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A Estruturação da Economia da Borracha: O Sistema de Aviamentos

OFICIAL KILOGRAMA VALOR

3 A ECONOMIA DA BORRACHA E SEUS ATORES

3.1 A Estruturação da Economia da Borracha: O Sistema de Aviamentos

A vida econômica e social da Província do Amazonas esteve fundada, nas décadas iniciais de sua história, na extração e exportação da borracha. O produto da seringueira era objeto de uma complexa classificação, com base em sua proveniência, relacionando-se à sua qualidade e preço auferido no mercado internacional. A Província do Amazonas possuía praticamente todas essas variedades. A hevea brasiliensis, vulgarmente conhecida como seringueira preta ou boa, tem a casca quase preta e produz um “leite” branco. É considerada a produtora da melhor borracha do mundo, de maior resistência tênsil e é encontrada em grande quantidade nas margens alagadiças dos baixos rios do Amazonas e Mato-Grosso, nas fronteiras firmes da região acreana e nas Repúblicas do Peru e da Bolívia. A hevea pauciflora, denominada vulgarmente de seringueira torrada, produz uma borracha de menor força elástica e abunda na região do rio Tapajós. Também a hevea benthamiana é considerada uma seringueira fraca, por produzir a pior qualidade de borracha, é encontrada no rio Negro, no Amazonas. O mesmo caráter atribui-se à seringueira branca (hevea collina), encontrada nas terras firmes dos baixos rios, na região do Purus, e a hevea guyanensis, cujo nome vulgar é seringueira vermelha (em razão da cor de sua casca). Esta última tem o seu habitat nas Guianas e nas várzeas não-alagadiças de algumas regiões no rio Purus, no Amazonas, e em outros pontos no Pará.

As múltiplas variedades de hévea existentes nas terras amazonenses com valor econômico em permanente ascensão ampliam as oportunidades de ocupação dessas áreas. As calhas dos rios, principalmente a do Rio Purus (que liga a região acreana a Manaus e rica em seringueiras de boa qualidade) passam a ser ponto de chegada de grandes levas de nordestinos, facilitadas pela navegação a vapor, a partir do desbravamento dessas regiões, com as entradas do pernambucano Manoel Nicolau de Melo (1852), do cearense João Gabriel de Carvalho e Melo (1862), e dos maranhenses Antonio Pereira Labre (1871) e Manoel Urbano da Encarnação (1874). “O Purús presta-

se perfeitamente á navegação de barcos que demandam 10 a 12 palmos até 400 legoas acima da foz(...)Não há cachoeiras na extensão explorada; apenas em alguns lugares encontram-se pedras encostadas á margem, no meio do rio, mas que não difficultam a navegação. Os terrenos são mui ferteis, e as melhores drogas abundam extraordinariamente(...) A cultura da seringueira não é menos rendosa. Um quadrado de meia legoa de face acommoda trinta mil seringueiras, deixando-se logar para roças, pastos, casas &. Extrahindo-se 16 libras de seringa de cada arvore e vendendo-se a 10$000 a arroba, o producto sobe a 150:000$000”107

Os nordestinos, também conhecidos como “brabos”, devido à inabilidade com os hábitos e costumes da região, chegavam à Província e eram enviados aos seringais nas diferentes calhas de rios, para a coleta do látex, utilizando-se de “estradas”, isto é, trilhas no meio da floresta onde existiam as seringueiras, cujo látex seria extraído. Isto significa, que quanto mais seringueiras situadas em “estradas” próximas ao rio fossem exaurindo sua capacidade produtiva, cada vez mais o seringueiro adentrava a floresta na busca do látex, ampliando a possibilidade de doenças, de ser atacado por alguma fera e até de enfrentamento com índios. Com exceção da calha do Rio Madeira, que por ligar o continente de Norte a Sul pelo interior, era percorrida por sertanistas, nas demais calhas dos rios haviam constantes conflitos com índios. O desbravar do território amazonense conduz paulatinamente o Governo Provincial a criar novas comarcas como a do Rio Negro (1873), Itacoatiara (1876), Rio Madeira (1878), Lábrea (1883), e Alto Solimões (1884), bem como uma estrutura administrativa e política.

