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3 A EXPERIÊNCIA VOCACIONAL RELIGIOSA COMO CONTEXTO DE

6.3 Caso Francisco: a organização do sistema de self na zona de fronteira entre o dentro e o fora

6.3.3 Movimentos semióticos e tensões dialógicas na trajetória de vida do Francisco

6.3.3.2 A experiência no novo instituto de vida consagrada

Ao ir morar com a irmã, em meados de 2007, Francisco pensa em prestar vestibular, estudar e trabalhar. “Eu me via em outros campos, mas não... a energia não me fazia ir buscar essas coisas”. É aprovado em duas faculdades em outros estados, mas não ingressa em nenhuma, visto que a família se posiciona contra sua mudança para um lugar onde não há o apoio de parentes, devido a seus problemas de saúde. No entanto, o grande motor que o afasta da ideia de uma vida profissional fora do sacerdócio é sua percepção sobre a própria vocação:

eu de fato não enxergava outras visões, mas eu me via feliz na igreja. Eu ia pra missa, quando estava na missa, estava aquela coisa ótima, mas quando a missa acabava... sabe quando você foi em uma festa, a festa tá muito boa e você não quer sair de lá, mas você é obrigado a deixar a festa? É mais ou menos assim. Eu ia pra casa sempre triste... sabe como se te faltasse algo? Como se... não tá completo, não tá bom. (primeira entrevista)

Em 2010, o Francisco se aproxima dos padres da paróquia que frequentava, inclusive aquele responsável pelos encontros vocacionais, partilhando com ele seu desejo de ser religioso. Estabelece uma amizade com esse padre: sempre se encontram; o padre acostuma-se a visitar a casa da irmã do Francisco, onde este residia; eles vão juntos ao cinema, visitam outros jovens vocacionados que residem nas redondezas. E por isso Francisco decide lhe contar sobre sua condição de saúde, convidando o padre para acompanhá-lo a uma consulta médica, com a intenção de informá-lo da sua real situação de saúde antes de começar a participar nos encontros vocacionais: “ele saiu do consultório assim meio assustado. [...] Eu fiquei um pouco apreensivo com a resposta, ‘qual será a resposta? Vou ou não vou?’ Mas lá no fundo eu achava assim: ‘isso não vai dar certo’. [...] Eu tinha esse receio de me decepcionar de novo”.

O Francisco é autorizado a participar dos encontros vocacionais em 2011 e aceito para ingressar no postulantado daquele instituto de vida consagrada no início de 2012. Ao ser perguntado sobre as experiências marcantes no postulantado, que durou até o final de 2013, ele

novamente destaca a sua condição de saúde. Sua narrativa volta a ser construída mediada pelos modos como a doença o posiciona nos contextos.

A convivência... a convivência e ao mesmo tempo... hum, isso é assim, chato, né? A desumanidade. Que assim... é... a convivência, os meninos me ajudavam muito quando eu passava mal, quando eu precisava. Não conseguia passar sonda, então eles precisavam ajudar... mas a desumanidade dos... de um formador, não vou colocar os dois porque não foi a fraternidade toda, foi um. De rejeitar, de criticar, de achar que eu estava perdendo tempo e eles perdendo tempo comigo, então isso... A convivência e a não, digamos, a não sensibilidade. (primeira entrevista)

Essa tensão com um dos formadores perdura por todo o primeiro ano do postulantado. Francisco diz que sofria muito com os comentários do formador, que deixava claro que ele era um “peso” para o restante do grupo. Diz que o dia mais difícil foi uma das vezes que passou mal e precisou ir às pressas para o hospital:

quando eu entro no hospital, [o formador] já entra brigando, eu e ele começamos a discutir, porque ele falou assim: “está vendo que você não tem condições para ficar aqui? Por que você não pede para ir embora?” Aí ele começou a fazer um terror psicológico, e ele é psicólogo. Então aquilo me incomodou muito. Eu falei assim: “será se eu não tenho vocação mesmo?” (primeira entrevista)

