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4. A validação experimental

4.7. A experimentação para além do positivismo

Uma vez estabelecido que não existe nenhum impeditivo necessário a uma articulação entre o pensamento psicanalítico e a validação extraclínica construída a partir de bases epistemológicas radicalmente empiristas, devemos nos perguntar, por outro lado, quais são os ganhos reais de se fazer isso. Não se trata de negar as aparências ou disfarçar as evidências, mas sim de avaliar, uma vez demonstrada a compatibilidade entre os campos, quais avanços podem ser esperados com tal empreendimento.

Primeiramente, há um potencial ganho político de inegável importância. Se retomarmos o que foi apresentado na introdução sobre os rumos que parece estar tomando o NIMH (Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos), localizando-o como um dos pontos mais extremos em relação à demandas de validação empírica, o reconhecimento da

possibilidade de validação de conceitos psicanalíticos por parte de influentes filósofos da ciência como Grünbaum é de enorme relevância. Tal feito permite a ocupação de um espaço político essencial na determinação de políticas de saúde mental, abrindo espaço para que a psicanálise participe do debate.

Entretanto, embora esse ganho seja extremamente importante, deve-se ter cuidado com os efeitos que isso pode acarretar. Se em grande parte de nosso estudo tensionamos um ponto considerado central por muitos psicanalistas, sobre a possibilidade de responder a tais demandas sem, todavia, perder do horizonte a ética da psicanálise — ou, em outras palavras, sem negar a divisão do sujeito e, assim, simplesmente ser assimilada por um discurso que parece ter como direção normativa o silenciamento do mal-estar entendido enquanto uma questão puramente orgânica —, parece-nos que esse ponto deve ser retomado agora, pois novamente essa possibilidade parece relevante.

Se num primeiro momento concentramos nossos esforços em demonstrar alguns equívocos presentes na ideia de que essa possibilidade de negação da divisão do sujeito seria uma consequência necessária da articulação do pensamento psicanalítico com demandas de cientificidade, agora, entretanto, devemos nos debruçar no empreendimento de, frente a uma articulação possível e até mesmo já realizada, reconhecer e evitar os riscos de que essa assimilação de fato aconteça. Trata-se, portanto, de manter ativa a tensão existente entre a clínica e sua validação, partindo do entendimento de que, se não há nenhuma necessariedade entre ciência e rejeição do sujeito, tampouco existe qualquer garantia metodológica ou epistemológica que impeça que essa exclusão aconteça. Retomemos então o artigo de Marcia Davidovich e Mona Winograd, “Psicanálise e neurociências: um mapa do debate” (2010). Nesse texto, as autoras definem três posições básicas em relação à articulação entre psicanálise e ciência: haveria os que defendem a hibridação, os que rejeitam qualquer articulação e aqueles que propõem um diálogo.

Em relação ao primeiro grupo, formado a partir da influência de autores como Kandel, Damásio, entre outros, haveria uma clara hierarquização: a psicanálise seria apontada como apresentando um déficit científico que atrapalharia o seu desenvolvimento, de modo que deveria recorrer a métodos estabelecidos nas neurociências para construir uma base epistemológica e conceitual mais sólida para sua clínica: “As neurociências poderiam fornecer à psicanálise fundamentos empíricos e conceituais mais sólidos sobre o funcionamento psíquico...” (Davidovich; Winograd, 2010, p. 802), de modo que se trataria mais de uma espécie de colonização da psicanálise por um saber mais avançado do que da conjugação de saberes e métodos distintos. Como diz a autora,

Considerando-se o que está implícito neste grupo, ou seja, uma hierarquização de modelos epistemológicos em que é conferido às neurociências um lugar de privilégio em relação à psicanálise, exacerba-se o risco de se realizar nessas pesquisas uma redução explicativa, e não apenas a necessária redução metodológica. (Davidovich; Winograd, 2010, p. 804)

Encontramos, portanto, exatamente o que diversos psicanalistas apontam enquanto risco de assimilação ideológica, inclusive com uma possível sutura do sujeito: tomar como modelo conceitual uma racionalidade que pensa a psicopatologia inteiramente a partir de processos orgânicos é, no limite, a famigerada sutura do sujeito apontada por Joël Dor (1988a/b). Contudo, como temos visto em nosso trabalho, a recusa dessa articulação também não parece ser produtiva. De fato, Davidovich e Winograd associam à psicanálise lacaniana uma posição de rejeição desse diálogo, por motivos extremamente próximos daqueles que trabalhamos na introdução e no primeiro capítulo:

