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A expressão no modo

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A segunda parte da Ética objetiva a explicação da natureza e origem da mente. Por ser a mente um modo do atributo pensamento que expressa a essência da substância, assim como o corpo expressa a essência da substância através do atributo extensão, Espinosa se dedicará também nessa parte a explicar o que é o corpo. Isso é feito abertamente na proposição 13: “O objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa.”

No entanto, vários raciocínios anteriores vão alimentar a noção de corpo e mente apresentada na proposição 13, pois Espinosa não deriva a ideia do corpo, nem o corpo da ideia, mas os compreende da forma como se articula o paralelismo, ou seja, a ideia que nós somos é para o atributo pensamento e para as outras ideias o que o corpo é para o atributo extensão e os outros corpos.

O corpo humano é uma composição de vários outros corpos, ou seja, coisas singulares que expressam a essência da substância através do atributo extensão, que se relacionam segundo leis mecânicas. Essas coisas singulares, cuja existência é finita e determinada, quando concorrem em função de uma mesma ação de modo que possam ser, juntas, compreendidas como a causa de um mesmo efeito, deverão ser, desta forma, consideradas, juntas, como uma coisa singular.90 Esse conjunto de corpos, entretanto, não existe em função de uma conexão interna subjetiva, mas sim depende de determinações de outros modos finitos para existir.

Os corpos estão sempre em movimento ou repouso e se movem, ora mais velozmente, ora mais lentamente. Os corpos se distinguem, portanto, pelo movimento e repouso e pela velocidade ou lentidão, mas de forma alguma pela substância. Os corpos concordam quanto a certos elementos, pois exprimem a essência da substância numa causalidade própria ao seu atributo. Além disso, seu estado de movimento ou repouso é determinado por outros corpos, que, por sua vez, também foram determinados por outros corpos. Os corpos podem submeter outros corpos ao movimento de diferentes maneiras. Os corpos simples, tal como descrevemos até aqui, funcionam dessa forma. Sua perseveração se resume ao estado de inércia. Eles são, entretanto, partes mais simples de corpos compostos que não figuram corpos indivisíveis ou elementares, ou seja, são partes mais simples que compõem partes de outros corpos mais complexos. Essa composição é sempre um indivíduo.

A composição das partes do corpo em partes duras, moles e fluidas determina sua capacidade de se relacionar com os outros corpos. O corpo humano é composto por muitas partes de naturezas diferentes.91 As partes que compõem o corpo humano, e, dessa forma, o próprio corpo humano, podem ser afetadas pelos outros corpos de muitas maneiras. Isso é fundamental para sua conservação, pois ele depende da renovação de suas partes. O corpo humano tem a capacidade de imprimir, nele mesmo e nos outros corpos, a modificação de suas partes em decorrência do choque entre corpos. Dessa forma, o corpo humano pode mover e arranjar os corpos exteriores de muitas maneiras e vice-versa, pois ele também sofre coação por parte dos outros corpos.

A demonstração da proposição 13 faz referência ao corolário da proposição 9 e explica que existe em Deus a ideia tanto das coisas quanto das relações entre elas. Se tudo que ocorre no objeto da ideia que constitui a mente é por ela percebida92 e, se o objeto da mente humana é o corpo humano,93 a mente humana será capaz de perceber tantas coisas quanto seu corpo for capaz de ser arranjado.94 As relações entre ideias de coisas singulares resultam em outras ideias. Todas essas ideias são envolvidas por Deus e pertencem à sua expressão. A substância contém, desta forma, a gênese de todas as ideias, pois envolve as ideias das coisas singulares que deram origem às ideias das coisas singulares que, por sua vez, deram origem às ideias das relações entre os modos.

