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Em “Whitman”, texto de Crítica e Clínica, encontramos a seguinte afirmação de Deleuze acerca do caráter fragmentário da escrita literária norte- americana e do problema da criação de uma totalidade: os americanos dão um novo sentido e um novo desenvolvimento a uma das idéias mais caras ao

empirismo humeano, as relações são exteriores aos seus termos. Essa idéia implica, no campo da mora,l que sua tarefa mais alta é a da criação dessas relações, tendo de ser, portanto, instauradas, inventadas.

No início desse maravilhoso texto, Deleuze aponta para o caráter fragmentário da escrita americana e o relaciona com o caráter fragmentário da própria América: nação de federações, nação de fragmentos. O próprio americano é um fragmento, emigrado que se destaca da grande totalidade européia. O que os europeus possuem de forma inata, o sentido da totalidade, deve ser inventado na América, assim como a Europa precisa reconhecer e inventar seus fragmentos.

Não é que o europeu não tenha a experiência do fragmento, mas que para ele tal experiência está condicionada pela perda da totalidade, seja pela reflexão trágica seja pela experiência do desastre. O que caracteriza o problema da formação do americano e de sua literatura está no caráter espontâneo que tem, para ele, a experiência do fragmento. O que caracteriza o americano, diz Deleuze, “não é o fragmentário, mas a espontaneidade do fragmentário” (1997, p.67). É a própria América, nesse período de sua constituição como povo independente, que é espontânea e fragmentária. E a experiência do escritor americano é a experiência da América. Daí seu desafio muito especial, enquanto sociedade e enquanto literatura: a invenção de uma totalidade, de uma federação, de, para usar a expressão belíssima de Whitman, construir uma “nação proliferante de nações”.

Se o fragmento é inato ao americano, é porque a própria América é feita de Estados federados e de diversos povos imigrantes (minorias): por toda parte há coleção de fragmentos, assediada pela ameaça de Secessão, isto é, da guerra (Idem, 68).

A luta pela Independência, a experiência da guerra civil, todo esse mundo americano marcado pela convulsividade marcará também a poesia americana: “A experiência do escritor americano é inseparável da experiência americana, mesmo quando ele não fala da América” (Idem, ibidem). A literatura americana, literatura em fragmentos de uma nação de fragmentos não seria, pergunta Deleuze, a literatura menor por excelência, na qual, como vimos a

respeito de Kafka, não há história privada que não seja ao mesmo tempo uma história coletiva? E não é a obra fragmentária americana exatamente um agenciamento coletivo de enunciação?

Literatura menor, agenciamento coletivo de enunciação e o escritor como um homem do povo, e não um indivíduo excepcional ou gênio, eis os traços, para Deleuze, da escrita americana, da escrita de Walt Whitman: o poeta da América e de sua democracia140.

Mas, não é só a sociedade, é a própria Natureza que é concebida por Whitman como uma imensa coleção de fragmentos que a poesia deve colher e selecionar, entre esses fragmentos amostras, o poeta torna-se um colecionador. É na construção da frase de Whitman, fragmentar, que Deleuze encontra o desafio dos americanos de encontrar uma maneira de escrever diferente dos ingleses, de levar a língua inglesa aos seus limites, de tensioná-la para fazê-la falar desse novo mundo: “É uma frase quase louca, com suas mudanças de direção, suas bifurcações, rupturas e saltos, seus estiramentos, germinações, parênteses” (DELEUZE, 1997, p. 69). Se, como observava Melville, os americanos não têm a obrigação de escrever como os ingleses, é porque, diz Deleuze, é preciso que eles desfaçam a língua inglesa, produzam uma linha de fuga, tornem o inglês uma língua convulsiva, assim como o é a própria América. É a convulsividade, a turbulência, que está no coração da América.

Whitman era movido por uma visão de revolta libertadora, um jogo caótico de interesses e idéias capazes de balançar as limitações de um simples bom governo e de arrastar toda a sociedade à sua órbita libertadora. (...) Turbulência, afirmava ele, é o sangue da vida da democracia; é uma contrapartida para o simples governo, um solvente em que se dissolvem as leis e a própria história (ZWEIG, 1988, p.38-9).

Percebe-se, assim, que o problema da América será o da democracia entendida como a invenção dos laços entre os fragmentos, em meio à convulsividade da vida democrática. Como inventar relações que aproximem os fragmentos, mas que não os façam escravos, nessa proximidade? Daí, como já falamos, que o americano retome o problema do

empirismo inglês, e o retome no momento mesmo em que se liberta da Inglaterra, em que tem que se inventar como nação.

