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3. A singularidade sócio-cultural brasileira e a telenovela

3.2. A especificidade brasileira segundo Gilberto Freyre

A obra de Gilberto Freyre constitui, conforme Souza (1999 e 2000) e Cardoso (1993), uma importante ruptura nos estudos sobre a sociedade brasileira desenvolvidos nas primeiras décadas do século XX, por superar o paradigma racial antes predominante. Ao discorrer sobre o encontro intercultural, em Casa-grande & senzala, introduzindo na literatura brasileira aspectos como rituais, costumes e hábitos cotidianos, Freyre desenvolve uma argumentação na qual se destacam aspectos como o personalismo e o sadomasoquismo marcantes nas relações sociais existentes no país, onde vigora uma tradição do individualismo autoritário. Estes são alguns dos principais pontos da obra freyriana a serem resgatados neste trabalho.

Destacando como uma das principais bases da sociedade colonial brasileira organizada a partir do século XVI o particularismo da família patriarcal, Freyre mostra como esta instituição “[...] reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas, [inclusive] a do mando político [expresso num] oligarquismo ou nepotismo” (Freyre, 2001, p.96). Analisando este aspecto da obra freyriana, Souza comenta com pertinência:

o chefe da família e senhor de terras e escravos era autoridade absoluta nos seus domínios, obrigando até “El Rei” a compromissos e dispondo de altar dentro de casa e exército particular nos seus territórios. [Trata-se, pois, de um] caráter autárquico do domínio senhorial condicionado pela ausência de instituições acima do senhor territorial imediato. Uma tal organização societária, especialmente quando o domínio da classe dominante é exercido pela via direta da violência armada [...], não propicia a constituição de freios sociais ou individuais aos desejos primários de sexo, agressividade, concupiscência ou avidez (2000, p.218 e 227).

Esse contexto deu margem, segundo Freyre, ao desenvolvimento de uma relação de sadomasoquismo que, além de permear

[...] a esfera da vida sexual e doméstica [marido/mulher, senhor e senhora de engenho/escravos, pai/filho, filho de senhor de engenho/filho de escravos, conquistador/ conquistado], têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político [...], onde o mandonismo tem sempre

A respeito dessa relação de sadomasoquismo expressiva na sociedade colonial brasileira, associada ao referido mandonismo desenfreado da família patriarcal, que favoreceu as condições de existência daquele tipo de relação, concordamos com Souza (1999 e 2000), ao assinalar que tais elementos contidos no referencial freyriano permitem- nos perceber a gênese do forte caráter de hierarquização e autoritarismo que permanece marcante nas relações sociais que vigoram no Brasil.

Ao lado do autoritarismo, o tipo de sociedade característica do Brasil Colônia, cuja unidade básica é a família, engendrou uma relação de proximidade entre os agentes sociais, como nos mostra Souza, a partir de sua reflexão sobre os escritos de Freyre:

A família patriarcal como que reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, formado pelo senhor e sua família nuclear, mas também os elementos “intermediários”, constituídos pelo enorme número de bastardos e dependentes, além da base de escravos domésticos e, na última instância da hierarquia, os escravos da lavoura (2000, p. 219).

Para a explicação da relação de proximidade é fundamental, para Freyre, a caracterização do português, marcado pela plasticidade e adaptabilidade, elementos que, de origem semita - adquiridos no desenvolvimento histórico do país -, são responsáveis pela “[...] singular predisposição do português para a colonização híbrida” (Freyre, 2001, p.80). Essa predisposição, aliada à necessidade de procriação para o povoamento e colonização, contribui decisivamente para o processo de sincretismo cultural que marca o Brasil. A influência de componentes semitas foi decisiva inclusive para a especificidade do

sistema escravocrata no país, a qual, por sua vez, reside no caráter muitas vezes familial na relação senhor/escravos, como ressalta Freyre, em sua obra Novo mundo nos trópicos:

os portugueses, apesar de intensamente cristãos – mais que isso até, campeões da causa do cristianismo contra a causa do Islã – , imitaram os árabes, os mouros, os maometanos em certas técnicas e em certos costumes, assimilando deles inúmeros valores culturais. A concepção maometana da escravidão, como sistema doméstico ligado à organização da família, inclusive às atividades domésticas, sem ser decisivamente dominada por um propósito econômico-industrial, foi um dos valores mouros ou maometanos que os portugueses aplicaram à colonização predominantemente, mas não exclusivamente, cristã do Brasil (1969, p. 180).

Esse aspecto familial presente no sistema escravocrata brasileiro é um ponto chave para se entender como pôde o individualismo autoritário combinar-se com relações de proximidade, conferindo os contornos da sociedade patriarcal organizada, marcada pela tensão entre submissão e resistência. Nesta sociedade – caracterizada pela ausência de limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos, para quem não existia justiça superior, tampouco poder policial e moral independente –, a proximidade nas relações interpessoais eram delineadas por um familismo, sistema, como assinala Souza, resultante de um patriarcalismo segundo o qual

[...] a participação no manto protetor paterno depende da discrição e arbítrio deste último, [sendo] todas as modalidades de “protetorado pessoal” [possíveis, indo desde] o reconhecimento privilegiado de filhos ilegítimos ou naturais, em

negação da responsabilidade paterna nos casos dos pais que vendiam os filhos ilegítimos. A proteção patriarcal é, portanto, pessoalíssima, sendo uma extensão da vontade e das inclinações emocionais do patriarca (2000, p. 231).

Essa dependência pessoal em relação ao patriarca, acrescenta Souza, “[...] tende a instaurar alguma forma de bilateralidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e seus dependentes, mas também entre famílias diferentes entre si, criando um sistema complexo de alianças e rivalidades.” (ibid., p.232).

Percebemos, então, a gênese do personalismo assentado na tradição do individualismo autoritário, que, até hoje, supomos ser um elemento marcante na sociedade brasileira, engendrando comportamentos sociais. Investigar esse aspecto, contemplado na formulação dos temas orientadores da análise constituinte deste trabalho, consiste num ponto fundamental desta pesquisa.