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A estreita relação entre mito e literatura

1. TRAÇANDO CAMINHOS TEÓRICOS PARA A CONSTRUÇÃO DO SABER

1.6 A estreita relação entre mito e literatura

Existe uma opinião persistente de que o mito está estreitamente – embora obscuramente – ligado à literatura; tanto assim, que o destino de um está

amarrado ao de outro, engendrando apreensões quanto ao futuro da literatura, sempre que se instala um fascínio pela demitologização. (RUTHVEN, 2010, p. 72)

A demitologização consiste em tornar os textos míticos contemporâneos livres da fantasia, do excesso de metaforização dos fatos, relatando-os de forma objetiva, direta para assim prevalecer seu caráter real, ―verdadeiro‖ e não haver dúvida de sua veracidade. Visto que, o que provoca a dúvida e a descrença no que é narrado é a presença do mítico, isto é, do sobrenatural, da fantasia, do honorífico, enfim, do racionalmente impossível.

Segundo Ruthven (2010, p. 72), a opinião exposta anteriormente existe porque ―em grande parte, os europeus geralmente concebem a mitologia como um fenômeno greco- romano, e deixam de perceber que ‗a mitologia greco-romana é preservada numa forma literária altamente sofisticada‘ ‖. O autor supõe que os europeus desconsideram, desconhecem, talvez, os mitos primitivos que deram origem aos clássicos, assim como ignoram a existência de outros mitos que, no geral, são crus, cruéis e ética e esteticamente desprezíveis, por isso possuem apenas essa visão literária e limitada do mito, e temem pela literatura quando alguns críticos ―iluministas‖ defendem o processo de demitologização.

Na contramão deste ponto de vista, os folcloristas defendem que:

O que achamos em Eurípides ou em Ovídio não é mitologia, mas literatura feita a partir de mitos, literatura feita por artesãos que falsificam artisticamente os mitos a fim de criar alguma coisa que - em sua forma estabilizada e codificada - está bastante distante do que o antropólogo encontra em seu trabalho científico de campo. (RUTHVEN, 2010, p. 72) Nesta visão, os folcloristas negam a literariedade dos mitos originais, na medida em que os separam da literatura, dada à sua crença, certamente, nos ritos e rituais praticados pelos povos primitivos e que são a base dos verdadeiros mitos. Por isso, que os textos da mitologia clássica não são de fato mitos, mas sim literatura produzida a partir de mitos.

Por outro lado, a comunidade literária considera mitologia aquele mito mais artisticamente acabado, desprezando as outras formas como mero barbarismo. Neste caso, ―os mitos são tidos como obras de literatura, em virtude de serem obras da imaginação, reconhecidamente anônimas e coletivistas, mas, não por isso, menos imaginativas‖ (RUTHVEN, 2010, p. 72) e a mitologia grega é reconhecida como a maior obra de ficção. Para os defensores deste ponto de vista, ―estruturalmente a metáfora é a base comum ao mito e à literatura‖, rendendo discussões, inclusive, acerca de quem deu origem a quem: a metáfora ao mito ou o mito à metáfora. Já, de acordo com Ruthven (2010, p. 73) ainda, os afetivistas

relacionam mito e literatura defendendo o argumento de que ambos possuem ―os mesmos fascínios de oratória‖ e, em função disso, tocam os leitores pelo trabalho imaginativo com as palavras, gerando poder.

Enquanto isso, declara Ruthven (2010), os críticos que enfatizam a diferença entre mito e literatura observam-na quanto a critérios de forma e conteúdo: imagens, no mítico; e linguagem, no poético, por exemplo. Sendo, no caso do mito, os eventos registrados, e não a forma de dizer, a causa de sua apreciação, configurando-se, para o crítico Lewis, portanto, uma experiência não especificamente literária.

Para Lewis (2009, p. 40), o mito tem um valor próprio, um valor em si mesmo, ―independente de sua consubstanciação em qualquer obra literária‖. Não é a forma de expressar a história que a faz bonita ou emocionante nos textos, é a história em si mesma que nos toca, nos emociona, por isso ele diz que o mito é um texto ―extraliterário‖. Neste ponto, ele se refere às melhores espécies do mito e esquece as demais, isto é, aquelas espécies que nos apresentam cenas cruéis, chocantes ou obscenas, beirando à estupidez e insanidade. A boa espécie é, para o autor, a clássica, por isso trata do mito como uma história que tem as seguintes características (LEWIS, 2009, p. 42-43):

 É extraliterário, ou seja, tem valor em si mesmo independente da forma ou linguagem ―literária‖ que o ‗enfeita‘;