91 O uso da palavra natureza, aqui, não se refere ao conceito de substância. 92 EII, prop. 12.

93 EII, prop. 13. 94 EII, prop. 14.

Espinosa não prova que o homem pensa, pois ele constata que pensa e adota isso como um axioma.95 Entretanto, o pensamento humano não é uma interioridade estável, mas sim uma constituição de vários modos do atributo pensamento, passíveis de variação e destruição. A ideia que constitui a mente humana é capaz de pensar e ser pensada, pois é um modo do atributo pensamento assim como a ideia de qualquer coisa finita existente em ato. Entretanto, não possuímos o conhecimento da ideia que somos senão enquanto afetados por outras ideias.

A origem dos modos, sejam corpos ou ideias, é atribuída a Deus enquanto ele é tomado como coisa extensa ou como coisa pensante. Essa origem não é instantânea, posto que tudo que existe responde por uma rede causal, e, portanto, são efeitos que possuem outras coisas singulares como causa. Todo modo finito é um efeito dependente, tanto da expressão da coisa à qual o conceito dele é dependente (substância), quanto das outras coisas finitas que respondem como causa de sua existência:

A ideia de uma coisa singular, existente em ato, é um modo singular do pensar, e um modo distinto dos demais (pelo corol. e pelo esc. Da prop. 8). Portanto (pela prop. 6), tem Deus por causa, apenas enquanto ele é uma coisa pensante. Mas não (pela prop. 28 da P. 1) enquanto Deus é, absolutamente, coisa pensante, e sim enquanto é considerado como afetado de outro modo do pensar, do qual Deus é igualmente causa enquanto é afetado de outro modo do pensar, e assim até o infinito. Ora, a ordem e a conexão das ideias (pela prop. 7) é o mesmo que a ordem e a conexão das causas. Logo, a causa de uma ideia singular é outra ideia, ou seja, Deus, enquanto é considerado afetado de outra ideia, da qual ele é igualmente a causa, enquanto é afetado de outra ideia ainda, e assim até o infinito. C.Q.D.96

Espinosa compreende a realidade como uma inesgotável rede que expressa a essência atual da substância. É essa rede causal que determinará as condições de produção e variação de potência de todas as coisas singulares. Entender a relação entre os modos finitos dos diferentes atributos da substância é uma tarefa extremamente complexa, mas que podemos organizar, aqui, de forma minimamente clara.

Os modos que exprimem a essência da substância o farão de infinitas formas, de infinitas maneiras, pela necessidade da essência eterna e infinita da substância. Entretanto, os atributos que exprimem a essência da substância em infinitas coisas de infinitas maneiras não o farão de forma fragmentada, mas sim expressarão a essência única, eterna e infinita da substância. Dessa forma, a essência da substância será exprimida pelas modalizações, como corpos e ideias, paralelamente, como já sabemos. Seguindo o mesmo raciocínio, corpos e

95 EII, axioma 2.

ideias produzirão efeitos necessariamente conforme a propriedade que expressam. Mesmo que a expressão não siga uma causalidade entre os atributos, Espinosa definirá a mente como ideia do corpo. Não se trata de uma ideia infinita, posto que é uma ideia de uma coisa singular existente em ato, ou seja, tem a existência definida e determinada por uma teia de causas e efeitos que a fazem existir de maneira definida e determinada, e, por essa razão, não pode ser uma ideia infinita, já que a sua essência não é infinita.

Essa é uma concepção contrária à moral tradicional, como já destacamos a respeito do paralelismo. Se tudo que é ação no corpo é também na alma, as paixões na mente serão também paixões no corpo.97 Não existe essa ruptura entre mente/alma racional e corpo corruptível.

Pela necessidade da produção infinita, o indivíduo surge como o resultado dos processos de modalização das coisas finitas. O indivíduo responde pelas composições e uniões dos modos de forma particular ao seu atributo, pois, como já esclarecemos, o modo de um atributo não pode ser causa do modo de outro atributo, ou seja, um modo do atributo pensamento não pode ser causa da existência ou modificação de um modo do atributo extensão e vice-versa. Contudo, o indivíduo não irá romper a correspondência dos modos finitos. Sendo assim, compreendemos o indivíduo como uma composição autônoma no atributo que exprime, mas que, ainda sim, tem a mesma substância expressiva como princípio.

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