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2 REFORMAS NO ENSINO NORMAL MINEIRO E INTRODUÇÃO DE

2.3 As características gerais do Regulamento do Ensino Normal decretado em

2.3.1 A “Exposição de Motivos” do Regulamento do Ensino Normal e a

Em Minas, como em geral ocorria, a reforma do ensino normal foi antecedida pela reforma do ensino primário. Assim na Exposição de Motivos do Regulamento do Ensino Normal, o Secretário do Interior, Francisco Campos, dirige-se ao governador do Estado, Antônio Carlos R. de Andrada (1927-1930) nos seguintes termos:

Desde que o governo de vossa excelência empreendeu a difícil tarefa de reorganizar o ensino público em Minas, [...] compreendeu e declarou, de logo, que o fundo do problema, as suas raízes, assim como os fatores determinantes de sua solução, só poderiam ser atingidos e captados no domínio do ensino normal, matriz do ensino primário, que somente pela renovação e reajustamento do primeiro poderá ser renovado o seu espírito e reajustado nos seus termos (REGULAMENTO, 1928, p. 3).

Por meio de tais palavras, registradas nas páginas iniciais do documento, o governo mineiro partia do princípio que, para se concretizar a reforma do ensino primário, já em curso83, fazia-se necessário ofertar ao futuro docente uma formação profissional remodelada nos parâmetros do Regulamento do Ensino Normal que se seguia. Para isso argumentava:

• O ensino normal era a base para ensino primário e a boa qualidade desse último estava diretamente relacionada à boa qualidade dos seus professores; mas, estes dependiam ou necessitavam, no curso normal, de um preparo melhor, tanto em termos teóricos quanto práticos, pois não se podia exigir boa atuação se não lhes fossem proporcionada uma formação adequada;

• O ensino precisava dar um salto de qualidade, pois só assim difundiria também seu aspecto quantitativo, ou seja, o crescimento em quantidade era conseqüência da boa qualidade;

• O ensino de má qualidade não era útil, nem atraente, orientador e/ou provocativo; • Frequentar uma escola ruim era, em termos comparativos, equivalente a receber um castigo, o que levava à infrequencia;

• Os defeitos do ensino primário não estavam no currículo e nos programas, mas nos professores. As deficiências destes residiam nos métodos e técnicas que até então dispunham para abordar e captar o interesse infantil para promover um ensino concreto, intuitivo e palpável, e também na própria dimensão intelectual do professor, quanto à capacidade de apropriar-se da realidade da vida, ou em outras palavras, de proceder a uma melhor leitura de mundo;

83 A Reforma do ensino primário foi proposta por meio do “Regulamento do Ensino Primário”, aprovado pelo

Decreto n. 7.970-A, de 15 de outubro de 1927 e, na avaliação de Mourão, efetivamente, seus elaboradores (Antônio Carlos sob a orientação competente do seu Secretário Francisco Campos) tiveram em mira, os métodos de ensino, a finalidade educativa da instrução primária e também aplicaram os progressos da Pedagogia e da Psicologia Educacional. Em 22 de dezembro desse mesmo ano foi baixado o Decreto n. 8.094, que aprovou os programas do ensino primário de acordo com o Regulamento citado, cujas sugestões para o preparo das lições consistiam na busca de implantação da Escola Ativa, por meio de uma adaptação do método Decroly (MOURÃO, 1962, pp. 372 e 386).

O ensino normal existente não passava de um training, isto é, um estudo acompanhado da aplicação dos métodos e técnicas pedagógicas. Contudo, faltava proporcionar ao futuro docente a aquisição de técnicas psicológicas, intelectuais e morais durante o processo de sua formação (REGULAMENTO, 1928, p. 4-8).

