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A escritura nos labirintos da loucura: um fio de Ariadne

4.1 A LOUCURA: DESAGREGAÇÃO E DISTANCIAMENTO

4.1.2 A escritura nos labirintos da loucura: um fio de Ariadne

Fernando Muniz (2015), ao realizar uma análise da “metáfora do caminho” a partir dos gregos, afirma que essa metáfora funcionou através dos tempos como um guia para nossa existência. O caminho promove o deslocamento no espaço e no tempo e, em sua trajetória, a seguinte questão faz-se, inexoravelmente, presente: qual será o melhor caminho? Seguir o caminho menos árduo, menos penoso, exige a utilização de projetos que não são infalíveis, pelo contrário, boa parte das vezes, esses percursos põem em prova o caminhante.

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Em A ritualização mítica no romanesco de Tereza Albues (2013), José Alexandre Vieira da Silva destaca que entre os aspectos que envolvem a loucura, está o contínuo deslocar-se. Ressalta o autor que inclusive os viajantes e todos os tipos de andarilhos eram tidos como loucos. Silva (2013) aponta ainda que a psiquiatria nomeia esse tipo de comportamento como “dromamanes”, ou seja, mania de deambulatória, que consiste basicamente na “deserção da sedentarização social”; o sujeito ignora os vínculos sociais comuns e dá-se a uma vida errante, sem destino lógico preconcebido.

Mas o caminho nunca é o mesmo para qualquer herói. É cotidianamente alterado pelo tempo, por aqueles que já o trilharam e, finalmente, pelos olhos de quem o vislumbra. Entre tantos caminhos, existem uns mais simples (mas que nem por isso deixam de levar à extenuação o caminhante) e outros mais complexos, como é o caso do labirinto, invenção humana que torna todas as rotas semelhantes, ao passo que apenas uma é a correta.

Para Muniz (2015), Teseu, aquele que matou o Minotauro, foi astuto o suficiente para utilizar o fio de Ariadne como referência a fim de livrar-se do complexo caminho onde se encontrava. Alargando o sentido da metáfora grega, o autor afirma:

Todos os caminhos – sem exceção – têm seus desvios, suas bifurcações e são, no fundo, labirínticos e marítimos. Daí o ser humano ter necessidade de buscar o fio de seu caminho, ou o mapa que o ensina a evitar o desvio, o engano, a errância [...] Se viver é estar lançado no oceano ou perdido no labirinto, viver sem fio ou mapa é [...] transformar a vida em um extraordinário desperdício (MUNIZ, 2015, p. 25).

É provável que não tenhamos em qualquer outra época da humanidade um momento em que, como este, estejamos trilhando a vida livre de mapas ou fios que nos conduzam pelo caminho imbricado de nossa existência (embora seja provável que no período conturbado do Renascimento boa parte dos cidadãos tenha experimentado na mesma intensidade o que estamos provando agora, mas é provável também que isso não tenha ocorrido nunca ao mesmo tempo com tantos indivíduos em diferentes culturas).

Os meios de comunicação revolucionaram nossas formas de sentir em qualidade e, sobretudo, quantidade. Mesmo o sujeito no mais longínquo espaço em relação ao centro tem se conectado ou sido abalado de alguma forma pelos novos

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modos de viver da maioria. Encontramos esse sentimento de dispersão bastante presente na forma como a poeta-performer expressa sua percepção do mundo:

Não somos nada além de poeira. Levadas, pessoas-folhas.

Sem vontade ou direção. [...]

Se, como disse, somos poeira, Mais vale a direção do vento. Mais vale crer numa força maior que nos dirija, pó e ventania. (Insânia, p. 92).

O sujeito dos versos acima reconhece a precariedade de nossa condição. Reconhece que nos falta o fio de Ariadne, imprescindível para nos livrarmos do labirinto da vida. Em outro poema, contudo, revela que o fio que oferecem para ele lhe causa ainda mais temor por conta dos caminhos perniciosos que outrora trilhara: “Uma parte de mim cultiva o sonho, / Parte de mim cai no abismo, [...] Parte se cobre de cinza, / Outra parte crê em nada” (CC, p. 63). A poeta-performer não crê, prefere, de antemão, questionar os que estão a sua volta. E não é apenas uma desconfiança de tipo comum, inerente ao ser humano, mas se aproxima da neurose. Sua descrença não foi criada aleatoriamente, é resultado de uma história de frustrações, no momento, porém, ela se retroalimenta. Ela perdura por si, como naqueles experimentos de Skinner (1974) em que se retira o estímulo, mas as práticas resultantes dele continuam a ser operadas, as quais denominou de “Condicionamento operante”.

Como consequência desse sentimento, a personalidade cambiante, paradoxal, foi se tornando uma das recorrências mais latentes da poesia de Luciene Carvalho. Nunca o sujeito é totalidade em qualquer de seus textos, há sempre um duplo perseguindo e significando suas máscaras.

