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Sacher-Masoch ou uma nebulosa para chicotadas

É em seu livro sobre Sacher-Masoch que Deleuze pela primeira vez busca relacionar a questão da criação literária com as lutas das minorias. Nesse livro, publicado em 1967, Deleuze tem como um dos pontos centrais da obra do escritor a relação com o problema das minorias:

Sua obra inteira permanece influenciada pelo problema das minorias, das nacionalidades, dos movimentos revolucionários no império, contos galicianos, contos judeus, contos húngaros, contos prussianos... Ele frequentemente descreverá a organização da comuna agrícola e a dupla luta dos camponeses, contra administração austríaca, mas, sobretudo com os proprietários locais (DELEUZE, 1983, p. 7-8) 37.

Vemos, aqui, portanto, o problema já aparecer, mas ainda sob a forma da descrição, muito próximo de uma literatura realista que denuciaria as 36 É o caso do conceito de máquina, que é central no anti-Édipo, e percorre todo o livro sobre

Kafka. Mas é nesse mesmo livro que tal conceito começa a dar lugar ao conceito de Agenciamento, que será central em Mil Platôs. Sobre essa passagem, ver o verbete Agenciamento no livro de Zourabichvili (2004).

37 Sobre a importância da situação política das minorias no Império autro-húngaro para a

literatura de Sache-Masoch, ver o livro de Bernard Michel (1992), especialmente os capítulos 2 e 3: “Os massacres da Galícia em 1846” e “Barricadas de Praga (1848)”.

condições de dominação pela descrição das lutas no dia a dia entre as diversas minorias do leste europeu e a administração do império austro-húngaro no século XIX. Situação que chamará a atenção de Deleuze, devido à semelhança com a de Kafka no século XX.

Ora, esse uso descritivo da linguagem não constitui a maneira de Deleuze conceber a criação literária. Ele concebe que os grandes artistas - e essa idéia percorrerá toda a obra de Deleuze - estão ligados à extração de novas formas, a criação de novas maneiras de sentir e de pensar e também de uma nova linguagem38. Nada próximo da descrição do que quer que seja. Tanto é assim que, já nesse livro, a criação literária, seja a de Masoch seja a de Sade, está ligada à invenção de uma linguagem erótica diferente da linguagem pornográfica, pois a literatura pornográfica é “uma literatura reduzida a algumas palavras de ordem (faça isso, faça aquilo...) seguidas de descrições obscenas” (DELEUZE, 1983, p. 20).

Já nesse livro, temos dois temas caros a Deleuze: primeiro, o de que a criação literária implica em levar a linguagem ao seu limite, retirando-a de seu uso representativo: “A literatura pornológica antes de tudo se propõe a colocar a linguagem em relação com o seu próprio limite, com uma espécie de não- linguagem” (Idem, p. 21).

Segundo, a impossibilidade de o sujeito se representar como um eu, no sentido de que, como afirma Deleuze, em Sade e Masoch, “é preciso que a linguagem imperativa e descritiva se ultrapasse para uma mais alta função impessoal” (Idem, p. 26).

Esse exercício da linguagem em direção ao seu limite é chamado por Deleuze de “função superior da linguagem” e vem ao encontro das reflexões do filósofo que percorrem o livro Lógica do Sentido, assim como das reflexões encetadas em Diferença e Repetição, acerca do uso transcendental das faculdades, de um exercício transcendental da linguagem. Esse exercício superior da linguagem, esse uso transcendental, dá a resposta para a pergunta

38 A nosso ver, o único livro de Deleuze sobre literatura que não aponta nessa direção, ou seja,

da criação literária como invenção de uma nova linguagem, uma nova sintaxe por meio de um uso intensivo da linguagem, é o livro sobre Proust, cujo fio condutor é a da crítica da imagem

com a qual Deleuze abria sua Apresentação de Sacher Masoch: Para que serve a literatura?

Com Sade e Masoch, diz Deleuze (Idem, p. 40): “(...) a literatura serve para nomear não o mundo, coisa que já está feita, mas uma espécie de duplo do mundo, capaz de dar acolhida a sua violência e ao seu excesso”.

Trata-se de um duplo intensivo, e não de uma representação do mundo. E da mesma maneira como haverá esse duplo do mundo, haverá um duplo da linguagem, que lhe tira a função de mediadora. Assim,“(...) as palavras dessa literatura, por sua vez, formam na linguagem, uma espécie de duplo da linguagem, aptas a fazê-las agir diretamente sobre os sentidos (Idem: Ibidem).Palavras de ordem e descrições, eis o uso ordinário da linguagem, eis suas funções elementares, que a linguagem erótica de Masoch e Sade destrói.