 Seu prazer, valor e contemplação independem da criação do suspense ou da surpresa provocados pela linguagem utilizada; no caso, atua sobre nós por seu saber ou qualidade peculiares;

 A empatia humana reduz-se ao mínimo. O que é narrado é sobre-humano, e, embora, sentimos que as ações das personagens têm relevância profunda para nossas vidas, não nos vemos em seu lugar, fazendo as mesmas coisas;

 É sempre fantasioso, isto é, lida com o impossível e sobrenatural;

 A experiência da leitura pode ser triste ou prazerosa, mas é sempre grave;  Além de grave nos desperta um temor respeitoso. ―Sentimos na experiência a presença de um poder divino. É como se algo referente a um momento grandioso nos tivesse sido comunicado‖. (LEWIS, 2009, p. 43):

O escritor afirma ainda que, como racionalmente esse algo não pode ser alcançado, capturado e definido, a humanidade tende a conferir aos mitos explicações alegóricas. Porém, mesmo depois de serem experimentadas essas alegorias, o que prevalece e mexe conosco é a própria história, o fato narrado que é mais importante que elas.

O autor se preocupa em descrever os mitos e não explicá-los à luz da ciência da religião, da filosofia, da antropologia ou na concepção das sociedades primitivas ou pré- históricas, porque o que interessa é saber como os mitos ―atuam na imaginação consciente das mentes mais ou menos como a nossa‖ (LEWIS, 2009, p. 43) de leitor comum e contemporâneo, para perceber como se concebe nossa experiência com eles. Pois é esta observação que se insere na esfera dos estudos literários e a que lhe interessa, assim como interessa à nossa proposta de trabalho.

Em seus estudos, Lewis define os mitos com base nos efeitos provocados sobre os leitores, a partir dos modos que leem, em razão disso, ressalva que uma mesma história pode ser um mito para um leitor, mas, para outro, não. Com isso, sugere que, para os amantes dos mitos, assim como para os ―literariamente iletrados‖, pouco importam as palavras ou jogo de palavras usadas na escrita, importa apenas o acontecido e insiste em que: ―o valor do mito não é um valor especificamente literário, nem a apreciação do mito é uma experiência especificamente literária, pois o mito ―não aborda as palavras com a expectativa ou a crença de que elas sejam um bom material de leitura; elas são meramente informação‖ e, com isso, os ―méritos ou defeitos literários‖ (LEWIS, 2009, p. 44) passam despercebidos por tais leitores ―desinteressados‖ no valor literário que o texto pode ter.

Contudo, posteriormente, Lewis (2009, p. 44) assume, claro, que muitas vezes ―as palavras que apresentam um mito sejam elas mesmas uma obra de fina arte literária‖, e, portanto, se o amante do mito for um ―literariamente letrado‖ vai se deliciar com aquela obra também por suas próprias qualidades, ―mas esse deleite literário será distinto de sua apreciação do mito‖, ou seja, da apreciação do fato, do acontecimento, do ritual descrito na narrativa.

Em meio às colocações anteriores de Ruthven (2010), Lewis (2009) e outros autores citados por aquele, concluímos que está longe de acabar, ou de se chegar a um consenso, a discussão entre literatura ser mito, ou mito ser literatura. Entretanto, interessa-nos a ideia que predomina ao longo do texto de Ruthven (2010, p.75) em que o autor parece considerar o mito a fonte da literatura, chegando a compartilhar da opinião tanto de Malinowski ―quando escreveu que ‗o mito contém germes da epopeia, do romance, e da tragédia posteriores‖, quanto de Vickery ao afirmar que ―o mito é ‗a matriz da qual emerge a literatura, tanto histórica, quanto psicologicamente‘‖, assim como da ideia preponderante entre os críticos, em geral, de que os mitos clássicos são obras literárias, independentemente de suas fontes originais.

Em virtude do exposto, corrobora-se a ideia de que a compreensão tanto do mito clássico quanto da literatura requer o (re)conhecimento da linguagem, do discurso mítico- literário, visto que ―a literatura é mitologia ‗deslocada‘, que é melhor compreendida se for recolocada em seu contexto mítico correto‖, como pontuou Ruthven (2010, p. 100), influenciado pelas ideias de Northrop Frye. Então, nossa proposta engendra também por encaminhar o leitor iniciante nessa compreensão do mítico na literatura, assim como a apreensão da literatura do mito, ou seja, nas narrativas míticas gregas, tornando-o ―literariamente letrado‖ ou até ―miticamente letrado‖ para que, assim, possa se deleitar com a leitura tirando dela o que ela tem a oferecer, conforme veremos no terceiro capítulo.

Antes, porém, temos uma breve descrição dos textos míticos que foram explorados, com esse objetivo, durante a execução da proposta pedagógica.