Francisco apresenta aqui sua percepção em relação ao formador, provavelmente em diálogo com suas experiências passadas em relação à figura do padre. Em um instituto de vida consagrada, fundamentado nos valores evangélicos, a caridade e o acolhimento do outro são princípios orientadores da ação e da formação. O jovem faz uma dupla crítica ao formador: como padre religioso consagrado e como psicólogo. O sentido que este oferta para a doença do Francisco contradiz aquele ofertado pelo bispo Justino. Ao mesmo tempo, a vivência desse tipo de experiência justifica a resistência do jovem em resignar-se à doença e, ao contrário, desejar tanto a cura. Por mais que pudesse ser interpretada como “cruz”, graça de Deus e modo de viver a vocação religiosa, a doença também era uma ameaça real à permanência do jovem na vida religiosa — uma ameaça que ele experimentava na relação com quem tinha autoridade para pedir seu desligamento da instituição (como já havia acontecido).

Ao retornar para casa, após a discussão com o formador, Francisco diz ter começado a admitir a possibilidade de que realmente atrapalhasse o grupo, seus colegas, já que dependia muito deles devido à fragilidade da sua saúde. Influenciado pelo formador, alteraram-se suas disposições semióticas e surgiu uma confusão, da parte dele, entre vocação e disposição de alguns membros da congregação em recebê-lo.

Fiquei uma semana e meia, a gente brinca, em crise [risos]. Mas uma crise mesmo, de ficar isolado no quarto. Descia pra rezar, pra fazer meu trabalho, mas era sozinho, colocava o

fone de ouvido e ia ouvir algumas músicas que me ajudavam, fazia o que era minha obrigação, voltava pro quarto. Hora de estudo, sentava na minha mesinha, falava o essencial com os meninos. Na hora do almoço sentava também, conversava o essencial e mais no quarto [grifos do pesquisador]. (primeira entrevista)

A esse isolamento, a essa “crise”, Francisco chama de “noite escura”, fazendo referência ao poema de São João da Cruz que narra a jornada da alma desde a sua morada terrena até a união com Deus. São João da Cruz chama essa jornada de “noite escura” associando a escuridão às dificuldades que a alma encontra em desapegar-se do mundo e chegar à união com Deus. A dolorosa experiência vivenciada nessa busca de crescimento espiritual e de união com Deus é a ideia central do poema, com a qual Francisco busca se identificar. O jovem utiliza o poema como recurso simbólico (conceito explorado à luz do caso Fátima) num esforço para manter seu sentido de continuidade.

Na superação de rupturas, o sujeito se utiliza de recursos simbólicos que orientam e direcionam processos de transição de desenvolvimento. Isso favorece, de certa maneira, a mudança pessoal dada a emergência de novos posicionamentos sociais, bem como a elaboração das emoções, direcionando novos modos de ser, sentir e interpretar o mundo (Zittoun, 2006, 2007).

No final de 2013, o Francisco ingressa no noviciado, em outra cidade e com outros formadores. Esse tempo lhe proporciona, segundo disse, maior intensidade no contato consigo mesmo e na oração. “O noviciado, com que se inicia a vida no instituto, destina-se a que os noviços conheçam mais profundamente a vocação” (CDC, cânone 646). Dois rituais são marcantes no período do noviciado: o primeiro é o recebimento da vestimenta que caracteriza os membros daquela instituição, o hábito, logo que se ingressa no noviciado (o que acontece também no caso Cecília); o segundo é a primeira profissão, os votos simples e temporários, de pobreza, castidade e obediência, celebrada no final do noviciado (o que acontece com os quatro participantes).

Na primeira entrevista, Francisco estava usando o hábito religioso e, como já informado, em poucos dias realizaria sua primeira profissão. A experiência de receber o hábito, símbolo visível da identidade da instituição, é marcante para Francisco:

receber o hábito... eu já pertenço a... ele, além de me dar esse pesinho na ordenação, me dá estabilidade... agora pra ser mandado embora é mais difícil [sorri]. É uma segurança o hábito, é uma segurança no sentido assim: pertenço a esta [instituição]. Me dá uma segurança e me dá uma identidade... é visível pros outros... [grifos do pesquisador]. (primeira entrevista)

Francisco desenvolve um sentido singular de pertença mediado pelo objeto significativo hábito. E esse sentido dialoga com sua condição de saúde. Se por um lado o hábito lhe oferece uma identidade religiosa, possível de ser vista pelos outros, um significado objetivado do ser religioso,

por outro, com seus significados culturais, seu “poder” semiótico de despertar sentimentos, é símbolo particular de segurança para o jovem.

