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3. SÍNTESE TEÓRICA

3.4 A PRODUÇÃO COLETIVA DE VERDADES

A ideia de verdades, e não de uma única verdade (Davidson, 2002), vai ao encontro do que Lévi-Strauss (1990) entendia como mito: “Não existe versão ‘verdadeira’, da qual todas as outras seriam cópias ou ecos deformados. Todas as versões pertencem ao mito”. (LEVI-STRAUSS, 1990, p. 252).

Isso porque o mito é (potencialmente) flexível e dinâmico, e é o coletivo daqueles que comungam do jogo da legitimação que o molda.

Devemos ter claro que a ideia de estrutura social em Lévi-Strauss (1990) não pode ser entendida no “experimentar” do mundo concreto/empírico. Ao invés disso, fala o autor: “O princípio fundamental é que a noção de estrutura social não se refere a velocidade empírica, mas aos modelos construídos em conformidade com ela”. (LEVI-STRAUSS, 1990, p. 315).

Neste ponto devemos desmistificar o que entendemos poder ser mal interpretado. Se por um lado a análise estrutural do mito, por exemplo, só pode ocorrer em seu uso e seu contexto, por outro, o estruturalismo não aceita este fenômeno de modo isolado. Ao contrário, ele só existirá como objeto de estudo ao ser generalizado e/ou comparado à outra estrutura.

Uma vez que a estrutura seria como um jogo de cartas onde as cartas do baralho que são dadas podem ser utilizadas pelas sociedades segundo seus interesses particulares, sem que exista, porém a possibilidade de ir além do baralho. Podem ser realizados novos jogos, mas sem romper com a estrutura. Podem apenas variar as relações entre os elementos do repertório, como a organização das aldeias com ocas em círculo.

O interesse de Lévi-Strauss não era (para seguir a analogia) pelo “jogo em si” e sim entender porque em um lugar ele é jogado com “X” regra e em outro lugar (cultura) é jogado por outra, daí a ideia ser uma abordagem contextual. O estruturalismo não lida com “fato isolado”.

Lévi-Strauss (1993) busca, através de Vladimir Propp, uma exemplificação, via analogia, de seus ideais básicos de estruturalismo. Propp, em sua “Morfologia do Conto Maravilhoso”, trata de dissecar a “receita de bolo” de um conto, de um mito. Essa ideia vai ao encontro a ideia de estrutura de Lévi-Strauss (1993), e justamente daí o interesse deste por aquele.

Assim como os contos de fada de Propp, a ideia de estrutura de Lévi-Strauss (1993), em relação à mitologia, por exemplo, é caracterizada pela presença de elementos constantes e outros elementos variáveis. O tabu do incesto para ilustrar, mostra como é impedido o livre casamento nas mais diversas culturas. Isso é uma constante, mas possui especificidades em cada cultura. E assim temos variáveis.

Pensamos o mito (nos moldes de Lévi-Strauss, 1993) como a “morfologia” do conto de fadas de Propp, como uma estrutura extremamente coerente e relevante (legitimadas pelo seu uso), uma “verdade contextual” (Davidson, 2002) que difere do dogmatismo do discurso científico. Estrutura esta dotada, portanto, de uma lógica /coerência.

“O conto de fadas, reduzido à sua base morfológica, é assimilável a um mito. [...] sabemos muito bem que, do ponto de vista da ciência contemporânea, avançamos aqui uma tese perfeitamente herética” (PROPP apud LEVI-STRAUSS, 1993, p. 133).

A diferença em relação ao formalismo reside no fato de que, se no formalismo temos a dicotomia conteúdo e forma (que sempre vence), no estruturalismo esta divisão não existe. São “partes” de um “todo”, de uma estrutura maior.

Lévi-Strauss (1993) aborda como ocorre a confusão entre dois mitos diferentes, mas que analisados com maior precisão identificamos como uma mutação coletiva/espaço/cultural. Assim, paradoxalmente, o que parecia sua morte (a mutação) é justamente o que o torna eterno.

Estas transformações, que se operam de uma variante a outra de um mesmo mito, de um mito a outro mito, de uma sociedade a outra sociedade com referência aos mesmos mitos ou a mitos diferentes, afetam ora a armadura, ora o código, ora a mensagem do mito, mas sem que deixe de existir como tal. Elas respeitam assim uma espécie de principio de conversação da matéria mítica, em função do qual de qualquer mito sempre poderá sair outro mito (LEVI-STRAUSS, 1993, p. 261).

Podemos entender como dom/dádiva na teoria de Mauss, a essência das relações de troca que atuam na vida em sociedade. Mauss seguindo, por assim dizer, uma tradição do pensamento francês (onde podemos também destacar o estruturalismo de Lévi-Strauss), buscava a análise do essencial (como a mente cartesiana para o conhecimento), do elemento “mínimo” existente nas trocas e, assim, do mecanismo que rege o movimento social no teatro cotidiano.

