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A poesia como herdeira das religiões e como continuação

3.2 O EROTISMO COMO CONTINUIDADE

3.2.2 A poesia como herdeira das religiões e como continuação

A afirmação do subtítulo acima foi em parte formulada por Bataille (2014). Para ele, à medida que a religião veio se pulverizando e perdendo sua força enquanto verdade única que norteava o mundo, coube à literatura – mas também é preciso estender essa missão a todo tipo de arte – preencher o vazio existencial deixado pela religião no que se refere a afastar-nos do sentimento de descontinuidade.

A arte e, scricto sensu, a poesia, é a eternidade, como sentenciou Rimbaud (BATAILLE, 2014), é sua missão – tal qual é do sol emanar luz – trazer a eternidade até nós. A arte traduz o que de outro modo seria indizível, faz transbordar o insólito e o inenarrável de dentro do ser que escreve:

A rigor,

Provavelmente meu verso Não vai parar na academia. [...]

Faço verso,

porque essa é a minha libertação (LF, p. 75).

129 Atravessei meio outono

e meio inverno em jejum de poesia, e a vida, bem mais feia e incompleta

se arrastava sem o ofício de poeta (LF, p. 35).

Ou mais:

Me reforço no verso feito. Me ressignifico!

Construo algo maior

que passa a existir no mundo e o mundo então

fica mais rico.

Faço verso porque é meu melhor produto, porque não tenho escolha,

porque não tem motivo (LF, p. 24).

Se em vários textos a escritora aponta para uma persona que a esconde, para um papel que desempenha, mas que entende apenas como representação, em outros instantes discorre, como vimos acima, sobre uma poesia que, em parte, a revela, coloca-a em conexão com o mundo. Dá-lhe uma serventia, um motivo para existir e mais, num movimento complementar, a traduz para o mundo, traduz sua personalidade cambiante, seus sentimentos mais incômodos, e também desvenda o mundo para ela.

Como não teve filhos, não casou, não tem profissão de destaque, salienta que não desempenha um papel social relevante para além do fazer literário. Não possui um amor que tenha se transformado em estabilidade emocional, enfim, resta-lhe a poesia como elo com o universo onde plantou o sentido de seu ser.

Eu quero uma estabilidade, mas eu não sou nada além de escritora, entendeu? Eu não acordo as oito. Não dou aula, não sou médica, não sou professora, não sou funcionária pública, estou preocupadíssima com o que vou fazer de mim, sabe? No final da vida eu sou só escritora, só sou poeta. Quando falo que sou poeta eu não estou fazendo uma imagem, é um fato, é um fato doloroso porque a sociedade não contém pós-poetas, poetas aposentados (Ent. Cit.).

A poesia brota como não brotaram dela os filhos, é sua continuação. Como herdeira da religião, seu legado. A poesia, além dos filhos, substitui também a fé, aparentemente estéril no seu compromisso de vida eterna, de projeção do paraíso.

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Nas inúmeras vezes que remete aos santos de seu convívio, não pede a eles um lugar além deste em que vive. Possui uma fé estéril, no sentido de não ultrapassar o sentido da morte. Invoca Nossa Senhora (2003, 2007b), Maria Madalena (2007b), São João (2003), São Benedito (2003), para as guerras deste mundo, para resolver o problema da realidade onde está inserida, mas permanece apegada demais para dar margem a qualquer transbordamento extraterreno ou não acredita nessa possibilidade.

Sua fé não a tira da inércia, não a faz transcender para uma última zona mística de felicidade superior, como prometem as religiões. Por isso, a fé não lhe dá o aporte da continuidade de que fala Bataille (2014). O que resta, para suportar o peso de sua existência falível, é estabelecer o continuum existencial através do erotismo que se transmuta em versos poéticos. Transmuta-se em um erotismo que se potencializa ao entronizar-se de poesia.

131 4 LOUCURA E ESCRITURA: ESTRATÉGIAS DE CONTATO

Figura 4: Imagem de divulgação – espetáculo Insânia Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=I95nKgUEe0o

O homem é tanto mais feliz quanto mais inumeráveis são suas modalidades de loucura.

Erasmo de Rotterdam

Neste capítulo, ao abordarmos o tema da loucura, optamos por um enfoque que a atrele mais a uma ideia de movimento de dispersão do que aquela meramente patológica, que causa a total segregação do sujeito. Enfocamos a loucura como estratégia discursiva no enfrentamento do mundo que a poeta-performer entende como de difícil acesso e, no limite, como um obstáculo a ser transposto. Este capítulo poderia também ser chamado de capítulo dos paradoxos, porque é justamente a contradição que será a matéria mais abordada nas linhas que seguem.

Sócrates (NEEL, 2013) entendia que as atitudes humanas seriam influenciadas pelos deuses, desse modo, a loucura, sempre resultado dessas influências, poderia ser classificada em quatro tipos. O primeiro seria a loucura profética, em que os deuses possuiriam o corpo de uma pessoa, que se tornava um oráculo, transmitindo a mensagem divina. O segundo tipo de alienação consistiria na loucura ritual em que, por meio de danças e jogos análogos, o sujeito seria possuído

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por entidades espirituais. A loucura oriunda da influência da deusa Afrodite consistiria no terceiro tipo apontado pelo filósofo grego, conhecida como loucura amorosa e que costumeiramente levava os amantes às atitudes trágicas, como aquelas de Romeu e Julieta.

