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A consagração religiosa: “agora eu entendi que a vida consagrada é o dia a dia”

3 A EXPERIÊNCIA VOCACIONAL RELIGIOSA COMO CONTEXTO DE

6.1 Caso Cecília: a organização do sistema de self a partir do diálogo com as esferas de

6.2.3 Movimentos semióticos e tensões dialógicas na trajetória de vida da Fátima

6.2.3.4 A consagração religiosa: “agora eu entendi que a vida consagrada é o dia a dia”

A vida religiosa ou vida consagrada, considerando os fundamentos teóricos deste estudo, é entendida como um recurso simbólico, uma sugestão socioinstitucional e cultural de modos de ser, agir e sentir no mundo. Ao se interessarem pela vida religiosa consagrada, os quatro participantes deste estudo não tinham amplo conhecimento da dinâmica daquele modo de vida. A Cecília, por exemplo, é a única que não cita a freira ou o padre como figuras importantes na emergência da sua vocação para a vida religiosa. Também ela é a única, neste estudo, que não foi coroinha e, portanto, teve uma participação menos intensa na igreja quando criança e adolescente. Por sua vez, a Fátima, o Francisco e o Vicente estiveram inseridos nesse contexto desde muito cedo, o que contribuiu no modo singular como compreenderam a dinâmica da vida religiosa.

Com particularidades, para cada participante, a vida religiosa consagrada é apresentada como um elemento cultural afetivamente valorizado. Entre os significados em torno da vida religiosa consagrada, merece destaque o signo diferente. Os quatro participantes, de um modo ou

de outro, projetam na vida religiosa consagrada a possibilidade de viver o algo diferente que sentiam, mas que nem sempre conseguiam definir em palavras. A Fátima, por exemplo, conta que sentia algo diferente, mas não sabia que aquilo era ser freira. Em sua primeira entrevista, ela utiliza a palavra “diferente” em nove situações. Em geral, refere-se a uma disparidade entre o seu comportamento, seu modo de pensar, e o de outros. E ao longo da sua trajetória de vida esse sentir- se diferente vai sendo descrito como ser vocacionada para a religiosa consagrada, considerando que o significado institucional de vida consagrada será negociado mediante a pedagogia de formação no convento.

Ambiente que tem padre, ambiente que tem freira, ambiente que... tem uma vida assim diferente, né? Eu gostava. [...] Eu tinha realmente um comportamento diferente dentro da sala pelo fato de eu ser coroinha e ser toda de dentro da igreja. [...] Mas eu me percebia diferente. [...] Outras crianças que eram coroinhas também, a gente via. Eu também percebia neles: “ah, eles são diferentes”. Então, não é só eu que sou diferente por ser coroinha. [...] As irmãs todas de hábito, tudo fechado, mas o rosto... sabe quando transparece aquela felicidade, aquela coisa? Essas irmãs, essas pessoas são diferentes. [...] E eu desde pequena já participava, porque outras pessoas da comunidade me indicavam. Diziam pro padre: “padre, chama a Fátima! Chama a filha da dona [Fulana], que ela é diferente”. [...] A ideia é muito boa de ir, fazer a experiência, conhecer uma coisa nova, né, uma vida diferente da minha. [...] Mas a vida também que é diferente de todo profissional, de qualquer leigo, né? É a vida de oração, vida comunitária! [...] Eu sou novinha e tudo eu quero as coisas assim... jovem tem um jeito diferente de fazer as coisas... de novidade [grifos do pesquisador]. (primeira entrevista)

O ser diferente parece um sentido orientador de escolhas ao longo da trajetória de desenvolvimento da Fátima. Coisas diferentes, pessoas diferentes, espaços diferentes, comportamentos diferentes parecem estar na preferência da jovem. Nos ambientes em que esteve, ela se esforçou por fazer diferente, querer algo diferente, resistir ao presente (ao real) em função do imaginado (o vir a ser). A própria decisão pelo uso do hábito foi um diferencial na realidade da sua instituição religiosa, onde ninguém tivera tal atitude até então.