Apontados esses aspectos que, na visão do reformador, consistiam nos principais problemas, esclarece que a inspiração para a reestruturação do curso tinha origem na organização dos sistemas vigentes na Alemanha, Inglaterra, Áustria e Estados Unidos, em que os estudos preparatórios ao curso de formação eram feitos em estabelecimentos secundários; e ao curso normal, ficava reservado apenas o estudo das ciências e práticas pedagógicas, com isso a tendência era de nivelá-lo ao ensino universitário. Isto era o ideal, segundo o Secretário do Interior, mas o estado de Minas não tinha condições de oferecer um ensino em moldes tão amplos. Assim, a saída foi dividir o curso normal em dois graus (1º e 2º, conforme já descrito no item anterior), como também permitir aos alunos cursar as matérias do preparatório fora da escola e prestar as provas para o ingresso no curso de Aplicação (correspondente aos dois anos últimos da formação normal). Era também ideal (mas as condições, de imediato, não o permitia) que fosse criado logo o Curso de Aperfeiçoamento (espécie de Seminário Pedagógico) para treinar uma elite de professores e assistentes técnicos nos recentes métodos de ensino e técnicas pedagógicas que poderiam ser mais eficientes no trabalho com o primário. Enquanto não se criava tal curso, o de Aplicação iria preenchendo esta lacuna (REGULAMENTO, 1928, p. 9-10).

Assim, entre possibilidades viáveis e utópicas, delineava-se um conjunto de modificações para o ensino normal, cujo modelo não era mais, como na segunda metade do século XIX, apenas o curso oferecido na França, pois agora os olhares haviam se ampliado e direcionado também para um grupo maior de países. Entretanto, projetavam-se adaptações e simplificações. Nessa perspectiva, o curso teria especificidades locais justificadas pela falta de condições financeiras do Estado (fato recorrente ao longo da história da educação mineira) e apresentava um paradoxo, pois, se por um lado frisava-se a questão da boa qualidade, por outro se abria um precedente, já que, permitiam-se aos futuros docentes cursar as matérias da fase preparatória fora da escola e depois prestar provas para ingressar nos dois últimos anos do curso normal. Isto na prática equivalia a uma espécie de curso vago ou supletivo, cuja qualidade poderia, dependendo de cada pessoa, ser bastante duvidosa.

Com vistas a introduzir as modificações julgadas necessárias e remodelar as práticas existentes, propunha-se, em linhas gerais, que o ensino ministrado cotidianamente aos normalistas passasse a ser desenvolvido pelos professores dos cursos de formação docente pautados nos seguintes parâmetros:

• Dar atenção ao lado educativo, mas também, à metodologia de cada disciplina; • Fazer das próprias aulas quanto aos aspectos científicos, literários e metodológicos modelos, principalmente nas turmas das últimas fases do curso;

• Desenvolver a teoria e a prática das técnicas pedagógicas unindo ciência e aplicação, com mais trabalho de oficina e tentativas de realizar experiências – único recurso capaz de levar o educando ao conhecimento do processo – com vistas a evitar, ao máximo, limitar-se apenas à exposição oral;

• Apelar para a colaboração dos alunos (principalmente por meio de exercícios complementares) objetivando que adquirissem o hábito de realizar investigações e anotações, por ser vantajoso intelectualmente e moralmente, pois isto possibilitaria desenvolver a responsabilidade, a percepção do valor do esforço pessoal;

• Conhecer a fundo os programas primários para poder preparar melhor os (as) normalistas que, no futuro, os executariam (REGULAMENTO, 1928, p. 8-9).

Como parte das modificações a serem introduzidas, explicitava-se também, na

Exposição de Motivos, a criação de novas disciplinas, a partir do desdobramento de cadeiras pré-existentes no currículo do curso normal, até então em funcionamento.

As demais modificações introduzidas no curso normal consistem no desdobramento das cadeiras de Física e Química e História Natural, na criação da cadeira de Biologia e Higiene e na de Psicologia Educacional. [...]. Finalmente, o regulamento desdobra a cadeira de História do Brasil e Geral, constituindo a cadeira de História da Civilização e da Educação [...] (REGULAMENTO, 1928, pp. 11 e 18).