Por fim, teríamos a loucura poética, esta última seria resultado da influência das musas sobre os mortais. Todas essas quatro compreensões da loucura elaboradas pelo filósofo a entende de forma positiva, ou seja, como um estágio de comunicação supra-humano propiciado apenas a determinados eleitos. Tendo como perspectiva essas faces, aproximamo-nos do ponto de vista de Silva, que aponta compreender a loucura como:

Uma manifestação das formas e das possibilidades do humano, que é

sapiens e demens, envolvendo esferas complexas e inseparáveis da

pessoa e da sociedade. Veremos que essa atitude mental revela-se, ao mesmo tempo, singular – enquanto momento/acontecimento particular na vida de uma pessoa – e coletiva, pois exige sentidos compartilhados (SILVA, 2013, p. 89. Grifos do autor).

Aproximando-se dessa possibilidade, a loucura nos textos de Luciene Carvalho, embora promova um afastamento do mundo ao criar para o ser um universo todo particular, não deixa de possibilitar inumeráveis atuações tornadas impossíveis pela razão cotidiana: “Não faça metonímia de mim; louca / é parte do que sou” (CARVALHO, 2009, p. 30).

Além da elasticidade inerente ao discurso do louco, outro artifício de que se pode fazer uso na loucura é a inimputabilidade moral; o louco, a princípio, não pode pecar, uma vez que não é capaz de ser responsabilizado pelos próprios atos. E a culpa é um peso significativo na existência do sujeito com o qual lidamos. São essas possibilidades criadas pela loucura que a poeta tentará alcançar. Com a mesma energia, no entanto, dedicará parte de sua força para distanciar-se dos estigmas da loucura que aos poucos vão grudando na sua pele e tomando conta de seu corpo.

Foucault, em sua História da Loucura, estabelece o conceito de loucura a partir da fixação do sujeito por determinada imagem:

A loucura está para lá da imagem e, no entanto, está profundamente mergulhada nela, pois consiste somente em deixar que valha espontaneamente como verdade total e absoluta; o ato do homem razoável que, acertadamente ou não, julga verdadeira ou falsa uma imagem, está para lá dessa imagem, ele a ultrapassa e a avalia em relação àquilo que não é ela; o ato do homem louco nunca ultrapassa a imagem que se

133 apresenta; ele se deixa confiscar por sua vivacidade imediata, e só a sustenta com sua afirmação na medida em que é envolvido por ela. (FOULCAUT, 2014d, p. 233).

O autor continua o texto afirmando que muitas pessoas tornam-se loucas por preocuparem-se excessivamente com um objeto. Todavia, a loucura é muito mais que a preocupação com a imagem, pois, a partir da imagem, o sujeito elabora um conjunto de crenças que coexistem com essa imagem.

Se a loucura ganhou no século XXI cada vez mais aspectos clínicos e passou a desvincular-se de uma conjunção política que relegava ao louco uma identificação de ser não moral ou não racional, esse não foi o procedimento que se utilizou para a dominação do doente mental na maior parte da história da humanidade. No transcorrer do tempo, várias medidas de contingência foram tomadas para dar conta dessas almas que não movimentavam, stricto sensu, as rodas da máquina social.

Entre essas medidas, ocorreram desde o aniquilamento na fogueira, no período clássico e na Idade Média, que também utilizou-se da “nau dos insensatos” (FOUCAULT, 2014d), para afastá-los do convívio social, até as aniquilações do século XX, em que os loucos foram denominados – juntamente com os judeus e outros grupos – como “Lebensunwertes Leben” (vidas indignas de serem vividas) por ocasião da ascensão de Hitler na Alemanha.

Na Paris do século XVII, é inaugurado o Hospital Geral. Segundo Gama (2008), entre os objetivos desse espaço constava hospedar os loucos e pobres que povoavam e desordenavam o centro da cidade. Atrelada à ideia do enclausuramento não estava nenhuma concepção de cura ou tratamento, mas apenas de separar os excluídos do complexo urbano. Processo que mais tarde acabou provando-se ineficaz, na medida em que outros objetivos foram vinculados a ele, como a diminuição do desemprego ou da indigência (FRAYSE-PEREIRA, 1985).

Foucault (2014d), analisando o surgimento dos primeiros hospitais de internação para loucos da Europa, ainda no século XVII, aponta que o termo “louco” respondia por qualquer indivíduo que, de alguma maneira, tivesse atitudes que não correspondessem com a ideia de normalidade social. Louco, assim, poderia ser desde um indivíduo criminoso até um alienado; sendo comum o termo ser substituído por “furioso”:

134 A doença mental, que a medicina vai atribuir-se como objeto, se constituirá lentamente como a unidade mítica do sujeito juridicamente incapaz e do homem reconhecido como perturbador do grupo, e isto sob o efeito do pensamento político e moral do século XVII (FOUCAULT, 2014d, p. 131).

