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Capítulo 2. Concepções histórico-sociais da Educação Infantil

2.3. A especificidade da Educação Infantil e a formação de professores

Historicamente, para trabalhar com crianças pequenas, bastava ser mulher, amável, paciente e ter bom coração. No entanto, a discussão acerca da formação de profissionais da educação infantil intensificou-se no cenário brasileiro após as normatizações estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. Como visto, nela, a educação infantil é reconhecida como primeira etapa da educação básica, isto é, torna-se um nível de ensino, e aos profissionais que nela atuam passa a ser exigida formação mínima. Esses fatos trouxeram consequências que influenciam tanto a especificidade da EI, quanto o perfil de seu profissional.

Com a LDB, a responsabilidade de oferta em creches, para crianças de 0 a 3 anos, transfere-se da Assistência Social para a Educação. Dessa forma, todo o atendimento institucional da criança de 0 a 6 anos ficou a cargo dessa instância administrativa. No entanto, caracterizar o atendimento institucional de crianças pequenas como uma etapa da educação trouxe algumas implicações que cabem ser discutidas.

Para Kuhlmann Jr. (1998), o fato de a creche ter passado da assistência social para a educação se configurou apenas em uma “armadilha”, pois sugere uma ideia de substituição, como se a educação pudesse superar a assistência. Nesse sentido, questiona: “Ora, quem é que poderia afirmar, se refletisse ponderadamente, que na creche as crianças não precisam de cuidados, de assistência?” (p. 206). Os cuidados e a assistência à criança pequena não podem ser deixados de lado ou mesmo secundarizados, prestados de qualquer maneira, simplesmente porque “o que importa é o educacional”. Educação e assistência não se contrapõem; uma não

exclui a outra; não se pode considerar que a criança não precisa de assistência apenas porque a responsabilidade da creche e da pré-escola passou a ser da educação.

Já segundo Nascimento (2007), a transposição para a educação passa propiciar à criança um atendimento multifacetado. Além disso, a criança começa a ser vista como aluna, mesmo tendo, muitas vezes, apenas três meses de idade. Segundo a autora, a própria “estruturação escolar por si só não dá conta da operacionalização de modelos de atendimento à criança de 0 a 6 anos” (p. 107) e assim, acabam-se desconsiderando a especificidade da educação infantil, que é educar/cuidar das crianças pequenas.

Ora, mesmo antes da promulgação da LDB 9.394/96, pesquisas, propostas pedagógicas e movimentos militantes em prol da educação infantil afirmavam que as funções desse tipo de instituição deveriam estar centradas no binômio educar/cuidar. Para Tiriba (2005), esse conceito como binômio foi, na verdade, uma solução conceitual encontrada para superar termos como “proteção” ou “guarda”, utilizados até meados da década de 90 que, entretanto, não resolveu as questões colocadas pela prática. Mesmo atualmente, após treze anos da promulgação da LDB, continua-se buscando a concretização efetiva do educar/cuidar nas práticas de educação infantil. Além disso, quando se discute a formação dos professores que atuam nessa etapa, é frequente a polêmica em torno dessa questão, portanto, esse continua sendo um problema do presente.

Pesquisas como as realizadas por Veríssimo e Fonseca (2003), Kramer et al (2005b), Tiriba (2005), Secchi e Almeida (2007)indicam que o educar/cuidar não é concebido como binômio pelos profissionais que atuam na educação infantil. O grande embate é que, com essa dicotomia, o cuidar remeteria à idéia do assistencialismo e o educar, à idéia do ensino- aprendizagem, enfatizando um caráter escolar nas práticas de EI.

O educar/cuidar na educação infantil não pode ser confundido com aplicação de exercícios estéreis, padronizados, estereotipados. A prática nessa etapa da educação deve estar voltada para as experiências cotidianas, compartilhando com a família o processo de constituição da criança em sua integralidade, isto é, visando seu bem-estar, seu crescimento e seu pleno desenvolvimento. Assim, não há como buscar resultados acadêmicos de bebês e crianças pequenas.

Além disso, é necessário reconhecer que há especificidades e necessidades que são próprias das crianças. Há atividades, algumas delas básicas à sobrevivência e à garantia de bem-estar, nas quais uma criança pequena não pode ou consegue fazer sozinha, isto é, “há atividades de cuidado que são específicas da educação infantil” (Kramer et al, 2005b, p. 63), dentre elas, práticas de higiene, alimentação, saúde, mas o cuidar não se resume a isto. O

cuidar, integrado e indissociável ao educar, é o ato de olhar para a singularidade e reais necessidades do outro, o que, para Kramer (2005b) envolve a saúde, os afetos e os valores morais.

