porque eu podia segui-la em suas origens históricas, vê-la sair do fundo do tempo. Quem se atém ao presente, ao atual, não compreende o atual. Quem se contenta em ver o exterior, em pintar a forma, não poderá sequer vê-la: para vê-la com exatidão, para traduzi-la fielmente, é preciso saber o que ela encobre; não há pintura sem anatomia.”223

Não obstante, declara que quando os escritores atentaram para “as profundas realidades da vida da época” e identificaram “a poesia sagrada que envolve os simples”, foram admiráveis. Mais uma vez, o historiador confrontaria a sua condição de “povo” para legitimar tal observação: “E eu, que saí dele, eu que vivi com ele, que trabalhei e sofri com ele, que mais que ninguém adquiri o direito de dizer que o conheço, venho opor a todos a personalidade do povo”224.

Michelet atesta sua verdade entrevendo para o passado e mesmo para o presente a autoridade legitimada por sua vivência, por sua memória pessoal, num jogo de simpatias e

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Ibid., p. 09. Apesar das denúncias de Michelet à “falta de experiência” de Balzac, Graham Robb afirma que se hoje a imagem convencional do romancista é a do quarto sombrio, do hábito de monge, da mão escrevendo, do inesgotável bule de café, à noite, quando podia sair sem medo de ser reconhecido, ele cultivava um estranho hobby: “Eu morava então numa ruazinha que você provavelmente não conhece: a rue Lesdiguières. (...) Só uma paixão podia tirar-me de minha rotina de estudos; e mesmo essa era uma forma de estudar. Eu saía para observar a vida no

faubourg, o povo e seu caráter. Tão mal vestido quanto os trabalhadores e não dando a menor atenção à etiqueta, não

despertava suspeitas. Conseguia misturar-me a eles, parados em grupos, pechinchando e discutindo entre si ao deixar o trabalho. A observação já se tornara para mim uma atividade intuitiva; permitia-me penetrar na alma sem desconsiderar o corpo; ou melhor, captava tão bem os detalhes externos que no mesmo instante ia além deles. Dava- me o poder de viver a vida do indivíduo que eu estava observando, de me substituir por ele, como o dervixe das Mil e

uma noites que assume o corpo e a alma daqueles sobre os quais pronuncia determinadas palavras. Quando, entre

onze horas e meia-noite, encontrava um trabalhador e sua esposa que voltavam do Ambigu-Comique, divertia-me seguindo-os desde o boulevard du Pont-aux-Choux até o boulevard Beaumarchais. (...) Ouvindo essa gente, eu podia tornar minha vida sua vida. Sentia seus farrapos em minhas costas, caminhava com meus pés em seus sapatos rotos; seus desejos, suas privações – tudo passava por minha alma, ou minha alma passava por eles. Era o sonho de um homem desperto.” Apud ROBB, Graham. Balzac. Uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 79- 80.

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repulsas. Para ele, os produtos do gênio popular não são apenas livros, mas “atos corajosos, frases espirituosas, palavras calorosas”. Eis aí o moralista que se enrijece, com todas as suas forças, contra as seduções do romance: “Sentir e mostrar a personalidade do povo não é tarefa do contra-regra; não é preciso aí multiplicar os lances teatrais. Bastam olhos afeitos a essa luz suave, capazes de enxergar na obscuridade, no pequeno e no humilde (...)”225.

Diante disso, essa obra se revelaria como contraponto aos golpes desferidos contra “a causa do povo”, o que faz Michelet interromper sua Histoire de France, produção composta por vinte e três volumes escritos entre 1833 e 1867, para publicar Le Peuple, em 1846, em oposição a certa imagem de povo já construída por essa literatura contemporânea:

“Importaria examinar se esses livros franceses, tão populares na Europa, tão cheios de autoridade, representam realmente a França; se dela não mostraram certas faces excepcionais, bastante desfavoráveis; se essas pinturas, onde só encontramos nossos vícios e torpezas, não causaram a nosso país uma injustiça enorme, perante as nações estrangeiras. O talento, a boa fé dos autores, a conhecida liberalidade de seus princípios deram às suas palavras um peso opressivo. O mundo acolheu seus livros como um julgamento terrível da França sobre si mesma.”226