O nordestino ou “brabo” que era arregimentado para os seringais foi peça chave do processo de extração do látex. Sua força motriz permitiu que o látex fosse extraído da floresta garantindo a manutenção da oferta do produto amazônico no mercado mundial. As condições para que a borracha amazônica alcançassem o mercado internacional só foram possíveis em razão de uma combinação de interesses mercantis

107AMAZONAS.Relatório apresentado na Abertura da 2a Sessão Legislativa Provincial da Provincia do

Amazonas pelo Exmo. Sr. Dr. Sinval Odorico de Moura, Presidente da mesma província em 25 de março de 1863.

que proporcionaram a criação de um sistema de financiamento privado denominado de Sistema de Aviamentos108.

A economia extrativa se organizava em cadeia onde na parte superior situavam- se as Casas Exportadoras – importadoras estrangeiras - que situadas em Belém e Manaus, tinham o financiamento de capital alemão, inglês e francês. Seus vínculos eram com os importadores situados em Liverpool, Havre, Hamburg e New York. Seus elos locais são com as Casas Aviadoras situadas em Belém e Manaus, compravam a borracha nos seringais, através do adiantamento em espécie, ou dinheiro, pagando juros às Casas Exportadoras. Predominavam entre as Casas Aviadoras as firmas portuguesas, sendo a maior delas a J. G. Araújo (Joaquim Gonçalves de Araújo), fundada em 1877. As Casas Aviadoras por sua vez negociavam diretamente com o Seringalista, o dono do seringal, geralmente o líder político da localidade, que recebia o título de “Coronel de Barranco” pois os seringais situavam-se na terra firme, isto é, no alto do barranco, onde também residia o seringalista e sua família. Na ponta estava o seringueiro que sujeitava-se as condições impostas pelo Seringalista.

A capital da Província, Manaus, situada estrategicamente a 17km da confluência dos rios Solimões e Negro, de onde nasce o rio Amazonas, parada obrigatória de chatas, navios e paquetes, que seguiam para as calhas dos rios Purus, Juruá, Madeira, Solimões e Negro, era a sede das Casas Exportadoras e Casas Aviadoras. Além de sede administrativa e política, torna-se também a centro econômico da Província, como “ponto de passagem” de nordestinos e “ponto de pesagem” de “bolas de borracha”, trazidas dos seringais pelas Casas Aviadoras e, depois de repassadas às Casas Exportadoras, pesadas e tributadas pela Mesa de Rendas da Capital, seguiam em vapores para os portos de Nova Iorque e Liverpool.

Na condição de “ponto de pesagem”, era o centro dinâmico da economia provincial, pois possuía a principal Mesa de Arrecadação de Tributos, visto que as “bolas de borracha” não eram tributadas no seringal, mas em Manaus e, depois, classificadas como Borracha fina, Entrefina e Sernamby. A de melhor qualidade era a Borracha fina, com defumação feita a tempo e de melhor pureza, cotada a melhor

108

A esse respeito ver Barbara Weinstein, A Borracha na Amazônia: Expansão e Decadência (1850- 1920), São Paulo, Hucitec, 1990, especialmente o Capítulo I – Seringueiros e Comerciantes

preço. A Entrefina não havia sido coagulada no momento exato e, em conseqüência, o látex ficava em estado grumoso, de modo que incidia sobre ela um desconto em relação à Borracha fina. Por outro lado, a Sernamby era coagulada naturalmente sem o processo de defumação e o látex que sobrava nas tigelinhas era também utilizado. Seu preço era aviltado em função da má qualidade do produto.

Wilson Cano, ao estudar o complexo cafeeiro paulista e alguns complexos regionais, aponta a economia amazônica como exemplo da não-transformação do capital comercial em capital produtivo em razão do Sistema de Aviamento. “A economia da borracha está organizada em torno do pequeno produtor independente, dominado e explorado pelo capital comercial. (...) Não há, como no café, uma empresa agrícola em que a atividade primária se desenvolve sob o comando do capital, muito menos disponibilidade de terras abertas pela atividade exportadora em que a produção de alimentos pudesse ser efetivada, nem ainda força de trabalho que excedesse o requerido pela extração de borracha, que proporcionava ao capital comercial uma rentabilidade extremamente alta” 109