Segundo o Código de Direito Canônico, o noviciado é a entrada do jovem na vida religiosa, é uma transição do ser leigo para o ser consagrado. O hábito religioso reforça tal sentido à medida que iguala o jovem não professo, visualmente, ao religioso professo. Ao comentar as expectativas em relação a sua primeira profissão, o Francisco também apresenta uma significação do rito orientado pela condição de saúde:

primeiro, me dá estabilidade. Segundo, agora eu sou da [instituição]. A gente brinca: meu nome vai estar lá, de lápis, mas vai estar lá na casa geral, lá em Roma! [...] E terceiro, [...] não será só um simples falar, uma simples forma, mas aquilo que eu já comecei a viver e agora eu falo assim: “eu quero, eu quis e creio e é isso que eu vou fazer”. E é ver que tudo aquilo que eu sonhei, tudo aquilo que eu construí, começa a se realizar nos meus votos. [...] A minha consagração primeiro é pra Deus, pra Cristo. E na minha resposta, na minha consagração pra Cristo, aí sim. Aí eu quero tentar ser, nem que seja um pouquinho melhor do que eu sou, ser menos mesquinho, ser menos... não pra me vangloriar, não pra isso. Mas pra tentar fazer a vida do outro um pouco mais suportável, um pouco mais agradável, um pouco mais... para devolver ao outro a dignidade... Porque assim como eu, às vezes, perdi minha dignidade como pessoa, vejo que a minha consagração pode me ajudar a devolver e a levar dignidade ao outro... eu cuidar dele e também deixar ser dependente. Porque uma coisa que eu trago muito é que eu não gosto de ser dependente do outro, sou meio orgulhoso na minha saúde [grifos do pesquisador]. (primeira entrevista)

As continuidades e mudanças esperadas pelo Francisco com o evento da consagração estão muito em diálogo com a performance sugerida pelo bispo Justino. O jovem aposta na sua consagração como rito de passagem para uma possível resignação em relação à doença: “minha consagração pode me ajudar” a concretizar os sonhos, ser uma pessoa melhor, ajudar os outros, ser menos orgulhoso, não sofrer com a dependência do outro. Isso destaca a tensão entre aceitar e rejeitar a doença como modo de experienciar a vocação religiosa. Até aquele momento, o jovem claramente não aceitava a doença como graça de Deus, por isso, orientado por significados institucionais referentes à profissão dos votos, busca criar sentidos que o apoiem neste novo modo de viver a vocação.

Ele destaca algo que aparece igualmente na fala de outros participantes: a significação da profissão dos votos como reafirmação pública de algo que era vivenciado antes. De certa forma, os vocacionados à vida religiosa, ao ingressarem em um instituto de vida consagrada, já começam a viver os votos religiosos, antes mesmo de se tornarem professos.

De qualquer forma, o rito de passagem institucional denominado primeira profissão sugere novos modos de ser e de sentir ao jovem, ao mesmo tempo que o reposiciona diante dos outros

membros da instituição, da própria Igreja e das pessoas leigas. Nesse momento, percebido como ruptura, Francisco aposta para que, ao assumir o sentido institucional da profissão dos votos, consiga agir de modo mais próximo aos valores daquele contexto. Aqui também os sentidos sobre sua condição de saúde dialogam com as novas possibilidades de ser e de se sentir religioso consagrado. O jovem quer ser instrumento de dignificação do outro, talvez por ter sentido, várias vezes, que perdia a dignidade quando dependia do outro, ou quando o outro o desprezava por sua condição de saúde. Ao mesmo tempo, deseja se entregar mais aos cuidados dos outros, aceitar suas limitações como pessoa doente. Isso ajudaria a resolver o problema destacado pelo bispo: “o seu problema está em não assumir, em não aceitar sua cruz. E quando você assumir, aceitar sua cruz, você vai conseguir aquilo que você quer. [...] Não está na sua doença, [...] o problema está em você não aceitar aquilo que você tem, a sua limitação”.