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6. ANÁLISE DE DADOS

6.2 A EXISTÊNCIA SOCIALMENTE INEXISTENTE

Percebemos que de fato existe, na teoria, o reconhecimento da diversidade entre o “ser indígena” e o “não indígena” ao construir uma proposta para o processo de educação escolar indígena - queremos dizer que no círculo acadêmico estas teorias são difundidas, porém não alcançam como deveriam as escolas não indígenas, e mesmo nas escolas indígenas elas fazem parte do discurso dos professores Guarani e dos professores juruá após o “desfazer-se” da invenção do índio, mas ainda está presente, apesar dos avanços, em alguns materiais didáticos e naqueles que organizam este processo.

O estereótipo ainda utilizado em grande parte do material didático, também daquele utilizado para o processo de educação escolar indígena, é responsável pela legitimação do “índio” (personagem “inventado”, como já falamos anteriormente) como um indivíduo “parado” no tempo, preso a um primitivismo que o consagra quase que como um “fóssil” na sociedade brasileira, um elemento que serviria “apenas” como registro de nossa “história”, nosso “passado”. Imagem construída desde a ocupação do território brasileiro, como aponta Litaiff (2004, p. 03):

Nos séculos XVI e XVII, a imagem da América é introduzida na Europa de uma forma alegórica e muito fragmentada, sintetizada, principalmente pela cultura material, com informações parciais e estereotipadas. Essa metáfora cristalizada das sociedades autóctones do novo mundo atinge em especial povos da América do Sul, como os Guarani. As crônicas do período da conquista representam o índio como bestas ferozes, terríveis canibais, vivendo num ambiente de guerra constante. O projeto de colonização seria justificado, então, como o desejo dos europeus de introduzir a “boa cultura ocidental” aos “selvagens”.

O indígena é representado quase que exclusivamente como um dos elementos que participou do processo de miscigenação da população brasileira, não sendo feita quase nenhuma menção ao que se refere a sua importância para o que hoje legitimamos como população e cultura do Brasil.

Percebemos, portanto, que os grandes avanços, no que diz respeito aos estudos sobre as mais diferentes comunidades indígenas aos poucos passam a integrar os conteúdos trabalhados nas escolas destas comunidades, indo ao encontro da transformação do papel desta educação de um processo formatador para um movimento emancipatório.

A generalização das comunidades indígenas, que não leva a distinção entre Guarani, Kaingang, Yanomami etc; e que, portanto, vai ao encontro daquilo que abordamos como “invenção do índio” é de forma mais ou menos inconscientemente elaborada para descontextualizar estas comunidades, para recrutá-las do “passado” e tornando-as, portanto, cabíveis de ser absorvidas pelo presente.

O “índio” inventado é uma personagem que, uma vez presa ao passado, não faz parte da sociedade nacional atual. Deste modo, a participação do índio na história do Brasil, como já foi dito anteriormente, se refere a miscigenação durante o período colonial. Após este episódio, a participação deste elemento não aparece na “história oficial”, aquela que entendemos como perpetuada e legitimada, também, através do livro didático.

Percebemos esta perpetuação do índio como um elemento cultural primitivo, fadado a “fossilização”, nos próprios títulos e subtítulos de alguns textos apresentados nos livros didáticos que tratam da questão indígena, em que aparecem expressões como: “Fim do Índio”, “Antigos Brasileiros”, “Registros do Passado”, etc, termos como “aculturação”, “nossos índios”, etc.

Os debates propostos pelas “estruturas” acima descritas, herança ainda da carta de Pero Vaz de Caminha, fortalecem a imagem de um “índio ingênuo” que, portanto, deve ser “cuidado” pela sociedade juruá.

Se por um lado os livros didáticos trabalhados nas escolas não indígenas sobre a temática tratam de reconhecer a diversidade entre o “índio” e o não índio, por outro, em nada

contribuem para o respeito e a conversação destas diferenças. Ao contrário, fortalecem o muro existente entre estes diferentes discursos e legitimam a sobreposição de um sobre o outro, o que é percebido por uma série de equívocos e generalizações/banalizações sobre as comunidades indígenas.

