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Capítulo 2 – Os testamentos e a morte

2.1. A estrutura do testamento

Na opinião de Philippe Ariès os testamentos eram um contrato seguro feito entre o homem e a Igreja, com duas finalidades. A primeira garantia os laços da eternidade e os

21 prémios eram pagos através dos legados pios, enquanto a segunda estava associada à

legitimação dos bens adquiridos em terra durante a vida do testador e os prémios eram pagos

em missas, orações e em atos de caridade53.

As escrituras testamentárias, surgidas por volta dos séculos XII/XIII, traduziam-se em documentos de carácter jurídico, onde os homens expressavam por escrito a sua última vontade relativamente às suas exéquias fúnebres, bem como aos atos que desejavam ver cumpridos para salvarem a sua alma. No mesmo documento estipulavam o que desejavam sobre os bens

materiais que possuíam54.

A tipologia destes documentos assistiu a uma evolução ao longo dos séculos, a qual acompanhou o desenvolvimento económico e urbano, bem como a evolução familiar a que se assistiu no decorrer da história. A análise dos testamentos como fonte para o estudo da história económica e social, permite uma maior perceção do poder económico não só do testador, mas também do meio social onde este se inseria, e ainda determinava os bens materiais e legados pios deixados. São ainda fontes excelentes para o estudo das mentalidades, no sentido que nos permitem descortinar os medos e anseios dos homens e mulheres da Idade Moderna, face à inevitabilidade da morte.

Para que não houvesse fraudes no ato de testar, o direito civil regulou formas de se

proceder à sua realização, tanto a nível externo, como interno55.

Segundo as Ordenações Filipinas, ao nível da estrutura externa, existiam quatro tipos de testamento, a saber: público – o testamento que era escrito nas notas do tabelião e assinado por

seis testemunhas livres, varões, maiores de 14 anos; cerrado – testamento escrito pelo próprio

ou por outra pessoa da sua confiança, fechado, cosido e entregue ao tabelião perante cinco

testemunhas livres, varões, maiores de 14 anos; aberto – lavrado pelo próprio ou por pessoa

privada, que ao contrário dos anteriores, não necessitava de aprovação do tabelião, mas tinha de

ser assinado por seis testemunhas e lido perante as mesmas. O quarto tipo era nuncupativo ou

oral – feito oralmente e muito perto da morte56.

Existe ainda outro tipo de testamento que era bastante popular entre os habitantes, mas

que não estava previsto nas Ordenações Filipinas. Estamos a falar do testamento de mão

comum. Este documento era normalmente feito entre o casal, onde exprimiam as suas últimas

53 ARIÈS, Philippe - Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema, 1989. p. 73-74. 54 DURÃES, Margarida – “Os testamentos e a história da família”. Núcleo de Estudos de População e sociedade. 29 (2003) 9.

55 DURÃES, Margarida – Herança e sucessão. Leis, práticas e costumes no termo de Braga (séculos XVIII e XIX). Vol. I. Braga: Universidade do

Minho, 2000. Dissertação de Doutoramento policopiada. p. 58.

22 vontades, referentes aos legados espirituais e materiais, podendo estas vontades serem diferentes uma da outra. Neste tipo de testamento era comum nomearem-se um ao outro como

herdeiros universais 57. No caso particular dos testadores de Cervães encontramos 26

testamentos de mão comum e, destes, três foram feitos por irmãos solteiros, surgindo apenas

um caso feito entre duas irmãs viúvas. Isto significa que esta forma de testar estava associada a pessoas muito próximas, provavelmente com interesses comuns. É preciso recordar que estar, distribuir a herança não é uma matéria simples, antes pelo contrário. Testar significa escolher quem se deseja para dar continuidade ao quê se herdou ou se construiu durante uma vida, assunto muito pessoal e, por vezes, muito delicado.

Dos 277 documentos analisados, 36 são dotes e doações embora estejam inseridos no livro de testamentos, porque aquando da escritura de dote ou doação os testadores deixaram encargos com os legados pios. Estes 36 documentos não foram considerados como testamentos e, por conseguinte, não fazem parte da nossa análise estatística. A grande maioria dos testamentos estudados são documentos abertos (68%), seguindo-se os testamentos públicos (26%) e depois os restantes.

Gráfico 3 - Tipologia dos testamentos

Fonte: ABD, Fundo Paroquial, Livro de Testamentos de Cervães 1719-1806, nº 114.

Como se constata os testamentos orais representam muito pouco, o que pode significar a preocupação de deixar escrito as vontades a cumprir e a necessidade de as vincular à escrita.

57 DURÃES, Margarida – Herança e sucessão..., p. 59.

26% 2% 68% 4% Testamento público Testamento cerrado Testamento aberto Testamento oral

23 O testamento atinge o seu grau de complexidade na primeira metade do século XVIII, pois até então era um documento bastante simples. Estes documentos estavam divididos em cinco partes. Iniciavam-se com um prólogo que incluía a saudação feita através do sinal da cruz e a identificação do testador tendo como fórmula Em nome da Santissima Trindade, Padre Filho

e Espirito Santo, tres pessoas distintas um so Deos verdadeiro58. Aparecem, por vezes, outras

fórmulas em que fazem referência à criação do mundo e à remição dos pecados. Seguia-se o preâmbulo religioso em que o testador fazia a encomendação da alma, invocação dos santos que geralmente era o anjo da guarda e o santo do seu nome, recorrendo também à invocação da Virgem Maria. Aqui em algumas situações, o testador assume-se como pecador e, por isso, muito necessitado da intercessão divina para se poder salvar. O preâmbulo religioso continha ainda informações sobre o seu estado de saúde, finalidade e razão do testamento, sendo em alguns casos muito interessante verificar em que situação se encontrava a pessoa. Depois disto, o testador determinava as disposições espirituais ou bem da alma com a escolha da mortalha e do lugar onde queria ser sepultado, por quem queria ser acompanhado no seu cortejo fúnebre, referindo o pároco, as irmandades e, por vezes, os pobres, o número de missas e ofícios a realizar e as respetivas intenções. Escolher o local de sepultura, o acompanhamento de padres, confrarias e pobres, era algo que implicava posses, porque eram matérias pagas. Quem fosse membro de uma irmandade contava com a sua presença, mas quantas mais tivesse nesse momento, maior era o volume de preces, por isso, todos os que podiam pagavam a confrarias para se apresentarem no seu cortejo fúnebre e o acompanhassem nesse momento tão difícil. Terminada a exposição da parte religiosa, que era a maior do testamento, procedia-se às disposições materiais, com a enumeração dos herdeiros, distribuição da riqueza, pagamento e

cobrança de dívidas, bem como a atribuição do “terço”. O documento era finalizado no

escatocolo com a indicação das testemunhas, do escrivão, do lugar da redação e a respetiva data dizendo peso a todas as justisas assim eclesiásticas como seculares o fassam inteiramente

cumprir e guardar para fim ser tudo a minha ultima e derradeira vontade59.

Os testamentos tinham um cariz fortemente religioso, que se reflete na sua estrutura, pois a sua redação procura em primeiro lugar, a salvação da alma. O testamento tinha a função de garantir uma boa morte, conceito que remota aos tempos medievais, como já referimos.

58 ADB, Fundo Paroquial, Livro de Testamentos de Cervães 1719-1806, nº 114, fl. 14v. 59 ADB, Fundo Paroquial, Livro de Testamentos de Cervães 1719-1806, nº 114, fl. 3v.

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2.2. A preparação do homem para a morte: arte de bem viver e arte de bem