Freud (1996) assinalou que o duplo é constituinte das identidades. Certamente, mas o fenômeno que analisamos encontra-se para além da identidade, encontra-se na performance, no convívio com máscaras, algo mais de superfície, mais “tênue”, mais efêmero que a identidade. Há, na representação performática, uma força que atua de dentro (ou do interior do ser) para fora dele enquanto na identidade ocorre o oposto, uma força que, pelo menos a princípio, ocorre de fora para dentro, já que o que somos é fruto de uma relação refletida, conforme assinala Lacan (1998) em sua teoria sobre os processos de constituição dos sujeitos.

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e impotências

que se alinham como antepastos

das minhas mais memoráveis performances (LF, p. 84).

Quando o sujeito utiliza-se da performance, ele está abertamente a fim de “ser” temporariamente, de apresentar-se, com toda a verdade que possa proceder, todavia sua apresentação é datada no tempo. Ele só coloca a máscara performática porque acredita que não é aquilo. Ele só performatiza o que propriamente julga que não seja em totalidade, embora para quem assiste, acabe sendo. No jogo das identidades, a poeta-performer raciocina: “sou isto” e empenhará esforços com o propósito de fixar para o outro a ideia que faz de si.

Em Luciene, essa máscara, que não deveria ser dual, o é. O sujeito teme a encenação que não seja polivalente com medo de ser encerrado no papel que está desempenhado. Sendo assim, vale-se dos paradoxos para dizer daquilo que (não) é. Para dizer daquilo que pode vir a ser, ocasionalmente. Nessa perspectiva de fluidez, é que substituímos a ideia identidade pela de performance.

Com esse arsenal de paradoxos que o sujeito manipula, acaba não encontrando a plenitude simulada em nenhum dos palcos em que estabelece sua performance, nem mesmo naquela figuração que se sobressai com vitalidade em toda a sua obra – a persona feminina – deixa de apresentar um sentido mais ou menos precário dessa encenação.

Nesses contextos de polivalências em que se situa, metamorfoseando ideias, sentidos, o corpo e a sexualidade, é que acaba por entrar em contato com as inúmeras definições que lhe dão: “A bruxa. / A louca. / A puta. / A cabaço. / A lesbo” (Aquelarre, p. 51). Como tudo no sujeito é movediço e derrete-se antes mesmo que ganhe profundidade, esses caráteres também são diluídos e reconstruídos em um vaivém sinuoso de verso a verso e de livro a livro. É justamente esse fluxo incessante de personalidades fluidas e cambiantes que fará nascer a escrita da autora.

Posto isso, a escritura poética ganha um novo status na consciência da poeta-performer, pois é justamente a escrita a sua performance mais cara. Seja louca ou santa, seja fêmea cordata ou Lilith, seja anjo ou demônio, o conjunto dessas personas recorrentes constitui parte de um projeto de pluripersonalidades

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que a poeta-performer vem formulando para si por intermédio da escrita. É pela escrita que o ela se realiza como ser no mundo.

Michel de Certeau (2012, p. 203), em A invenção do cotidiano, afirma que “a prática escriturística assumiu valor mítico nos últimos quatro séculos reorganizando aos poucos todos os domínios por onde se estendia a ambição ocidental de fazer sua história e, assim, fazer história”. Mais à frente, o pesquisador conclui que: “A origem não é mais aquilo que se narra, mas a atividade multiforme e murmurante de produtos do texto e de produzir a sociedade como texto” (CERTEAU, 2012, p. 204).

Conforme o autor, a escritura herda na modernidade toda a legitimidade que outrora cabia à oralidade. Ocorre nessa época um distanciamento crucial para a formação de uma nova mentalidade que redundará na oposição entre a prática escrita e aquela da oralidade. A ciência, a razão e a própria história, passam a admitir somente o que está anotado no papel. O que é dito passa a ser relegado ao popular, à crença. De posse da importância daquilo que chama de “uma prática iniciática fundamental” (CERTEAU, 2012, p. 206), o autor define o que é escrever:

Designo por escritura a atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a página, em construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual foi previamente isolado. [...] Trata-se também de um lugar onde se coloca “uma superfície autônoma sob o olhar do sujeito que assim dá a si mesmo o campo de um fazer próprio” (CERTEAU, 2012, p. 204).

Para o autor, a página em branco do papel também trata-se de “um lugar desenfeitiçado das ambiguidades do mundo” (CERTEAU, 2012, p. 204), embora se rasure nele as ambiguidades do indivíduo.

O papel em branco é o outro, os significados nele inscritos são os “eus” do sujeito que se traduzem. Tal qual a loucura, a escrita de Luciene tem uma espessa camada de transgressão. O fato de preferir poesia à prosa torna ainda mais subversivo seu texto, pois a poesia remete à oralidade ora desacreditada e colocada em oposição à ciência. É pela poesia que toda oralidade é recolocada como fonte de significação no corpo social. É como poesia que o universo daqueles que não falam tomam corpo ou cada parte inenarrável do ser humano ganha liberdade para deslocar-se para o reino do signo linguístico.

Para Certeau (2012, p. 211), “os livros são apenas metáforas do corpo”. E o corpo, precisa desorganizar-se para existir, precisa continuamente resistir. A prosa flerta com a ciência, pois a ciência é toda prosa. A poesia, no entanto, foge à razão

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sempre que necessário e, não poucas vezes, é confundida com a loucura e, como loucura continuará a almejar uma conexão perdida.