Sobre a criação da cadeira de Biologia e Higiene e de Psicologia Educacional, as justificativas se relacionavam aos novos conhecimentos científicos sobre a natureza da criança, sendo que esta precisava ser levada em conta pelo professor nos processos de ensino e aprendizagem, pois:

A influência dos pontos de vista biológicos sobre a educação, a necessidade de conhecimento das forças que atuam no crescimento físico e mental das crianças, dos fatores orgânicos que determinam suas reações e o seu comportamento físico e intelectual, enfim, todos os problemas da educação se acham tão intimamente ligados ao estudo do organismo humano e das suas reações, que o ensino da biologia humana não podia deixar de constituir uma parte das mais importantes do curso normal graduado. Por sua vez as noções de higiene e puericultura, ministradas com caráter científico, são da maior relevância, não somente para utilidade das escolas primárias, como da população em geral, [...]. A criação da cadeira de psicologia educacional representa uma necessidade imperiosa. [...]. Não se compreende, com efeito, que a psicologia educacional, a cuja influência se deve a modificação do curriculum escolar, bem como a renovação dos métodos de ensino, deixe de constituir matéria de estudo nas Escolas destinadas à preparação de professores. A matéria prima da escola é a criança: o ensino a tem, a um só tempo, como instrumento e como fim (REGULAMENTO, 1928, p. 12). Tal era a importância atribuída ao papel da psicologia educacional que a ela devia-se tanto a modificação do currículo desse curso em Minas, quanto à necessária renovação dos métodos e das técnicas utilizadas nos processos de ensino e de aprendizagem, os quais deviam, então, passar a ser centrados na criança. Para ilustrar esse propósito, o legislador apresentou uma comparação no seguinte sentido: se numa escola de horticultura estudam-se temas relativos à vida das plantas, numa escola normal deve-se estudar sobre a natureza das crianças. E atribuiu tal idéia a Claparéde84.

Assim, ao longo das seis páginas seguintes são apresentados argumentos, comentários, análises e justificativas que giram em torno da necessidade de conhecimentos sobre as bases científicas em geral e, em particular, os da psicologia geral e educacional para se formar o bom professor. Ao fazer essa defesa desqualificava aspectos como a prática (rotineira) desvinculada da teoria (por isso repetitiva do tradicional, sem intervenção da inteligência), o dom ou a vocação para ser professor, assim como a intuição e o instinto. Entretanto, estes poderiam ter valor, se aliados ao conhecimento científico teórico, para assim embasar uma prática segura e inovadora, o que possibilitaria o progresso.

84 Édouard Claparède (1873-1940) é considerado um dos pioneiros no estudo da psicologia da criança, a partir de

um enfoque interacionista sobre a gênese dos processos cognitivos. Em 1912, fundou o Instituto Jean-Jacques Rousseau, junto com Pierre Bovet (1878-1965), com a finalidade de formar educadores, realizar pesquisas nas áreas de Psicologia e Pedagogia e incentivar as reformas educativas baseadas no movimento da Escola Nova [...]. O trabalho realizado no Instituto Rousseau desdobrou-se em atividades acadêmicas, integradas à Universidade de Genebra. As obras principais de Claparède foram traduzidas em diversos idiomas ampliando sua influência na formação de psicólogos e educadores, na elaboração das perspectivas teóricas que fundamentam a Pedagogia e a Psicologia contemporâneas e ainda influenciando outros estudiosos e teóricos, entre os quais Jean Piaget e Helena Antipoff (Cf. NASSIF, Lílian Erichsen & CAMPOS, Regina H. Freitas. (2005). Édouard Claparède (1873-1940): interesse, afetividade e inteligência na concepção da psicologia funcional. Memorandum, 9, p. 91-104.

Depreende-se que dessa forma contrapunha ensino tradicional e tendências escolanovistas. Essas, então vistas como representantes de um movimento científico, cujo carro chefe era a psicologia. Ao revelar a origem desse movimento, no sentido de conferir-lhe legitimidade, praticamente sintetizava as últimas ideias apresentadas.

Se quisermos encontrar a origem de todo esse movimento, que se assemelha a um ato de despejo de todas essas escolas adormecidas na sua prática e na sua rotina, deveremos nos dirigir, não aos práticos do ensino, mas ao Instituto Jean-Jaques, em Genebra, à Universidade de Bruxelas, às Universidades americanas, às universidades e Seminários da Áustria e da Alemanha, aos psicólogos, aos Kofka, aos Stern, aos Sprangler, aos Claparéde, aos Decroly, aos Dewey (REGULAMENTO, 1928, p. 17).

