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CAPÍTULO IV: EDUCANDO PARA A CIDADANIA: FORMAÇÃO DA

4.2. As esferas da existência humana

4.2.3. A esfera da política

Começaremos nossa reflexão sobre a esfera política, social do homem com a clássica e mui usada citação de Aristóteles:

“...é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por

natureza, um animal político. E aquele que por natureza, e não por mero acidente, não tem cidade, nem Estado, ou é muito mau ou muito bom, ou sub- humano ou super-humano (...) Essa é uma característica do ser humano, o único a ter noção do bem e do mal, da justiça e da injustiça. E é a associação de seres que têm uma opinião comum acerca desses assuntos que faz uma família ou uma cidade” (Aristóteles, 1999: 146).

20 Compreendemos aqui este conceito ligado a signo, daí a significado, significação. Uma sociedade

Partimos aqui do pressuposto de que somos seres políticos, sociais, senão “por natureza”, pelo menos enquanto uma nota genuinamente característica de nossa humanidade. Esta é uma esfera de realização de nossa humanidade e portanto somente através dela é que podemos ser plenamente humanos e por conseguinte ser cidadãos. Talvez ao longo dos séculos, quando foi sendo construído o conceito de cidadania – como foi abordado no capítulo II – o aspecto político mereceu sempre o maior destaque. Como mostramos anteriormente os direitos cidadãos de primeira geração foram precisamente os políticos, os econômicos, chamados de segunda geração, consistiram uma conquista posterior. Isso comprova a importância histórica que a política, isto é, a vida social, tem ocupado. Houve desde sempre uma compreensão de que a conquista do espaço social, dos direitos políticos, da partilha do poder era um fator determinante do desenvolvimento humano. Como afirma Severino:

“... não basta aos homens repartirem entre si os bens materiais e os bens

simbólicos; esta participação se desumanizará se ela não se lastrear na repartição do poder. Aqui estamos na esfera da cidadania, no sentido estrito. O tecido social é atravessado pelas relações de poder, ou seja, os homens não se relacionam automaticamente entre si por relações de igualdade; ao contrário, perpassa, entre eles relações de poder que se transmutam muito facilmente em relações de dominação, de opressão. Assim, a pressuposta igualdade ontológica não tem nenhuma consistência se não for reconstruída reiteradamente no tempo histórico-social” (1992:11).

Não se trata de cair aqui numa discussão bizantina sobre o que é mais “humano”. Pois, como diz Gramsci, o homem é uma teia de relações. O indivíduo para Gramsci só entra em relação com os outros homens organicamente, ou seja, na medida em que vai fazendo parte dos diferentes organismos que compõem a realidade social, desde os mais simples aos mais complexos. Essas relações não são mecânicas, são ativas e conscientes, correspondendo a diferentes graus de inteligibilidade que delas tenha o homem individual. Por isso ele afirma que “cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que

transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central (Gramsci, 1981:39). O homem para ser corretamente compreendido deve ser concebido como um

bloco histórico onde entram elementos subjetivos e individuais e elementos de massa – objetivos ou materiais – com os quais o indivíduo está em relação ativa. Quando se transforma o mundo exterior, as relações sociais, se fortalece a si mesmo, se desenvolve a si mesmo. Para Gramsci é um erro supor que o “melhoramento” ético seja um fator puramente individual, pois a individualidade é na verdade uma síntese de elementos subjetivos e de elementos externos, onde o subjetivo se realiza e se desenvolve. A transformação é dialética. Por isso pode o autor afirmar que “o homem é essencialmente

‘político’, já que a atividade para transformar e dirigir conscientemente os homens realiza a sua ‘humanidade’, a sua ‘natureza humana’” (1981:47).

A ação do homem sobre o meio social, ação que visa uma transformação desse meio, se torna práxis. Esta deve ter como objetivo a conquista de hegemonia na sociedade civil, para chegar-se em última instância à conquista do poder político. Mas antes ocorre um processo que Gramsci chama “catarsis”:

“Pode-se empregar a expressão ‘catarsis’ para indicar a passagem do

momento puramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético- político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (1981: 53)

Pode-se observar que o momento político corresponde a um estágio mais avançado no desenvolvimento daquele que não busca a satisfação imediata de suas necessidades materiais, mas tomou consciência de seu lugar social e almeja uma transformação que atenda não somente a si mesmo, mas à coletividade e que tenha uma abrangência espacial e temporal maior, digamos, mais transcendente. É uma passagem do ‘objetivo ao subjetivo’ e da ‘necessidade à liberdade’ em palavras de Gramsci. Este é um homem mais livre, mais altruísta, mais aberto aos outros, mais ético:

“A estrutura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e o

tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em fonte de novas iniciativas” (1981:53)

O momento da catarsis é, segundo Gramsci, o ponto de partida para toda a praxis. O processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético. É pela práxis que se conquistará a hegemonia, e com ela a transformação da classe dominada em classe dirigente. O movimento dialético se dá a medida que a própria compreensão crítica de si mesmo ocorre no campo da luta de hegemonias. Esta luta ocorre primeiramente no campo da ética, depois no da política, para chegar a uma elaboração superior da própria concepção do real. Há, portanto, diferentes momentos, mas não se pode dizer que primeiro é preciso mudar a consciência para depois mudar a realidade social, ou se primeiro muda-se a realidade social e a mudança da consciência será uma conseqüência natural, mas elas vão acontecendo concomitantemente, num processo de transformação amplo subjetivo e objetivo. Transformamos as relações e essas nos transformam.

Pelo acima exposto percebemos que ser homem é participar dessas diferentes esferas. O homem se relaciona através de sua prática com a natureza, pelo trabalho, com a sociedade pela sociabilidade e consigo mesmo pelo cultivo da subjetividade. Os três planos integrados tornam possível a realização plena de nossa humanidade e consequentemente a possibilidade da vivência cidadã. Fica aqui o questionamento que nos acompanha desde o começo desse estudo: como a educação será mediadora desse processo de construção. Trataremos disso a seguir.