Essas características foram mostradas por Cano para uma das principais economias de borracha que se desenvolveu na Amazônia brasileira. Enquanto produto extrativo, não necessitava de inversões, “de fundação” e muito menos de uma empresa agrícola. A abertura, instalação e manutenção de um seringal requeriam financiamento efetivado pelas Casas Aviadoras, por sua vez, aviadas pelas Casas Exportadoras. O custo de produção no seringal era, contudo, basicamente custo de extração, isto é, com a manutenção do seringueiro no seringal, e não custo de fundação e manutenção, garantindo ao seringalista um enorme retorno. Além disso, deve-se apontar a especificidade climática da região, que impõe uma sazonalidade ao processo de trabalho. No verão, o seringueiro dedicava-se intensamente à coleta do látex. No inverno, com chuvas diárias, eles não podiam trabalhar, pois a água da chuva, ao entrar na tigela que recolhe o látex, torna-o muito aquoso e estraga a coleta.

A especificidade da coleta do látex amazônico refletia-se no custo da mão-de- obra. Apesar da exploração intensa e selvagem que se impunha sobre o seringueiro,

ainda assim, o custo do trabalhador no Brasil era maior do que o verificado nas regiões que se tornaram concorrentes da borracha brasileira nas primeiras décadas do século. O custo do trabalhador brasileiro chegava a ser três vezes maior do que o dos trabalhadores chineses e malaios do Sudeste Asiático. Um trabalhador na Amazônia custava 2,80 francos, incluindo-se aí o custo de alimentação e tinha uma jornada de cerca de 9 horas de trabalho; um trabalhador chinês custava 1 franco/dia por 10 a 12 horas de trabalho, enquanto o malaio custava 0.70 francos/dia.110

Isso acontecia porque, na Amazônia, o custo da mão-de-obra era determinado por dois fatores: em primeiro lugar, por uma dupla escassez – a de mão-de-obra e de gêneros alimentícios; em segundo lugar, pela especificidade do trabalho de coleta, que não acontecia nos moldes da “racionalidade capitalista”, como nos seringais asiáticos. No Sudeste Asiático, o trabalhador chinês ou malaio, além de extrair o látex, era também agricultor de seringueiras, com salários rebaixados, o que tornava o preço final da borracha asiática inferior ao da Amazônia. Torna-se claro que, no Sudeste Asiático, o grau de exploração da mão-de-obra foi mais intensivo do que na Amazônia, em face das características das plantations lá instaladas.

O seringueiro amazônico, contudo, não era um trabalhador independente, dono do produto do seu trabalho, a ponto de poder vendê-lo a quem lhe desse melhor preço. Seu contrato era com o seringalista, o dono do seringal, ao qual estava vinculado, relação chamada de “Patrão-Freguês”, típica num contexto de exploração, em que o “Patrão” detinha o monopólio na compra, mas o “Freguês” tinha sua remuneração definida pelo grau de produtividade alcançado. O seringueiro, que trabalhasse num seringal e cujo látex fosse classificado como de primeira qualidade, podia quitar, em tese, seu débito com o Patrão e, embora houvesse artifícios para aumentar o custo dos gêneros alimentícios, não assumia a relação de expropriação uma forma assalariada.

As condições de acumulação e crescimento do capital na economia da borracha não foram potencializadas de modo a permitir um avanço da divisão social e técnica da produção. Esta, limitada pela concentração de interesses na monoprodução e pelo

110Lia Osório Machado. Mitos e Realidades da Amazônia Brasileira no contexto geopolítico internacional

Sistema de Aviamento, apresentava-se num quadro insignificante e incapaz de transformar qualitativamente o padrão econômico. As condições para o crescimento da oferta da borracha no mercado mundial só poderiam ocorrer pela descoberta de novos seringais, em áreas cada vez menos acessíveis e isso, naturalmente, elevaria os custos de produção e, sobretudo, o transporte. A busca por novos seringais incrementa o processo migratório para a Amazônia e acelera sua ocupação territorial.

Os atores do Sistema de Aviamentos, notadamente os representantes das Casas Exportadoras, Casas Aviadoras e Seringalistas, articulam-se, no plano econômico, por meio da Associação Comercial do Amazonas e, no plano político, pela Assembléia Legislativa Provincial, enquanto grupos de interesse distintos, com foco de atuação num único objetivo: a manutenção econômica da borracha.