Para acompanhar esse itinerário que levou Michelet a ser identificado como historiador das massas, tomamos um pequeno “livro-manifesto” que é Le Peuple, no qual o autor reconhece o povo como personagem fundamental para as transformações sociais da França oitocentista. A esse respeito, apoiamo-nos na trilha deixada por Pierre Macherey e sua apreciação em torno do tema do “homem de baixo”227. O crítico desenvolve uma importante análise do romance social, uma “literatura das profundezas” que teria atingido os campos da História e da Literatura, e cujos elementos anunciantes passam a ser encontrados a partir de finais do século XVIII, demonstrando conter, simultaneamente, aspectos estéticos e políticos que, por sua vez, encerrariam uma espécie de “filosofia literária”.

Demonstra, por exemplo, que na década de 1830 ocorreu na França uma mudança considerável no domínio da imprensa, coincidente com o surgimento de novos meios de

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Ibid.

226

Ibid., p. 05.

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comunicação e correspondente a um novo tipo de público, as massas. Tal transformação teria sido percebida por alguns de seus iniciadores, como E. de Girardin que, no editorial do primeiro número de La Presse, expressou o desejo de uniformizar o discurso público e de transportar o ponto de aplicação, direcionando-o de alto a baixo, ou da superfície ao fundo, reunindo todas as formas de opinião. Ainda que de maneira dispersa, Macherey viu nesse processo o aparecimento de uma nova figura, a do “homem subterrâneo”, imagem que designa essa classe “obscura”, “vinda de baixo”, e que abrange toda consideração que se faz a esse povo potencialmente perigoso, porque revolucionário, como um vulcão adormecido esperando o momento de erodir o solo e dar curso à sua erupção.

Do mesmo modo que na obra de Michelet fica patente o desejo de dar voz ao povo, aos excluídos, enfim, àqueles que não se viram representados, ou cuja voz não se faz ouvir nas decisões políticas, na academia, nos livros, também a imprensa da época parece interessada em “aprofundar”, isto é, verificar o que se passa nos “subterrâneos da opinião”, exatamente nas profundezas da sociedade onde a massa se reúne.

Macherey faz um interessante paralelo entre esse olhar que se dirige para baixo, a própria disposição dos folhetins nos jornais, o mesmo movimento que conduzia o olhar do leitor até a parte inferior de uma página, ao subsolo da escritura, onde se elaborava e se expunha essa que era a forma por excelência de uma “literatura das profundezas”, o folhetim, que se tornaria um modelo de expressão extremamente popular ao promover uma identificação com as massas.

Michelet parece desejar o mesmo, fazer de seu testemunho histórico em forma de livro (Le Peuple) algo suficientemente conformado ao povo que pretendia retratar, ajustando sua produção historiográfica aos expedientes literários, cujo movimento de sensibilidade captava melhor a atmosfera das massas, seu “calor vital”228. Essa preocupação em ressaltar a dignidade do povo, suas virtudes e seus atributos históricos, na opinião de Macherey, teve seu melhor correspondente literário em Victor Hugo, para o qual o “sublime” também “viria de baixo”.

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Importa frisar que Michelet critica o folhetim e a informação jornalística de modo geral por não alcançarem o povo em função do seu interesse pela novidade, que os levava a isolar os acontecimentos, e, principalmente, pela atrofia da experiência, tal como a concebe Walter Benjamin: “Esta [a narração] não tem a pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a informação o faz); integra-o à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência. Nela ficam impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso de argila.” BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo, Brasiliense, “Obras Escolhidas”, v. III, s.d., p. 107.

Mas o folhetim está longe de ser um gênero “popular”, se compreendermos o conceito do ponto de vista sociológico: sua penetração junto às classes mais baixas. Como aponta Renato Ortiz, seu circuito de difusão fez com que os leitores fossem recrutados nas classes média e alta, e somente aqueles que conseguiam pagar 75 francos por um romance em dez volumes ou 40 francos pela assinatura de um jornal podiam consumi-lo. Os leitores que escreviam a Eugène Sue durante a publicação de Les Mystères de Paris, por exemplo, eram oriundos dessas camadas e desejavam transmitir ao escritor suas idéias sobre a reforma da sociedade.

