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A EXPERIÊNCIA DA REESCOLARIZAÇÃO NO PROEF-

Concepções de alfabetização de adultos circunscritas na história do Proef-1: o discurso oficial e o discurso dos egressos

O objetivo desta seção é tecer mais algumas considerações acerca da constituição do Proef-1 como campo de pesquisa e de escolarização, atentando, sobretudo, para questões ligadas à alfabetização. A pretensão de uma discussão mais detalhada dos processos desencadeados no âmbito da aprendizagem da leitura e da escrita justifica-se por considerarmos importante analisar as concepções de alfabetização subjacentes ao projeto, ao longo de sua história.

Os aspectos que remetem ao processo de alfabetização serão, inicialmente, discutidos à luz das primeiras reflexões realizadas pelo grupo de pesquisa da FALE, nos anos 80, a partir das experiências no projeto Alfabetização de Adultos. Essas reflexões viabilizaram a criação de um modelo de ordenação lingüística que significou, na época, uma nova maneira de perceber os processos de aquisição da leitura e da escrita. Em seguida, um “salto” na história será dado, a fim de destacar as percepções dos sujeitos sobre a prática pedagógica no Proef-1, pautada na alfabetização na perspectiva do letramento.

Nossa discussão está fundamentada no artigo produzido por Daniel

Alvarenga (1988), já citado nesta pesquisa131, no Relatório de Atividades do

Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos, elaborado por Rocha

(2004a), e no texto produzido por Maciel, Oliveira e Lúcio (2005), que, dentre outras contribuições, apresenta a estrutura organizacional e pedagógica do Proef-1. Entretanto, paralelamente ao discurso oficial sobre a história da EJA na UFMG, materializado nas produções acadêmicas em questão, consideramos necessário também demarcar as percepções dos participantes

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desta pesquisa sobre o Proef-1 desde a sua constituição. Enquanto sujeitos da história da EJA na Universidade que vivenciaram, respeitadas as particularidades de suas trajetórias e as diferentes fases do projeto, esses participantes deixam, em seus depoimentos, importantes contribuições no entendimento das concepções de alfabetização.

Dos onze trabalhadores da UFMG que, em 1985, compuseram a turma- piloto de alfabetização, instituída pelo grupo de pesquisa da FALE, três participam do nosso estudo. O fato de termos, dentre os cinco participantes investigados, pessoas que vivenciaram a constituição de uma prática educacional pioneira na UFMG nos ajuda a compor, juntamente com o discurso oficial, uma visão sobre o projeto Alfabetização de Adultos. Estamos nos referindo a José, Davi e Lineu, cujos depoimentos abaixo indiciam suas participações na turma-piloto:

José: Cê alembra do professore Daniel? Pesq.: Daniel Alvarenga.

José: Pois é, ele e o... E o... Milton (do Nascimento) né? Foi quando eles começaram. Pesq.: E lembra o ano?

José: Não... Foi quando começaram...

Pesq.: O senhor foi da primeira turma então do professor Daniel Alvarenga? Foi quando começou?

José: Foi quando começou, no comecinho mesmo.

Davi: Você alembra dele, do Daniel? Pesq.: Eu não o conheci.

Davi: Ele era de Perdões, a terra dele era perto de Perdões... Um moreninho que dava aula... Pesq.: Você entrou no projeto do Daniel você lembra o ano?

Davi: Não tô alembrado, mas foi no início, foi o primeiro...

Pesq.: E depois do MOBRAL, qual foi a próxima vez que o senhor entrou na escola? Lineu: Foi aqui na (Faculdade de) Letra.

Pesq.: Com o Daniel? Lineu: É com o Daniel.

Pesq.: O senhor tinha quantos anos?

Lineu: É, quando eu vim pra aqui, pra Belo Horizonte, eu vim com trinta e nove ano... Agora eu num... Iguale eu fichei aqui dia onze de setembro de... De oitenta... Eu num sei quanto tempo passou pra começar aquela aula. Isso aí eu num ((faz sinal com a cabeça que não se lembra)). Pesq.: E vocês foram chamados pra participar?

Lineu: Fomo...

Embora José, Davi e Lineu afirmem não se lembrarem do ano em que foram inseridos pela primeira vez na turma de alfabetização de adultos, seus depoimentos revelam que suas participações naquele grupo de onze trabalhadores analfabetos ocorreram tão logo a turma-piloto foi instituída, uma vez que, conforme José afirmara, o seu ingresso “foi quando começou, no

comecinho mesmo”, enquanto Davi diz que sua inserção “foi no início” dos

trabalhos, ou seja, “foi o primeiro” projeto de alfabetização.