A questão, então, é como criar essa totalidade. Contudo, por vezes, Whitman se deixou levar por sua herança européia, e acreditou na existência de um todo anterior às próprias partes141. Mas, como afirma Deleuze, é quando Whitman fala à sua maneira e em seu estilo que ele invoca a necessidade de criar esse todo que não pré-existe às partes. Todo paradoxal, porque surge depois dos fragmentos e não pretende totalizá-los. Criar essas relações entre os homens, entre estes e a Natureza, é o objeto maior da poesia de Whitman, da própria literatura americana:

O objeto da literatura americana é pôr em relação os aspectos mais diversos da geografia dos Estados Unidos, Mississipi, Rochosas e os Prados e suas histórias, lutas, amor, evolução (DELEUZE, 1997, p. 70).

A idéia mestra do empirismo, a da exterioridade das relações aos termos, é retomada pela poesia de Whitman e percorre sua concepção da Natureza, assim como suas idéias acerca das relações dos homens com esta, e dos homens entre si. A Natureza é, em si mesma, não um todo que se anteciparia às partes, mas decorre das correlações que se estabelecem entre suas partes. Ela é devir, e não uma forma. Na Natureza, processos como os de comensalidade e convivalidade são exatamente essas relações entre os fragmentos. Assim, afirma Deleuze: “A natureza é inseparável de todos os processos de comensalidade, convivalidade, que não são dados preexistentes, porém se elaboram entre os viventes heterogêneos” (Idem, p. 71), criando um tecido de relações moventes.

E, nas relações que o homem traça com seus semelhantes, será preciso também, criar essa totalidade. É nessa esfera que Whitman acredita que o homem alcança a mais elevada relação humana: a camaradagem. Ela foi, por excelência, o problema mais alto de sua poesia. Para Deleuze, a concepção de camaradagem de Whitman é mais que a simples junção de interesses em função do conjunto de uma situação. Ela assume toda essa 141 Esse panteísmo de Whitman foi duramente criticado D. H. Lawrence. Para ele, Whitman

recaía no erro das gerações anteriores de escritores americanos: acreditar que a simpatia é uma aceitação incondicional de tudo que existe, como se o fato de estar vivo não implicasse exatamente seletividade.

importância “em função dos traços particulares, das circunstâncias emocionais e da ‘interioridade’ dos fragmentos envolvidos” (Idem, ibidem). Foi dessa forma que Whitman concebeu os laços entre os homens nos hospitais, durante a Guerra Civil americana. Ele acreditava na América como a nação do companheirismo, dos camaradas, onde tudo conflui, Natureza e História, para criá-la142.

A camaradagem é, como diz Deleuze, a variabilidade que produz a relação entre as diversas variáveis da Natureza e da História. Ela possibilita a criação de uma totalidade aberta, que vai ao encontro de seu Fora, pois os termos não possuem dentro de si próprios as relações, elas estão no Fora, na exterioridade.

É a grande estrada, a Estrada Aberta de que falava em Whitman em seus cânticos, na qual homens e mulheres se encontram sem identidade prévia alguma. “Seja você quem for venha comigo viajar”, assim se dirigia em seus poemas ao novo homem, o americano. A camaradagem era o laço maior que ele podia conceber entre os homens comuns, sua virtude própria. Virtude esta que ele atribuía à própria democracia e que, na América, alcança sua maior concretização no ideal da sociedade dos camaradas, o sonho revolucionário americano.

Sonho malogrado, diz Deleuze, bem antes que o sonho soviético. Tal observação de Deleuze mostra o quanto este, em suas análises da literatura americana, via os problemas mais marcantes de nossa atualidade. Não podemos nos esquecer que Crítica e Clínica é publicado em 1993, período marcado pela queda do muro de Berlim e do fim do comunismo soviético, como oposição ao mundo capitalista. O texto acerca de Bartleby é de 1989, mesmo ano da queda do muro. Nesses textos, Deleuze tece sua crítica ao sonho americano da democracia, da sociedade dos camaradas.

Ora, é no texto sobre Bartleby que essa crítica ganha, ao nosso ver, seu aspecto mais contundente. Assim, é preciso tratar agora de saber que personagem é esse e o que lhe aconteceu. Mas, acima de tudo, saber como esse personagem põe à prova a experiência americana da invenção de suas 142 “Hei de plantar o companheirismo/Denso como o arvoredo a margear/Todos os rios da

relações, e leva ao máximo as duas qualidades da literatura americana: “a espontaneidade ou o sentido inato do fragmentário; a reflexão das relações vivas sucessivamente adquiridas e criadas” (DELEUZE, 1997, p. 72).

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