Apesar dessa semelhança entre os escritores, todo o esforço dessa obra de Deleuze reside em mostrar a falsa unidade, propagada acima de tudo pela psicanálise, que há entre masoquismo e sadismo, e que faz daquele apenas o negativo deste39. Falsa unidade que se vê, para Deleuze, tanto do

ponto de vista do procedimento de criação literária, quanto do ponto de vista daquilo que está em jogo no fantasma, ou seja, tanto do ponto de vista da crítica quanto da clínica.

Além desse problema, o livro também aborda outros dois. Por um lado, ele apresenta uma crítica ao conceito de pulsão de morte, apontando para a confusão psicanalítica entre o que é da ordem do empírico e o que é da ordem do transcendental. Nesse sentido, Deleuze introduz uma divisão ausente no pensamento de Freud. Ele produz uma separação entre o conceito de instinto de morte como principio transcendental e o de pulsões de morte, sendo estas da ordem do empírico. O principio de prazer é, desta forma, para Deleuze, o princípio de regulação do empírico. Por outro, ele aponta para a confusão entre repetição do mesmo e repetição da diferença (Deleuze atribui à psicanálise uma compreensão externa, mecânica da repetição). Temas esses

39 É a dupla injustiça para com Masoch de que fala Deleuze: primeiro, sua obra caiu no

esquecimento ao mesmo tempo em que seu nome ganhava uso corrente; segundo, seu nome ganhou uso clínico apenas para servir de complemento ao sadismo. Sobre essa dupla injustiça, ver também: Mística e Masoquismo, entrevista publicada em A ilha deserta (DELEUZE, 2006b). Neste texto, Deleuze chamará a unidade sado-masoquista de “monstro semiológico”.

que são retomados em Diferença e Repetição e que, nas décadas seguintes, praticamente desaparecerão dos textos de Deleuze40.

Mas há algo, de extrema importância, que permanecerá: é a idéia de Deleuze de relacionar Clínica e Crítica41. E assim como a clínica implica a dissolução do eu e a emergência de uma região Impessoal, a crítica ultrapassa limites do texto literário para abri-lo ao mundo. O que importa é a idéia de uma região de indeterminação entre crítica e clínica, é o ponto literário como ponto fora da clínica, como modo de fugir aos preconceitos da clínica psiquiátrica e psicanalítica. O que interessa é a nebulosa criada ao redor dessas regiões que se pretendem bem delimitadas, pois:

Masoch fala uma linguagem onde o folclórico, o histórico, o político, o místico e o erótico, o nacional e o perverso se misturam estreitamente, formando uma nebulosa para as chicotadas (DELEUZE, 1983, p. 8).

Mas em meio a essa nebulosa feita a chicotadas, essa zona de indiscernibilidade, para usar um termo que depois se tornará caro a Deleuze, formada entre política e literatura, arte e sociedade, temos outras questões importantes, tais como a do contrato masoquista, de como ele difere da instituição sádica e de como ambos se opõem à idéia de lei. Esse complexo instituição-contrato-lei percorre toda obra de Deleuze, indo de seu primeiro livro até seu texto sobre Bartleby - abordaremos essa problemática apenas no último capítulo, quando tratarmos da idéias de Deleuze acerca da literatura norte-americana. Veremos, nesse momento, que aquilo que o contrato masoquista conjura está muito próximo da questão do que um corpo social suporta, e nos porá, assim, em cheio, na questão do homem como espécie inventiva de mundos.

É preciso, agora, como afirmamos anteriormente, mostrar que o livro dedicado a Kafka se encontra totalmente tomado pelo movimento dos 40 Veja-se, por exemplo, o pequeno texto intitulado “Reapresentação de Sacher-Masoch”,

publicado pela primeira vez em 1989, que faz parte do último livro de Deleuze Crítica e Clínica. Nele, os temas já correspondem muito mais ao pensamento de Deleuze dos anos 1970 e 1980, desaparecendo a querela do instinto de morte e sendo acentuada a questão do devir-animal, inexistente na Apresentação, mas que a partir do livro sobre Kafka ganha cada vez mais importância em relação à criação literária. E mais, a questão da minoria aparece nele ligada a questão de um devir-minoritário.

conceitos apresentados em o anti-Édipo, por sua crítica radical da imagem psicanalítica do desejo (submetida, por um lado, pela representação e, por outro, pela falta) e também pela crítica da relação entre desejo, poder e servidão.

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