Já para Boff (1999), o cuidar envolve atitude, um envolvimento próprio da natureza e do ser humano. Para ele, sem o cuidado, o ser humano

deixa de ser humano. Se não receber cuidado, desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre (...) O cuidado há de estar presente em tudo (p. 34).

Nesse sentido, é interessante destacar que a especificidade do cuidar pode ir mudando de acordo com a idade das crianças, mas o comprometimento com o outro é fundamental no processo de educação, independente que seja entre crianças, jovens ou adultos. Na verdade, não há processos educativos sem cuidados.

Dessa forma, assim como afirma Faria (2007), o adulto que trabalha diretamente com as crianças precisa ser um profissional, um professor, mas um professor diferente dos que atuam em outros níveis de ensino, já que seu cotidiano não deverá ser codificado em conteúdos curriculares, deverá ser pautado em açõesde educar/cuidar. Assim, ainda que seja um avanço da legislação, o fato de a LDB24 circunscrever ao profissional da educação infantil o perfil de professor, há questões sobre isso que também cabem ser discutidas.

A primeira delas é trazida por Nascimento (2007), que ressalta que, da forma como está postulada, a legislação exclui os demais profissionais que, mesmo em menor número, continuam atuando na área, dentre eles, os crecheiros, os monitores, os recreacionistas, muitas vezes denominados professores leigos.

Gatti e Barreto (2009) publicaram os resultados de um intenso estudo sobre a formação e carreira dos professores no Brasil. As autoras destacam que às várias fontes que se recorra não é possível chegar ao número preciso de professores no país, o que está sendo alterado pelo Censo da Educação Básica, ainda não disponível. De qualquer forma, elas trazem, segundo dados do Censo Escolar de 2006 (Inep), que dos 403.919 profissionais que atuam na EI, 11.261 são professores leigos, isto é, sem escolarização mínima para atuação. Muitos desses professores, inclusive, declaram ter apenas um (1) ano de escolaridade. Cabe destacar, a título de comparação, que, dentre os profissionais que atuam no Ensino Médio, a

24 Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de

licenciatura, de graduação plena em universidades e institutos superiores de educação, admitida a formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal.

escolaridade mínima declarada é de 12 anos. A tabela abaixo nos ajuda a localizar esses professores no país:

TABELA I- Funções docentes segundo os níveis de ensino e de formação docentes e regiões- Brasil, 2006

Níveis de ensino Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-

Oeste Total 403.919 27.520 124.123 167.696 61.894 22.686 Sem nível superior 230.518 21.083 95.581 77.488 27.130 9.236 Infantil Leigos 11.261 847 5226 2486 2185 517

Fonte: BRASIL, MEC/ Inep. Censo Escolar da Educação Básica, 2006. Adaptado de Gatti e Barreto, 2009.

É interessante observar que em números absolutos a maior concentração de professores leigos está na região Nordeste, seguida da região Sudeste, que também tem o maior número de docentes atuando na Educação Infantil. Já o baixo número de professores leigos na região Centro-oeste pode ser explicado pelo menor atendimento, uma vez que essa é a região com o menor número de docentes de EI.

Como consequência da exclusão ressaltada por Nascimento, é possível destacar outra questão, analisada por Kramer et al (2005b): o fato de esses demais agentes continuarem atuando na EI, juntamente com profissionais formados, denominados professores, acaba por evidenciar a dicotomia do educar/cuidar, já que o “educar” fica a cargo das professoras, enquanto o “cuidar” é relegado a outras profissionais. A autora ainda ressalta um fato curioso, observado durante seu processo de pesquisa: os professores que tiveram oportunidade de estudar e, teoricamente, sabem da importância do cuidado no desenvolvimento infantil, são os que mais se recusam a exercer esse papel, deixando a cargo das pessoas com menor formação o que consideram o cuidar.

Enfim, uma terceira questão refere-se ao imaginário de professor compartilhado socialmente. O profissional ser reconhecido como professor muitas vezes o remete ao imaginário do professor que ensina, que aplica conteúdos, provas, corrige trabalhos, pune. Há um significado, socialmente compartilhado, acerca do trabalho docente, que pode conflitar com a especificidade da educação infantil.

Por outro lado, apenas com a LDB é que o ofício de atuar com crianças pequenas assume características de profissão, já que até então era considerado apenas uma atividade. Os

trabalhos de Saparolli (1997), Kishimoto (1992) e Gomes (2009)nos ajudam a entender esse fato.