Embora o principal propósito desta seção seja tratar sobre a introdução da disciplina História da Educação, alguns parágrafos foram dedicados a comentar aspectos relativos a outras disciplinas. Para justificar essa inserção apresentamos a crença de que ambas as inovações disciplinares fazem parte de um mesmo processo: a tentativa de compreender o ser humano, quanto às suas dimensões individuais, espirituais e sociais, em face de um mundo que se tornava bastante complexo, em vista do acúmulo de conhecimentos produzidos e dos progressos materiais proporcionados pelo avanço das ciências e das técnicas. Naquele momento, a questão da identidade, seja pessoal ou social era primordial. E para essa compreensão, a psicologia e a história poderiam dar suas contribuições.

A cadeira de História da Civilização e da Educação que se criava por meio desse Regulamento do Ensino Normal surgia, conforme já assinalado, do desdobramento da cadeira de História do Brasil e Geral. Todavia não consistia em simples mudança de nomenclatura, pois pretendia reformular “o espírito” que até então tinha orientado o seu ensino e mudar o foco, quanto aos temas de estudo, cujos delineamentos transcrevem-se, na íntegra, a seguir:

Como v.exc. verá dos (sic) programas, a história da civilização se reduz ao estudo das forças que atuaram na formação das diversas fases da cultura, aplicando, neste ponto, ao estudo da história, o método genético, pois que o melhor meio de estudar e compreender um complexo, como seja o mundo contemporâneo, é o de investigar e estudar o processo da sua formação e do seu crescimento. [...]. Como muito bem observa Dewey, uma das partes mais desprezadas na história é a história intelectual, a saber, a história da adaptação e utilização das forças naturais em benefício da sociedade. Um dos mais importantes desses processos de adaptação e de utilização é, sem dúvida, a educação: somente a ela e aos descobrimentos científicos deve a humanidade essas formas evoluídas de associação e de cooperação, que caracterizam a nossa fase de cultura. [...]. O conhecimento dos métodos e processos do ensino, assim como dos seus resultados, só poderá ser

adquirido mediante a sua história, a história das suas tentativas, dos seus sucessos, das suas aplicações. A história da educação terá, ainda, a vantagem de incutir na inteligência dos professores a verdade, que nunca é demais repetir, de que somente a educação tornou possível a civilização do homem, que dela depende o seu presente, como dependerá o seu futuro, e que os povos que não cuidam da educação se acham, por isto mesmo, condenados a essas regressões históricas, de que não conservam a memória porque não deixaram testemunhos (REGULAMENTO DO ENSINO NORMAL, 1928, p. 18-20).

Esses aspectos levam ao entendimento de que, por meio da “cadeira de História da Civilização e da Educação” (rubrica simplificada usada nesta Exposição de Motivos, p. 18) dever-se-ia trabalhar a história sob um viés evolucionista, que abarcaria desde os tempos mais remotos do surgimento dos primeiros povos organizados (do Oriente e do Ocidente) chegando, por fim, até os tempos mais recentes: o século XIX e a I Grande Guerra. Entretanto, o eixo em torno do qual se desenvolviam tais conteúdos seria basicamente a história singular de grandes homens ou de fatos históricos considerados mais marcantes e que poderiam ser modelos de ação ou de realização. Ao lado das organizações políticas de cada povo abordado, destacavam-se aspectos relativos às diferentes religiões e seus líderes, assim como as características em termos de pensamento, educação e ciências.

Percebemos que, a história da civilização e a história da educação são consideradas disciplinas úteis para educação e a formação dos futuros profissionais, porque eram capazes de mostrar por meio de exemplos do vivido concretamente, por pessoas reais, tanto os erros quanto os acertos das gerações anteriores. Nesse sentido, no momento em que à ciência era atribuído valor inquestionável, essa possibilidade de se viver sem cometer retrocessos, isto é, em constante progresso, pautando-se nos fatos passados como testemunhos se revestia do mais alto valor, e se traduzia em um modo científico de se viver, uma vez que a sociedade, por meio da educação e da história, poderia alargar os conhecimentos sobre a vida, no tempo e no espaço e, assim, seria cada vez mais civilizada e teria algum domínio sobre a natureza em beneficio de si própria.

2.3.2 As finalidades da escola na perspectiva da reforma e do movimento