Esse pensamento acerca do alienado foi, no decorrer do tempo, cada vez mais se acentuando na mentalidade dos indivíduos, de modo que passaram a encaixar-se no conceito de doente mental todos os tipos de sujeitos indesejáveis da sociedade. Roger Bastide, ao analisar a loucura, afirma que os psicóticos, “da mesma forma que os homens normais, são parte integrante de um sistema total” e sua identificação só é possível pela referenciação:

Somente se é louco em relação a uma determinada sociedade. Assim, a loucura é ao mesmo tempo cópia e desvio em relação a essa sociedade. De um lado, ela é uma ilhazinha de resistência a tudo aquilo que é destruído (ou desconsiderado) – o sagrado, o afetivo, o irracional, a subjetividade e também se poderia dizer a poesia – mas, por isso mesmo ela remete à sociedade que copia, invertendo-a. Ela é certamente um ritual de rebelião, porém, um ritual que fracassa (BASTIDE, 2016, p. 181).

Para Bastide (2016, p. 178), a loucura é “uma coisa social no sentido durkheimiano do termo, pois é constituída por um comportamento coletivo ou miticamente determinado e ela própria é uma construção coletiva”, dessa forma, tem duas facetas que precisam ser consideradas. A primeira diz respeito a seu grau de patologia e significa, drasticamente, o banimento da razão sociável do indivíduo e o seu convertimento num ser “incomunicável” com o mundo. A segunda refere-se à transformação no paradigma da comunicação, em suma, ela é, como loucura, uma espécie diferenciada (muitas vezes niilista) de produção de discurso. É, ao mesmo tempo, uma desistência e uma luta da comunicação com o outro. Pode ser também um rompimento, quase político, às amarras do confinamento social ao qual o sujeito é submetido. Nesse sentido, aliás, de estratégia de comunicação, é que Erasmo de Rotterdam, em seu Elogio da Loucura, de 1511, dá voz à loucura, personificando-a:

Eu me revelo, como já se disse, com meu rosto e meus olhos e, se alguém quisesse me tomar por Minerva ou pela sabedoria, eu o haveria de desiludir sem palavras, por só um olhar que é o espelho menos mentiroso da alma. Não uso disfarce, não dissimulo no rosto o que não sinto no coração. Sou sempre igual a mim mesma. Não ponho máscara, como aqueles que pretendem representar um papel de sábios e andam desfilando como macacos vestidos de púrpura e como asnos com pele de leão (ROTTERDAM, 2003, p. 20-21).

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Para Rotterdam, a loucura apresenta-se como um projeto de confronto direto entre o ser e o espaço social que o cerca. Por intermédio da loucura, as máscaras sociais são postas fora e cada ser apresenta-se tal qual sua alma é; o ser apresenta- se para o confronto com o mundo com suas feridas expostas, não se permitindo reticências ou quaisquer dissimulações. Como consequência, porém, esse recurso faz partir o tecido social, pois este não é costurado a partir de verdades, mas de simulacros.

Em Insânia (CARVALHO, 2009), Luciene dedica toda a sua obra ao tema da loucura. Embora reserve, com o intuito de promover uma visão crítica do processo de internação dos doentes mentais, dois espaços para cartas trocadas com uma psiquiatra, a ênfase do texto está na loucura encarada como estrutura discursiva, mais propriamente poética.

Posto isso, a loucura, embora em Insânia seja operada a partir de uma experiência clínica, portanto, experiência de segregação, constituir-se-á, paulatinamente, como um elemento de conexão do sujeito com a sociedade que critica ao mesmo tempo em que nela deseja embrenhar-se. A loucura, por isso, não deixa de ser fonte de angústia e frustração. Não obstante, em sendo o sujeito taxado de louco, assume essa personalidade para justificar seus atos numa atitude de subversão do status quo. Se, por um lado, conforme sentenciou Foucault (2014d, p. 11), “o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: [uma vez que] pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância”, por outro lado, também não pode ser julgado por suas atitudes, posto que seu discurso é análogo ao de uma criança.

Dessarte, além da estratégia de preservação e ataque por intermédio da loucura, existem outros elementos que debateremos neste capítulo os quais repercutem na personalidade cambiante da poeta-performer, o sentimento de culpa e suas implicações na bruxaria.

O sentimento de culpa oriundo do pertencimento ao gênero considerado inferior surge ainda na infância e a aceitação dessa condição vai ocorrer apenas na vida adulta e, mesmo assim, não totalmente. A partir desse período ganha forma o sentimento de inadequação, seja por profissionalmente não corresponder aos anseios da mãe, por não possuir prestígio profissional, seja ainda por não corresponder ao padrão de beleza estereotipado pela sociedade, ou ainda pela negritude, “que não agrada” ou, por fim, por não se acertar no amor, só no sexo.

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Como resultado desse mal-estar, o sujeito reflete um caráter cambiante entre céu e inferno e, dentro desses espaços, acaba por liquefazer-se em variadas performances, dentre elas, a que ganha relevo é aquela que remete à bruxaria, numa tentativa bem-sucedida de subversão.