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A estratégia da moralidade

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A participação da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Brasileiro apresenta foco em questões morais desde a incipiente entrada de políticos religiosos no Congresso. Segundo Cowan (2014, p. 125), ―a proximidade com a agenda moral do regime militar levou os evangélicos aos corredores do poder, às vezes literalmente‖. Ricardo Mariano (2011, p. 250) confirma que ―a Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 1986, simbolizou a redemocratização e inaugurou um vigoroso ativismo pentecostal na política partidária nacional.―. Esta luta obstinada pela defesa da moralidade junto ao Estado provocou estagnação na legislatura brasileira. Apesar de a pauta evangélica sempre ter primado por questões morais, Ricardo Mariano percebeu um deslocamento na prática política destes atores, mudando seu foco para o combate a questões relacionadas a direitos sexuais e reprodutivos, principalmente, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e a descriminalização do aborto de modo a definir fortemente sua pauta política como moralmente conservadora. Ao que Maria das Dores Campos Machado (2012, p. 49) confirma que ―o que se percebeu nesse último pleito [de 2010] foi a reconfiguração da política dos segmentos religiosos e, mais especificamente, a politização reativa à agenda dos movimentos feminista e LGBT‖ (MACHADO, 2012, p. 49). Cabe ressaltar, que tal moralidade conjumina com a moralidade do eleitorado da FPE, o que fortalece suas posições no poder.

Ora, sabe-se que a moralidade não resume os interesses políticos da FPE, entretanto sua defesa é a porta de manutenção da posição de poder da bancada e constitui-se como sua moeda de troca para obter vitória mesmo que em outras agendas políticas, como aquelas que envolvem interesses econômicos particulares de seus membros e até mesmo das igrejas por estes frequentadas, por meio da isenção de impostos e outras disponibilizações do serviço público, tais quais, concessões midiáticas e permissões para uso do espaço público para a realização de eventos religiosos. O que buscamos com isso afirmar é que a imprescindibilidade de sua defesa permite à bancada evangélica, na verdade, a estratégica garantia de seu espaço no poder. Neste sentido, Vital e Lopes (2012, p. 173) evidenciam que ―o controle de algumas agendas pelos evangélicos no Congresso Nacional é uma importante moeda de troca no jogo político que lhes possibilita o reconhecimento e a consolidação de sua atuação na Câmara Federal e no Senado‖ (VITAL E LOPES, 2012, p. 176). Os autores, ainda, afirmama possibilidade de desencadeamento de medos relacionados aos pânicos morais por conta da facilidade de acolhimento destes discursos. Assim, a importância de entender o apelo ao medo por trás destes discursos se dá em decorrência do acolhimento que tais falas encontram no pensamento da sociedade brasileira.

É o que também foi reproduzido no processo de consolidação e sansão do PNE por meio da evocação constante da chamada ―ideologia de gênero‖ e das supostas consequências maléficas que a conscientização de gênero traria para a sociedade brasileira. O discurso da ―ideologia de gênero‖, amplamente utilizado nos debates políticos relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos, defende a ―família natural‖, bem como os papéis sociais adequados a mulheres e homens na sociedade. Como destaca Souza (2008), a validação do argumento ―natural‖ se dá por meio da sacralização das diferenças biológicas que também naturalizariam as hierarquias sociais.

É importante perceber que, para além da promoção de uma agenda moralizante que insere e reinscreve na sociedade a dualidade do pensamento dominante patriarcal, as falas e discursos articulados pela Frente Parlamentar Evangélica produzem reações na sociedade que se aproximam ao pânico de pessoas que pensam diferentemente, por exemplo, que apoiam a descriminalização do aborto, o casamento de pessoas do mesmo sexo e tantos outros. Sendo assim, ―as representações religiosas de gênero, na medida em que produzem e reproduzem lugares diferenciados de poder de acordo com o sexo biológico, possuem papel ativo na produção da desigualdade de gênero‖ (SOUZA, 2008, p. 25). Este foco de políticos evangélicos em questões sexuais e reprodutivas,

além de ocasionar medos produz (simbolicamente) preconceito, pois, se ensina o modo ―correto‖ de viver, correspondentemente, pregando que todas as outras maneiras de se comportar e vivenciar as sexualidades são ―erradas‖.