Dentro desse contexto, o folhetim surgiria como um agente perturbador: a literatura popular seria uma fonte “corruptora” das idéias morais que deixavam de ser hegemônicas. Ao valorizar temas como a feiúra, a pobreza e a vida desregrada, o romance se afastava do “belo”, mergulhando na “imundície” da sociedade. Sobre esse assunto, Ortiz faz uso do seguinte argumento de Cuvillier-Fleury:

“(...) a literatura moderna é um espelho deformado, quadro mentiroso das corrupções, misérias e disformidades de nosso país, caluniando igualmente os poderosos e os modestos, os ricos e os pobres; corrompendo uns à força de mostrá- los corrompidos, os outros à força de mostrá-los resignados na baixeza, semeando, com a mesma mão fatal, o desprezo e o temor, a revolta e a degradação.”229

Críticas que se dirigiam a folhetins do tipo Les Mystères de Paris ou Les Paysans, que se voltam para a descrição da vida das camadas pobres parisienses, enfocando questões como o alcoolismo, o crime, a prostituição, comporiam a ideologia que iria se consubstanciar na Lei Riancey, de 1851, cujo objetivo era eliminar “o sutil veneno dessa literatura desmoralizadora”230.

Dessa forma, Michelet atesta a inconsistência dos estudos de sua época, sobretudo dos documentos oficiais, das estatísticas e de certas obras literárias que retratavam de forma superficial e pouco honesta o povo. Desconhecendo sua história e suas opressões, esses autores,

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CUVILLIER-FLEURY, Alfred. “La fin du roman feuilleton”. Études historiques et littéraires. Paris, Michel- Lévy, 1854, p. 151. Apud ORTIZ, Renato. Cultura e Modernidade: a França no Século XIX. São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 79.

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Segundo Renato Ortiz, esta lei taxava com um imposto extra todo jornal que publicasse folhetins, o que teria levado a imprensa a se afastar por algum tempo deste gênero. Como exemplo, o autor cita uma ordem de Girardin (dono do jornal La Presse) a Dumas: “Desejo que o Anjo Pitou, no lugar de seis volumes, tenha somente meio

“tão cheios de autoridade”, pintam um quadro desprezível da sociedade francesa que ele se empenharia em reabilitar.

O historiador condiciona o entendimento da contemporaneidade à recuperação atenta do processo histórico que o originou; mais que isso, revela a precariedade dos estudos que levam em conta apenas a questão econômica, material. A organicidade de sua obra é flagrante, como se outorgasse o direito de ser o portador das vozes do povo, e a legitimidade que ele apresenta é a de quem, sendo povo, pode conjeturar sobre ele, pode falar dos seus sentimentos que, aliás, ele espera que concorram para o ideal de democracia, sua verdadeira “religião”. Logo, sua vivência atua como autorização que o impele a falar sobre o povo do qual faria parte.

Para Michelet, nunca é suficiente o conhecimento estatístico formal, econômico; o dado social só pode ser apreendido em toda a sua complexidade se nos indagarmos também sobre os sentimentos mais profundos do povo.

Nesse momento, a questão da profundidade requer uma discussão: o conceito aqui sugere ir além do que é aparente, buscar o âmago das coisas, daquilo que ficou escondido por uma série de fatores, como se para atingir a “alma”, o “coração” de um processo histórico precisássemos encontrar o fundo oculto de seus sentimentos, tal como no campo da ciência que trata da origem e da história geográfica do planeta. Os cientistas vão procurar sua chave entre as suturas submersas do velho continente da Pangéia, pois é lá no “fundo”, no “interior” do mar que se pode alinhavar o encadeamento de fenômenos que nos trazem o mínimo de conhecimento acerca deste objeto.

Contudo, a idéia de profundidade não se encerra apenas na concepção de algo encoberto, remetendo-nos também a alguma coisa grave, crucial, ou seja, não é somente o dado

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