Esse sentir-se diferente igualmente era uma sugestão social, pois as pessoas também viam a Fátima como diferente. Sentimentos de bem-estar, de satisfação, de realização em ser coroinha, em participar da igreja, são com o tempo interpretados em diálogo com o elemento cultural religioso consagrado. Esse processo vai se construindo em diálogo com a pedagogia de formação do convento.

Não é que eu fiquei pronta agora, depois de irmã, mas de agora que eu reconheço que eu estou muito diferente, talvez pra melhor um pouco e muita coisa pra melhorar, com consciência de muita coisa pra melhorar, depois de ter entrado na congregação. [...] A

Fátima de hoje que é a irmã, mas que é bem diferente da Fátima do começo [grifos do pesquisador]. (segunda entrevista)

O ser religioso consagrado é um aprendizado. Os jovens ingressam em uma congregação ou ordem e, dentro de uma pedagogia específica, vão se constituindo religiosos consagrados. Portanto, são oferecidos limites e possibilidades de ação, de ser e sentir naquela e em outras esferas de experiência. E aquilo que começou como “uma inquietação”, um sentimento nebuloso, é transformado em vida religiosa consagrada, numa relação dialógica entre pessoal e institucional.

A Fátima gostava de estar no ambiente da igreja, gostava de realizar as atividades que aquele local oferecia. Gostava de outros ambientes também, mas aquele a atraía de modo especial, afetivamente falando, e tinha forte influência sobre a garota: “algo deve ter me atraído ali naquele ambiente, porque... quantas pessoas cresceram na Igreja Católica e depois se desviaram?” Portanto, gostar e estar no ambiente da igreja não era o suficiente. Mas algo a inquietava, “eu quero mais, eu gosto disso daqui, mas eu quero mais disso daqui. [...] Isso foi crescendo em mim, cada vez eu gostava mais, cada vez... quanto mais fazia, mais queria fazer”. E esse desejo de estar cada vez mais naquele ambiente, fazer mais aquele trabalho na igreja, foi compreendido como o desejo de ser freira — uma construção de significado catalisada pela figura do hábito religioso e pela expressão de felicidade das freiras, “as irmãs todas de hábito, tudo fechado, mas o rosto... sabe quando transparece aquela felicidade, aquela coisa? Essas irmãs, essas pessoas são diferentes”.

A partir de então, a garota reconhece na figura das freiras (e mais tarde na consagração religiosa) a possibilidade de viver o seu modo de ser diferente, o seu gosto pelo ambiente da igreja. “Falei: ‘olha, eu sempre quis o algo mais dentro disso aqui que eu gosto. Então, talvez seja isso daí.” Ao interpretar de maneira singular comportamentos e modos de ser e de sentir culturalmente reforçados, a Fátima constrói processos de continuidade e sentido de si. O encantamento com o hábito e com a figura das freiras, num processo dialógico com esferas de experiência, vai sendo transformado num sentido pessoal do ser uma religiosa consagrada. E esse processo é possível a partir de relações dialógicas entre a jovem e o outro, especialmente pessoas, objetos e narrativas que representam a tradição da instituição religiosa.

Tem um porquê de ir, não é só porque eu quero ser freira, não. Realmente o fundamento de toda a nossa vida, de uma vida religiosa, é a pessoa de Jesus Cristo, né? E é tanto que a gente faz esses três votos, que é pobreza, castidade e obediência. E o fundamento maior é ele, que ele foi pobre, casto e obediente. Assim, todo o nosso espelho... cada congregação tem o seu carisma, tem seus fundadores, tem sua missão diferente, mas tudo se resume em Jesus, né? No caso, o fundamento é o mesmo [grifos do pesquisador]. (primeira entrevista) Na relação com o institucional, a Fátima ressignifica sua vocação religiosa, agora fundamentada na pessoa de Jesus Cristo. Querer ser freira não é o suficiente; é preciso estar aberta aos ajustes entre o pessoal e institucional. É preciso desenvolver a capacidade de ressignificar os

próprios sentimentos, desejos e inquietações em diálogo com narrativas, objetos e elementos institucionais.

