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afro-brasileira

1. A Especificidade de ser mulher negra trabalhadora

A especificidade do ser mulher negra e trabalhadora se apresenta, com certa regularidade, ora nos dados estatísticos2 que revelam a situação com que a mesma

se encontra na base da pirâmide social porque se trata de “[...] um contingente de aproximadamente 50 milhões de brasileiras que, em sua maioria, experimentam

1 A expressão tornar-se mulher refere-se à clássica afirmação de Simone de Beauvoir em “O segundo sexo”, que aparece em muitas correntes feministas que trazem como pano de fundo a crítica à ideolo- gia do patriarcado que justifica as condições femininas como consequência de um processo de ordem natural, biológica, portanto, e não como uma construção social.

2 “No que diz respeito à renda média, o contingente das mulheres negras distancia-se bastante tanto das mulheres brancas quanto dos homens negros e dos homens brancos. Em 2008 a renda mé- dia das mulheres negras era de R$ 383,39; seguida da renda dos homens negros, R$ 583,25; das mulheres brancas, R$ 742, 05; e dos homens brancos, R$ 1.181, 09 (Ipea, 2008) (Heringer& Silva, 2011: 281).

no cotidiano precárias condições de vida” (Heringer& Silva, 2011: 273), ora nos estereótipos e representações que as cercam e que, de algum modo, justificam os lugares e não-lugares a elas conferidos no mercado de trabalho, em que a “boa aparência”, por exemplo, torna-se fator de seletividade; para além da questão fenotípica, agregam-se elementos da ordem da “racialização da sexualidade [...] efeito de gerações de abusos sexuais seguido de calúnias contra a reputação das mulheres negras” (Bankole, 2009: 260) que a tornam, para além de fenotipicamente “inferiores”, também, moralmente.

Por conta de especificidades não apenas desvalorativas mas, também, da negação dos atributos relativos à luta , resistência e referências ancestrais das mulheres negras, valorativas enquanto identidade étnica, emerge um movimento que não é contrário às reivindicações universalistas do feminismo mas que questiona em que medida se faz necessário envolver as questões relativas ao gênero a outras formas de opressões (Carneiro, 2012), uma vez que “o movimento feminista ou de mulheres que tem suas raízes dos movimentos mais avançados da classe média branca, geralmente ‘se esquece’ da questão racial [...]. Este tipo de ato falho [...] tem raízes históricas e culturais profundas” (Gonzales, 2008: 37).

As raízes históricas e culturais que relacionam a questões de gênero ao racismo3

deve ser, na concepção de Bonfim (2009: 223), analisada a partir de uma profundidade histórica que contemple

[...] além do marco da escravização da mulher negra no Brasil – marco geralmente dissociado das elaborações históricas anteriores ao século XV –, sem deixar de dispensar atenção à importância desse processo como momento fundamental de reelaboração da imputação de subalternidade para esse grupo de mulheres num contexto territorial, social, político e histórico.

3 Taguieff (1997: 7-9) chama a atenção no sentido de dizer que “nem o estudo do racismo nem a luta contra as suas formas actuais poderão basear-se simplesmente numa definição do tipo: ‘o racismo é a doutrina que assenta na afirmação de uma hierarquia entre as raças humanas’. […] na linguagem ordinária e no pensamento comum, parece ter-se feito insensivelmente a descoberta que de que o racismo podia manifestar-se de maneira não explícita, e, mais precisamente, que nós éramos fre- quentemente confrontados com modos de exclusão que ilustram alguma coisa com o racismo sem raça (s), sem a menor referencia a categorias sociais definidas”.

As elaborações históricas anteriores ao tráfico transatlântico, embora temporalmente tão longínquas, apontam que a

[…] degradação brutal da posição da mulher africana na sociedade acontece somente com o tráfico negreiro e a escravização racial dos africanos no oriente médio (século IX a XVI). Foram essas ocasiões em que para a mulher africana escravizada, operou-se uma mudança total de perspectiva na direção da coisificação: mulher-objeto, mulher-sexo, mulher labor [...]. É nesse período que a subalternização da africana é a articulada ao status de escrava, em uma ordem social em que ser mulher e ser negro anunciavam uma suposta inferioridade de gênero e raça [...] (Bonfim, 2009: 225).

Bonfim (2009), ao afirmar que diversos estudos apontam que, anterior a processos de colonização do continente africano, muitas sociedades africanas eram matricêntricas, com elevada posição social da mulher, faz com que a autora analise a situação da mulher afro-brasileira a partir de um duplo processo: seu desfazimento e sua reconstrução na diáspora negra brasileira.

Neste sentido,

[...] sua matriz civilizatória enraizada poderia ser o instrumento pelo qual a própria mulher negra se forjaria na nova sociedade.[...] Ela fez que fosse possível , ao menos, a reelaboração de algumas de suas práticas culturais: religiões de matriz africana, danças, músicas, modo de vestir e de falar, arranjos familiares matricêntricos, relação não tabuizada com o corpo. Essas reelaborações constituíram-se em brechas estabelecidas na estrutura social, segundo a dinâmica dominação-resistência (Bonfim, 2009: 239).

Na dinâmica dominação-resistência desta situação, algumas mulheres negras e quilombolas, no contexto de seus territórios e fora deles, não reduzem suas práticas de trabalho a processos de subalternidade tal qual seria a lógica do que lhe é socialmente conferido enquanto mão-de-obra negra e, consequentemente, barata, alijada de direitos sociais4.

4 A síntese dos Indicadores Sociais de 2009 destacou que 54,1% das mulheres negras e 60% das mulheres pardas trabalham sem carteira assinada (Heringer& Silva, 2011).

No subterfúgio das práticas cotidianas, as mulheres negras têm transformado suas fragilidades em força, se constituindo, no dizer de Bankole (2009: 264), “quase um rito de passagem necessário para a mulher”, que se recria a todo o momento tendo como parâmetro suas

[…] experiências, seu conhecimento, sua perspicácia, suas observações, e assim por diante, construindo-se meio a opressão racial, de gênero e de classe. A transformação torna-se um catalizador quando as noções interiorizadas de inferioridade e inadequação são consumidas por um senso de propósito e vitalidade (Bankole, 2009: 264).

Neste momento, dialogo com algumas mulheres das comunidades remanescentes de quilombo do Rio Grande do Sul, mais especificamente com as mulheres da região sul do estado, cujos quilombos localizam-se nos municípios de Canguçu, Pelotas, Piratini e São Lourenço do Sul.

Este encontro tem-se dado através de ações de cunho acadêmico e político, por intermédio de atividades no campo da extensão universitária e de pesquisas de caráter quantitativo e qualitativo.

No entanto, as experiências destas mulheres, de forma diversa e ao mesmo tempo similar, trazem histórias de sua inserção no mundo do trabalho que, em primeira estância, revelam os sentidos de um trabalho que só pode ser descrito por elas mesmas, uma vez que são sentidos que se reconstroem na relação com o território, na relação com os patrões e patroas e na relação com um saber insurgente do que significa ser negra e quilombola em uma sociedade que tão pouco sabe o que significa um quilombo que não comporta as concepções demarcantes e restritivas que o veem como um grupo de negros e negras fujonas, que vivem isoladamente, alijadas de lógicas que lhes atribuem, pejorativamente, a ideia de serem resquícios, sobras da escravidão.

Para O’Dwyer,

contemporaneamente [...] o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea [...] consistem em grupos que desenvolveram

práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio [...] (2002: 18).

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