Se podemos, de fato, entender o mana como o “potencial mágico” (uma forma entre outras) existente em todos os objetos/signos, podemos negociar como dom/dádiva a ideia de “potencial de troca” também existente e passível de uma negociação coletiva.

No balanço da dádiva/dom em sociedade, em cada relação de troca existente entre ao menos dois elementos, quando um indivíduo oferta algo a alguém, fica com um crédito, uma “reserva de mercado”. A balança pende a seu favor em um segundo momento, uma vez que o beneficiado por ele foi “depositário” de um “potencial de recebimento/troca” em uma posterior negociação coletiva/social.

Nesta balança descrita por Mauss, receber significa, na grande maioria das vezes, portanto, “a morte”, pois potencialmente alguém detém um poder constituído coletivamente de subtrair-lhe algo; doar passa a ser “vida”, uma reserva, o poder de controlar a balança

social da troca, e até por isso, em algumas sociedades, indivíduos preferem não receber para, seguindo a “metáfora” (que nem sempre é metáfora), não ficarem devendo a própria “vida”.

Dar e receber, no ballet das trocas, fortalece um invisível, mas paradoxalmente coercitivo ao extremo, contrato entre seres coletivos. Sendo assim, aquele que retribui ao presente passa a constituir-se como “amigo”. A troca criaria um “pacto social entre amigos”.

O contrato está diluído na vida coletiva, atuamos nele sem mesmo perceber. Na grande maioria dos casos, pensamos atuar neles de maneira livre, quando na verdade nossa locomoção está limitada por um “vai e vem” canino. Este limitar pode ocorrer por aspectos religiosos, econômicos, sociais, jurídicos, políticos, familiares etc.

Assim o que pareceria, para um olhar menos atento, um ato voluntário, espontâneo, seria a busca por um potencial. Se for de fato ofertado o regalo, quem doa fica donatário do dom/dádiva. Estas trocas obedecem a leis e acordos morais que mudam de sociedade para sociedade. Conforme aponta o autor: “Estas prestações e contra-prestações são feitas de uma forma sobretudo voluntária, por presentes, regalos, embora sejam, no fundo, rigorosamente obrigatória sob pena de guerra civil ou pública” (MAUSS, 1974, p. 45).

Mauss (1974) trata do potlatch - literalmente esta palavra significa “alimentar-se, consumir” - como um tipo de prestação total, onde esta troca levaria a batalhas causadoras de verdadeiros etnocídios, tendo por base o intermédio do chefe tribal no contato com o divino. No caso específico do potlatch, a aproximação com a ideia de mana é bastante relevante. A não retribuição do regalo, seja divino ou coletivo, levaria necessariamente a uma perda de mana. O autor apresenta os conceitos de tonga e aloa, os ”bens”, respectivamente feminino e masculino, responsáveis por fazer “um canal pelo qual os bens de natureza indígena continuam a escoar da família da criança para esta família”.

Podemos então, de certo modo, entender a criança como um elo potencial de ligação entre o mana de diferentes famílias (via tonga e aloa). “Criança é o meio para seus pais obterem bens de natureza estrangeira [...]” (MAUSS, 1974, p. 05). A criança é, desta forma, o elo entre os bens da família feminina e a família masculina.

A não repartição dos bens ou a não aceitação de uma dádiva pode ser entendida como uma declaração de guerra, a não aceitação de uma comunhão, negar a ideia de fazer parte de um “todo” dinâmico, no qual a força motriz é justamente esta troca. O mesmo código que condena quem não participa da troca de forma harmônica, estabelece uma série de regras, direitos e deveres tanto para os que doam como para aqueles que recebem, ao que poderíamos entender como cultura e/ou linguagem.

A troca de presentes produz abundância de riquezas. Uma vez que os “Manas” destes passam a ser coletivizados, os potenciais são estimulados, entram em contato uns aos outros, e assim é gerada toda energia do sistema.

Seja na linguagem mitológica ou na científica, nas trocas de dons e dádivas, todas entendidas como formas de linguagem relevantes, acreditamos na criação cultural/social de verdades com fins de propostas de diálogos e não como dogmas, seriam dispositivos responsáveis pela formação de esquemas de generalização, como coloca Donald Davidson (2002, p. 45): “A não ser os objetos abstratos como sentenças ou proposições, se é que existem tais coisas, as únicas coisas neste mundo que são verdadeiras são alguns enunciados e crenças”.

A verdade deve ser vista como uma proposta aceita para um jogo de linguagem, uma “brincadeira”. Não existiria, portanto, verdade sem indivíduos que atribuam coletivamente as verdades a estes objetos.