Ademais, especificamente no que diz respeito a gênero, as más interpretações veiculadas no contexto dos debates relacionados ao Plano Nacional de Educação, como veremos a seguir, consagraram o termo conformando a ―ideologia de gênero‖ como saber formado ao qual se refere, atualmente, sem recurso fiel a esta categoria e, portanto, corrompendo os saberes de gênero, conformando fobia na população e, consequentemente, dificultando a difusão íntegra dos estudos de gênero.

2.3 CONFIGURAÇÕES DE GÊNERO COMO IDEOLOGIA NO DISCURSO POLÍTICO-RELIGIOSO DA “IDEOLOGIA DE GÊNERO”

Não seria suficiente analisar o discurso religioso da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional para compreender como a marginalização escolar, relacionada a gênero, ocorre. Contudo, cabe perceber as correspondências entre o que políticos religiosos dizem e o pensamento dominante na sociedade que produz e avaliza tais discriminações. Neste sentido, as falas de políticos religiosos e da sociedade, apesar de não necessariamente se originarem ou embasarem uma na outra, ressoam ―verdades‖ em seus conteúdos, ciclicamente se legitimando e formando saber a partir do reforço de valores presentes na própria cultura. A fim de determinar a importância do estudo que une política e religião, bem como o lugar que a religião ocupa no espaço público, Christina Vital e Paulo Lopes afirmam que:

as análises em torno da presença fundamental do religioso na formação do Brasil contemporâneo são importantes porque indicam que os políticos religiosos – sejam evangélicos, sejam católicos – ressoam valores presentes nesta cultura e podem acionar medos (relacionados aos pânicos morais) porque articulam um discurso que vai ao encontro da cosmologia dominante (VITAL E LOPES, 2012, p. 176).

Como sistema cultural (GEERTZ, 2008), a religião não só tem lugar nas crenças das pessoas, como produz sentidos e valores por meio das suas falas. Considerando ainda a participação de políticos religiosos no cenário político brasileiro, Vital e Lopes (2012, p. 176) concluem que ―não fosse o destacado lugar que a religião ocupa no espaço público, na formação de valores e no sistema de crenças dos brasileiros, tais episódios teriam outra dimensão‖. Seria necessário, portanto, entender e compreender as

afirmações dispostas nas falas religiosas e que fabricam conhecimento sobre o que é gênero, acionando pânicos morais (COHEN, 2002) e produzindo fobia de gênero e, consequentemente, outros termos como orientação sexual, identidade de gênero, em relação às feministas e às pessoas LGBT de maneira geral. Além da importância da religião enquanto sistema cultural (GEERTZ, 2008) cabe perceber, também, seu papel fundamental enquanto detentora do poder de legitimação das assimetrias na sociedade, sobretudo aquelas relacionadas a gênero.

Neste sentido, as ―verdades‖ produzidas e contidas no discurso religioso possuem papel determinante na consolidação de distorções que caracterizaram gênero como ideologia no decorrer das tramitações do PNE. Tais discursos estão em consonância com a moral sexual que reproduz fobias relacionadas a gênero e às sexualidades não convencionais e perpetua a inferiorização das mulheres e a estigmatização da população LGBT. Sendo assim, com o intuito de compreender as ―verdades‖ construídas pelos discursos que transformaram gênero em ideologia no processo de consolidação do PNE, o presente trabalhotermina questionando as formas como ―gênero‖ apareceu nas falas de políticos religiosos no Congresso Nacional, sobretudo por meio do ativismo de políticos evangélicos que compõem a FPE, preterido e relegado como risco à vida humana e à ―família brasileira‖.

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