Outro componente que reforça essa participação refere-se ao fato de os participantes se lembrarem dos pesquisadores envolvidos com o projeto. Ao serem questionados da primeira experiência de alfabetização vivenciada na Universidade, José e Davi responderam, respectivamente, com perguntas semelhantes, que comprovam a participação de ambos na turma-piloto: “Cê

lembra do professore Daniel? (...) Pois é, ele e o... E o... Milton né?”; “Você alembra dele, do Daniel?”. Já Lineu foi categórico ao dizer que sua reinserção

na escola “foi aqui na Letra”, além disso, também demonstrou conhecer o professor Daniel Alvarenga, ao responder de maneira afirmativa a pergunta da pesquisadora: “É com o Daniel”. Pode-se observar, a partir de seus relatos, que os participantes em questão estabeleceram uma estreita relação entre a primeira turma de alfabetização de adultos constituída na UFMG e os seus idealizadores.

Conforme já descrito no capítulo 1 deste estudo132, o grupo de pesquisa

que deu início à atividade de alfabetização de adultos na UFMG era composto por professores da FALE interessados em compreender o papel dos conhecimentos lingüísticos do adulto analfabeto no processo de alfabetização. Acreditamos que essa associação direta com o projeto Alfabetização de Adultos, sobretudo, com o professor Daniel Alvarenga deve-se ao fato de o pesquisador ter sido o responsável pela coordenação da turma-piloto e também de sua participação na turma, juntamente com uma bolsista de graduação, ter possibilitado a criação de um vínculo afetivo com os alunos. Essa hipótese ganha sustentação a partir da leitura do fragmento a seguir, em que Davi expõe sua opinião sobre Daniel Alvarenga, considerado por ele um professor

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dedicado. Enquanto a festa de confraternização na turma-piloto, com a

participação do referido professor, foi lembrada com satisfação, seu falecimento foi lembrado com pesar:

Davi: Seu Daniel, ele estudava língua, né? Ele era professor de línguas... Ele... Ele... Já é até falecido (...) Da festinha... Não sei se eu tenho a fita (de vídeo) lá (em casa) ainda, da festinha que ele fez pra nós (...) Seu Antônio, tava com (a fita de vídeo)... Seu... Esse menino do ICEX que também tava...

Pesq.: O José?

Davi: É o José... (...) Depois fiquei sabendo que ele (Daniel) tinha falecido, fiquei muito chateado, porque ele era um professor muito dedicado...

Pode-se observar que, nesse momento, Davi refere-se a José como um dos colegas da antiga turma-piloto e que, possivelmente, seria um dos detentores de uma fita de vídeo em que foram gravadas imagens da festa de confraternização na turma de alfabetização. Essa fita, infelizmente, não pôde ser recuperada, entretanto a lembrança da participação do colega no projeto, conforme a própria confirmação de José no relato abaixo, nos permite concluir que ambos tiveram um contato mais próximo com o professor Daniel Alvarenga:

.

José: Coordenador... Ele (Daniel Alvarenga) pode ter sido um coordenador (...) Mas ele nunca deu aula. Ele ia lá (na turma de alfabetização).

Pesq.: Visitava?

José: Visitava nozi... Ia na sala, conversava, porque ele era gente muito, gente boa, entendeu?

Além de confirmar a participação de Davi, Lineu e José no projeto Alfabetização de Adultos, interessou-nos apreender a maneira como o trabalho de alfabetização era conduzido na turma-piloto. Comecemos pela concepção de alfabetização defendida pelo grupo de pesquisa da FALE.

Conforme já destacamos, os fundamentos teóricos que orientaram a proposta de trabalho na turma de alfabetização de adultos foram sistematizados num artigo produzido por Daniel Alvarenga, no ano de 1988, momento em que os primeiros resultados da pesquisa foram divulgados. O título do artigo “Leitura e escrita: dois processos distintos” desde já apontava a

concepção de alfabetização subjacente à proposta de trabalho na turma-piloto: do ponto de vista do autor, o ensino da leitura e da escrita deveria ser conduzido de modo que a aquisição da leitura deveria preceder à da escrita, dada a natureza distinta de ambos os processos.

O ponto de partida de Alvarenga (1988) em defesa dessa tese foi a crítica dirigida à maneira como a atividade de alfabetização normalmente costuma ser desencadeada no Brasil. De acordo com o autor, “faz parte da

tradição escolar brasileira a concepção de que os processos de leitura e escrita devem ser considerados conjuntamente e trabalhados na mesma ordem e velocidade” (p.27) havendo, nesse sentido, um princípio implícito na prática

educativa de que “tudo o que se ensina a ler ensina-se, imediatamente, a

escrever” (p.27).