Aquele negócio de morar com mais seis pessoas dentro de uma casa que você não conhece, não conhecia antes! Vai conhecendo ali toda a vida... o ano todo conhecendo! É... cada uma é de um lugar diferente. Gente do norte ao sul dentro da mesma casa. De região diferente, de jeito diferente, de cultura diferente, tudo diferente, mas aquilo dali conta... aquilo dali também faz valer a nossa vida, a nossa opção pela vida religiosa, né? E a vida de oração que... pra mim sempre foi mais forte! Sempre! Desde pequena, desde criança, desde antes de entrar na congregação. Gostar de rezar [...]. Vida religiosa é todo um contexto. Não é só a congregação, não é só a casa que eu estou. Tudo, tudo, a vida da gente é outra. [...] Mas o fundamento disso tudo é Deus. É a vida de oração [grifos do pesquisador]. (primeira entrevista)

As experiências vividas no contexto da formação religiosa são vistas pela Fátima sempre em diálogo com sua história e seus horizontes futuros. A jovem utiliza-se de significados construídos anteriormente, bem como de objetivos a serem alcançados, para fazer sentido de si no momento presente, sempre em diálogo com elementos institucionais. Assim, a consagração religiosa, como um elemento cultural, torna-se um recurso simbólico para a jovem. Ao esforçar-se para manter seu sentido de continuidade, uma das formas utilizadas para promover essa transição de desenvolvimento é fazer uso dos recursos simbólicos disponíveis na cultura institucional.

São várias as rupturas demandadas na formação para a vida religiosa. E a superação dessas rupturas exige mudanças significativas que atuam como catalisadores na emergência de novos processos e modos de sentir, agir e pensar. Na busca de readaptação às realidades, novas reorganizações no sistema de self ocorrem visando restabelecer um sentido de continuidade de si. E, assim, recursos simbólicos são internalizados mediante as interações da jovem com o sistema cultural oferecido e organizado pela instituição religiosa. Esses recursos simbólicos oferecem meios para lidar com a incerteza do futuro, possibilitando a construção de novos sentidos de si e do mundo (Zittoun, 2006b; Zittoun & Grossen, 2012).

Teve momento que eu partilhava com o padre: “padre, eu estou muito feliz. Muito! Sei lá, não dá pra explicar isso, não!” Aí ele: “isso é que é a vida religiosa. Isso é que é o dizer sim a Deus. É o dia a dia, não é o dia da profissão!” Eu: “ah, é?” “É, o dia a dia!” A pessoa vai se percebendo feliz. Tendo o sentido de vida, encontrando o sentido de vida dela, no dia a dia, sem ter nada assim de extraordinário. [...] É no dia a dia, no cotidiano. Com a questão dedicada da missão. [...] Eu canso, mas eu gosto de fazer! Me sinto bem com isso. [...] Eu sempre fui percebendo e cada dia se confirma. Aí eu falei: “ah, então agora eu entendi que a vida consagrada é o dia a dia, não é o dia da profissão’. Ele: “a consagração é o dia a dia” [grifos do pesquisador]. (segunda entrevista).

Portanto, o uso do recurso simbólico consagração possibilita à Fátima um movimento semiótico em direção ao passado e ao futuro, em direção àquilo que ainda não é, mas que pode vir a ser — agindo como se... (Zittoun, 2006a) —, mas também em direção àquilo que é passado, mas que continua passível de ressignificações a partir da experiência presente. Isso é possível pela mediação de recursos simbólicos que antes não estavam disponíveis, mas que agora integram o sistema de self. Trata-se de um processo fundamental na representação de movimentos transicionais, num espaço-tempo de desenvolvimento.

6.3 Caso Francisco: a organização do sistema de self na zona de fronteira entre o dentro e o