Em Fiori & Lunardon (2009) a representação dos povos indígenas é feita como uma personagem do passado brasileiro. Das trinta e duas gravuras que representam o indígena no livro didático em questão, apenas cinco os desvincula da figura “primitiva” que andava semi nu nas florestas do Brasil. O mesmo fenômeno ocorre no material desenvolvido por Carraro (2008) onde na página 73 aparece uma foto mostrando os indígenas em 1912 armados e semi nus e uma outra foto atual onde aparece apenas o artesanato onde ao fundo aparecem duas silhuetas onde é impossível precisar se são indígenas, indo ao encontro do reforço do estereótipo das comunidades indígenas como “primitivas”. Ainda no material em questão aparece a famosa carta do escrivão Pero Vaz de Caminha (p. 48), a qual percebemos como fundamental nessa “invenção” do índio, e a tradicional reprodução da obra da “Primeira Missa no Brasil” (p. 49) do pintor Catarinense Victor Meirelles (1861) que reforça essa representação.

“Nas reservas indígenas, existem escolas para as crianças índias. Aí se ensina o português e, muitas delas, as crianças aprendem a língua indígena, para que voltem a falar também o idioma de seus antepassados” (FIORI & LUNARDON, 2009, p. 76). Percebemos deste modo como estas comunidades são subtraídas de um período histórico de nosso país, como uma população que durante um tempo não existiu, uma vez que se é necessário um resgate de uma determinada língua é porque em um dado momento ela deixou de existir, o que sabemos que na realidade não ocorreu.

O mesmo material apresenta também uma visão etnocêntrica, na medida em que estabelece um padrão de riqueza e pobreza a partir da cultura juruá e este é imposto aos Guarani: “Os Guaranis, em geral, vivem numa situação de pobreza. Sobrevivem com o dinheiro obtido com a venda de objetos que fabricam” (p. 74).

Acreditamos que essas formas diferentes de discurso apenas são relativas e resultantes da diferenciação dos locais de enunciação de onde são proferidos. Percebemos como nocivas algumas comparações equivocadas, se não forem proferidas com critérios adequados. Citamos como exemplo a da figura do pajé como um chefe religioso (um padre) ou do Xamã como um curandeiro (médico); uma vez que estas analogias, em parte, não correspondem à realidade e, do modo como são colocadas, mostram (como já falamos

anteriormente) o conhecimento indígena como um modo “primitivo” ou simplificado do conhecimento de “nossa” cultura.

Por tudo que foi dito, acreditamos haver um abismo entre o material extremamente qualificado produzido pelos pesquisadores apresentados neste trabalho, sobretudo aqueles ligados a antropologia, e o equivocado e preconceituoso material didático referente à questão indígena trabalhados sobretudo nas escolas Juruá, mas que infelizmente ainda são encontrados também nas escolas Guarani pesquisadas. É cabível, portanto, o questionamento de quanto este estereótipo do “índio inventado” é colocado de maneira intencional.

Em outras palavras, percebemos que nestes livros didáticos aparece um “índio” extremamente mais comparável ao “índio inventado” por Pero Vaz de Caminha, e ratificado pela literatura do romantismo brasileiro (“Iracema e o Guarani”, por exemplo), do que aqueles estudados pela “academias antropológicas”.

Esse mau etnocentrismo faz com que não percebamos que as diferentes formas de atuação no mundo em que vivemos, por parte de uma ou outra cultura, é fruto apenas dos diferentes hábitos de ação cristalizados socialmente em “cada lado do muro”, não havendo, portanto, um primitivismo em nenhuma dessas linguagens.

A eficácia simbólica de um mesmo signo, representado de forma traduzida em uma ou outra cultura, é a mesma aos agentes em cada uma destas formas de linguagem, que apenas produzem “campos” diferentes.