Em 1997, Saparolli, apoiada na conceituação sobre profissionalismo apresentada por Kishimoto (1992), na qual profissional deve ser o sujeito que dispõe conhecimentos e habilidades para exercer determinada função, afirma que a profissão de educação infantil estava longe ser concretizada, pois não dispunha de critérios fundamentais que compõe uma profissão, dentre eles, “a formação regular anterior, os treinamentos prolongados em serviço e o conhecimento especializado” (1997, p. 20). Dessa forma, a função seria exercida com base em atributos considerados inatos ou em habilidades adquiridas pela experiência. As pessoas que até então atuavam no ofício de cuidar/educar crianças pequenas não tinham profissão, tinham emprego.

Em seu trabalho, Cerisara (1996) também traz a discussão sobre a existência do trabalho e do emprego na EI. Como citado, a autora pesquisou professoras e auxiliares de classe que atuavam, juntas, com as crianças pequenas. Seus resultados apontaram que as auxiliares pareciam estabelecer uma relação com emprego ou trabalho, sem ideia de carreira a ser seguida, enquanto as professoras se referiam a uma profissão ou carreira que foi, de alguma forma, escolhida.

Indo ao encontro a essa discussão, Gomes (2009) afirma que a existência do emprego configurou a atuação dos profissionais de EI até meados dos anos 90. Segundo a autora, somente a partir dessa data é possível observar uma

preocupação com a formação e com políticas públicas de formação para os profissionais que trabalhavam em creches e não possuíam a escolarização necessária: o magistério para o trabalho na educação infantil (2009, p. 128).

Sendo assim, é possível afirmar que a profissão de professor de Educação Infantil, que atua em creches e pré-escolas, é uma conquista recente. Nesse sentido, apesar de todos os impasses e discussões acerca das consequências da integração da educação infantil ao sistema de ensino e da designação de professor aos sujeitos que nela atuam, a LDB regulamentou e configurou características de profissão a essa atividade. Não estamos aqui desconsiderando todas as problemáticas que o texto da LDB circunscreveu à EI, nem desconsiderando o contexto descentralizador e neoliberal que compunha o cenário das políticas sociais na promulgação da LDB, no entanto, reconhecer as pessoas que atuam com as crianças pequenas como professor, profissional com direito à formação, à valorização, a salário digno é um reconhecimento dos direitos das crianças. Neste sentido, Rosemberg (1997) contribui:

Cuidar e educar crianças pequenas em instituições coletivas é uma profissão. Como também necessita formação prévia (que contemple conhecimentos sobre esse duplo objetivo), formação em serviço (principalmente através de cursos e supervisão), espaço e instrumentos de trabalho adequados, remuneração condizente com a importância social do trabalho. O dia que as educadoras e professoras tiverem a consciência clara de que a creche e a pré-escola são espaços de educação e cuidado da criança, mas, também espaço seu de trabalho, talvez sejam mais vigorosas em suas reivindicações pela melhoria da qualidade do atendimento oferecido à criança (p. 24).

O fato é que, como anunciado, as condições objetivas, dentre elas, essas alterações postuladas pela LDB, atreladas ao significado, construído historicamente e compartilhado socialmente sobre o trabalho docente, como a ideia de ser para mulher, que não necessita de qualificação, de que o “cuidar” é realizado por pessoas socialmente inferiores, serão reconfigurados, por cada sujeito em seu processo de construção de sentidos sobre a docência na educação infantil. E esses sentidos, por sua vez, não podem ser desconsiderados, como têm sido em diversas propostas de formação de professores, influenciadas por ideologias25 e discursos capitalistas, já que são eles que compõem a realidade da educação infantil. Ora, não é estranho que, mesmo sabendo da importância do cuidar para o desenvolvimento infantil, alguns professores continuem se negando a executar algumas tarefas relacionadas? Seria essa uma busca de valorização de seu trabalho? Os dados apreendidos nesta pesquisa podem apontar caminhos para responder essa questão.

Enfim, no próximo capítulo, serão discutidos alguns dados e questões que podem se configurar em indicativos da desvalorização do trabalho docente de EI, objetivados na realidade social e política brasileira.

25 O conceito de ideologia é amplo. Existe uma pluralidade de concepções, que atribui ao conceito

diferentes significados. No entanto, utilizamos, aqui, o sentido marxista, que embasou a definição de Chauí. Para a autora, ideologia é resultado da divisão social que separa trabalho material e intelectual, atribuindo a este e ao seu produto, as ideias, aparente autonomia. Em uma sociedade dividida em diferentes classes, isso resulta em um instrumento de dominação de uma sobre a outra. Ela afirma: “a ideologia é um instrumento de dominação de classe” (2001, p. 92) , que tem papel específico de “impedir que a dominação e a exploração sejam percebidas em sua realidade concreta (...) por ser o instrumento encarregado de ocultar as divisões sociais (...) deve transformar as ideias particulares da classe dominante em ideias universais, válidas igualmente para toda a sociedade (...) é uma ilusão, necessária à dominação de classe” (2001, p. 93).