Esse princípio foi criticado por Alvarenga, que recorreu ao pensamento de Emília Ferreiro a fim de dar sustentação às suas idéias. No trabalho intitulado “A representação da linguagem e o processo de alfabetização”,

presente na edição de fevereiro de 1985 da Revista Cadernos de Pesquisa133,

Ferreiro destaca que, na tradição norte-americana, o ensino da leitura normalmente antecede o da escrita, diferentemente do que se observa nos países da América Latina, em que os dois processos são desenvolvidos concomitantemente. Essa constatação abriu precedentes para que Alvarenga apresentasse algumas diferenças entre a leitura e a escrita, os quais, segundo o próprio pesquisador, “não são novos e nem nossos” (p.28). Deter-nos-emos, a seguir, a uma breve discussão dessas diferenças.

De acordo com Alvarenga, basicamente são dois os aspectos que diferenciam a leitura da escrita: o primeiro diz respeito à direção de cada

processo134 e o segundo está relacionado à natureza das regras daí

133

FERREIRO, Emília. A representação da linguagem e o processo de alfabetização. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: (52), fev.1985.

134

O autor esclarece que os processos de leitura e de escrita “(...) têm, por natureza e

definição, três momentos: a entrada, o processamento da informação e a saída” (p.28) Assim,

no que se refere a leitura, a entrada é a letra – que organizadas compõem sílabas, palavras, frase e texto – o processamento é a decodificação – que diz respeito a apreensão e compreensão de elementos visuais bem como a construção de sentidos – e a saída são os sons como unidade mínima da cadeia sonora ou a imagem mental desses sons. Quanto aos processos de escrita, a situação se inverte. Inicialmente temos o som ou imagem mental do som representando a entrada, o processamento é a codificação, ou seja, a transformação de fonemas em grafemas e a saída é a letra – que unidas compõem as sílabas, as palavras, as frases e o texto. A principal diferença apontada por Alvarenga nos processos de leitura e de

decorrentes. Enquanto a leitura (...) é um processo de transformação de

informações visuais em imagens mentais, externalizáveis na cadeia sonora, a

escrita (...) é um processo de transformação de imagens mentais em

informações visuais, externalizadas na cadeia gráfica (p.28). Tendo em vista os

diferentes caminhos percorridos nos processos de leitura e de escrita, há que considerar as regras de decodificação para a leitura e as regras de codificação para a escrita.

No que se refere à leitura, as regras para a decodificação são gerais135

e, portanto, não comportam exceções136; já com relação à escrita, o processo

se inverte, uma vez que a codificação envolve, obrigatoriamente, o conhecimento de algumas regras do código escrito, mas que, na maioria das

vezes, engloba convenções e arbitrariedades ortográficas137. Em outras

palavras, ao final da década de 1980, Alvarenga defendeu a tese de que, se existem regras fixas para a leitura, isso não ocorre com a mesma intensidade com a escrita e, diante desse fato, o ato de ler não pressupõe a memorização de palavras e sim o reconhecimento e aplicação dessas regras. Com relação à escrita, “em todos os casos não controlados por regras, a aprendizagem se faz

palavra por palavra” (p.29); isso implica, na visão do autor, um maior esforço

por parte do aprendiz inserido no processo de alfabetização. Concluindo:

Essa diferença de natureza entre leitura e escrita faz daquela um processo – do ponto de vista da aprendizagem – muito mais simples do que o processo de escrita. Se a leitura, na sua quase totalidade, é controlada por regras, o mesmo não ocorre com a escrita. Embora haja também regras, essas são, na escrita, em número bem mais reduzido que na leitura, deixando espaço aberto para um grande número de

escrita é que os primeiros são submetidos a regras gerais e fixas enquanto que os segundos, apesar da existência de regras, ocorre em sua maioria a convenções e arbitrariedades ortográficas do código escrito (ver ALVARENGA, 1988, p.29).

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Como exemplo, Alvarenga cita o caso da letra S que, no âmbito da leitura, está submetida a duas regras básicas: entre vogais orais e antes de letra que representa um fone sonoro – caSa, EliSa, meSmo – o som é [Z] e nos outros casos – Sapo, Serpente, paSSa – é [S]. Tais regras são válidas mesmo em situações em que se observa erro de escrita, como, por exemplo, Senoura e Sinema (ver ALVARENGA, 1988, p.29).

136

Alvarenga esclarece que, “com exceção de certas ocorrências de X, todas as unidades

gráficas têm valores gerais e fixos no ato de leitura” (ver ALVARENGA, 1988, p.29).

137

As regras de escrita para a letra S envolvem, segundo Alvarenga, maior número de arbitrariedades do que necessariamente regras fixas. A relação [S] há apenas uma única regra de ortografia, sem exceção, que é S de início de palavra antes das vogais a, o u e no caso da relação [S] S ~ Z, em final de palavras, há alguns controles morfológicos: substantivos abstratos derivados de adjetivos – escasseZ, timideZ –; verbos que apresentam Z no infinitivo – faZ, traZ –; e o plural dos nomes grafado com S – páS, bonéS. Alvarenga finaliza dizendo que

“nos outros casos não há, sincronicamente, nenhuma regra ortográfica” (ver ALVARENGA,

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