Baseando-se no pensamento de Lacan, os representantes desse grupo discordam de uma articulação entre psicanálise e neurociências, alegando ser uma proposta inviável, já que a psicanálise não poderia ser considerada uma ciência. Deve-se notar que a posição lacaniana apenas reconhece que a psicanálise nasceu da ciência, tendo introduzido nela algo novo, que assume um valor de subversão. O discurso lacaniano orienta-se, em sua maior parte, pelo raciocínio de que “a psicanálise introduziu na ciência aquilo mesmo que, tendo-o inventado e sendo por ele sustentado, a ciência exclui: o sujeito” (Elia, 1999, p. 43). (Davidovich; Winograd, 2010, p.805)

Como visto, a ideia de que a ciência exclui necessariamente o sujeito só parece se sustentar se baseada numa concepção bastante datada de ciência, e tanto desenvolvimentos posteriores em filosofia da ciência como experimentos específicos na articulação entre neurociências e psicanálise demonstram a não procedência dessa ideia. Em relação ao primeiro grupo, também não nos parece que o experimento de Shevrin se encaixe, uma vez que estabelece solidamente princípios e conceitos psicanalíticos, e é realizado a partir de material retirado inteiramente da clínica. Desse modo, parece que estamos diante do terceiro grupo indicado por Davidovich e Winograd, que defenderia um diálogo produtivo entre os campos, mas sem resultar numa colonização ou hierarquização das disciplinas. Como diz a autora,

É importante salientar que as abordagens psicanalítica e neuropsicológica são incomparáveis do ponto de vista teórico e epistemológico — o que absolutamente não impede que possam trabalhar lado a lado e em

colaboração. Se a Psicanálise é uma prática centrada na transferência e na causalidade psíquica inconsciente, a Neuropsicologia Cognitiva situa-se do lado de uma causalidade científica apoiada no método experimental; porém, em torno do mesmo objeto de investigação (o lugar da cognição na organização psíquica) e da intervenção clínica no acompanhamento dos pacientes, uma não substitui a outra. (Davidovich; Winograd, 2010, p. 807)

Entretanto, e essa é a questão central que nos ocupa agora, como seria possível evitar que o recurso à experimentação empírica, como feito por Shevrin, não seja incorporado produzindo um reducionismo teórico da psicanálise, ou o estabelecimento de uma superioridade metodológica? Uma primeira resposta, como indicada por Winograd, é reforçar a necessidade de horizontalidade nessa relação. Um segundo ponto, que trabalharemos mais à frente, é a diversificação de articulações, de modo que a psicanálise não eleja as neurociências ou qualquer outro tipo de ciência experimental como interlocutor privilegiado. Mas existe um terceiro ponto, que diz respeito ao modo como entendemos a experimentação.

Nesse sentido, podemos retomar uma passagem de Edward Erwin (como prometido), quando o autor faz uma breve consideração sobre o fato de evidências empíricas serem mais apropriadas a serem consideradas evidências em si:

Os melhores candidatos a ser evidência em si são, é claro, evidências observacionais. Ninguém desafia isso, exceto alguém que negue que qualquer tipo de evidência é evidência em si. Eu não vou discutir essa posição aqui porque acredito que ela leva a um ceticismo completo sobre evidências, uma posição não atrativa para qualquer pessoa tentando fornecer suporte evidencial para a teoria psicanalítica. (Erwin, 2015, p.40; tradução nossa)

Coloquemos, por um momento, em questão isso que o autor indica como não sendo interessante: existe algum tipo de evidência em si? Ou, colocado de outra maneira, será que a articulação da psicanálise com métodos experimentais responde somente a demandas de uma produção positivista evidencial? Mesmo que a resposta seja positiva, o que estamos chamando de evidência? Trata-se do reconhecimento, na realidade, de representações realizadas? Reconhecimento de fatos que podem ser diretamente vistos ou medidos? Trata-se somente de teste de teorias? Não necessariamente.

Não estamos, aqui, descartando nem o valor epistemológico e muito menos o valor político de se estabelecer um diálogo com esse modo de se tratar evidências empíricas. Existe, contudo, outros modos de se entender o valor da experimentação, que não se apoiam numa relação tão imediata entre aquilo que pode ser visto diretamente em um experimento e aquilo que pode, portanto, ser inferido. Nesse sentido, estamos apresentando mais um argumento que

sustenta o interesse de realizar esse tipo de empreendimento, e, para tal, recorreremos a outro filósofo da ciência: Ian Hacking.