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a fábula eSópica enquanto fonte hiStórica

No documento Esopo - Fábulas de Esopo (páginas 79-85)

A tradição esópica

4. a fábula eSópica enquanto fonte hiStórica

Ainda que estes textos, profundamente devedores à tradição popular, sejam parcos em informações que os permitam contextualizar, não raras vezes são-nos sugeridas pistas arqueológicas; sejam simples referências ao conhecimento popular de hábitos de determinados animais, sejam mesmo narrativas inclusivas de personagens históricas. Há no entanto que fazer uma salvaguarda importante: grande parte dos textos foram descontextualizados em função do momento em que são apresentados. Portanto, se a dado momento é referido um certo personagem como Diógenes em “F. 247. Diógenes em viajem”, tal não significa que o famoso filósofo cínico fosse originalmente personagem na tradição desta narrativa. Porém, uma vez que a moralidade se adequava à crítica antiga ao movimento cínico, um dos transmissores deste texto poderia perfeitamente, a dada altura, tê-lo usado como ferramenta para atacar este movimento e o seu mais famoso cultor. Note-se o carácter anedótico deste texto (cf. infra n.55)

Na verdade, este aspecto mutável e manuseável da fábula é uma das principais razões pelas quais é tão difícil traçar um história verosímil da fábula esópica. De resto, note-se esta simples incongruência: se Esopo fosse realmente o autor deste texto, como poderia ele comentar alguém que, segundo a tradição, vive dois séculos depois de si? Notamos que em nenhum momento está em causa o debate da autoria da obra e que apenas levantamos tal questão de modo realçar a sujeição da tradição fabular à adaptação e recreio temático. O

exemplo de Diógenes é um de entre os vários possíveis, pelo que o apresentamos apenas para realçar que a verosimilhança histórica não pode ser tida em conta na análise dos textos do conjunto que aqui tratamos.59

Retomando o ponto inicial, mas mantendo o exemplo, reparamos que existe um dado arqueológico nesta fábula. O texto serve-se do movimento cínico para reprovar um acto imoral, prejudicial para os homens de bem. Ora, tal denota um antagonismo que os seus praticantes gerariam na antiguidade. Ainda que não exista propriamente uma novidade nesta referência, dado que é famosa a desconfiança que os cínicos provocavam nos seus contemporâneos60, a

noticia desse facto é por si só um dado cultural. Certamente uma informação dada como adquirida na antiguidade, mas que quando recebida reporta um dado período histórico – ainda que largo e impreciso. De resto, não é de todo inverosímil que o próprio Demétrio de Faléron se esteja a manifestar, dado o seu período de vida coincidir com um momento de grande pujança do movimento cínico em Atenas.

Ainda que parca em informação que se expanda para além do objectivo da narrativa, a fábula dá notícias arqueológicas de alguns elementos do quotidiano, mesmo que estes não possam ser necessariamente enquadrados num restrito período histórico. Veja-se o exemplo da fábula “Os cães famintos” (F. 135). Aparentemente, é-nos dada notícia de um tratamento de curtição de peles. Ainda que, do ponto

59 A fábula ‘Démades, o orador (F. 63)’ faz-se outro exemplo

semelhante, tomando como personagem principal o orador ateniense Démades (350-315 a.C.).

60 Tome-se o exemplo da crítica aristofânica às actividades politicas dos

de vista factual, pouco ou nada acrescente sobre o que hoje se sabe acerca da antiguidade, a simples sugestão dessa actividade aproxima a fábula da realidade humana e por esse motivo a torna mais ‘reconhecível’ quanto ao universo que pretende representar. Está pois em causa uma simples e adquirida manifestação do quotidiano e senso comum de um determinado momento da antiguidade.

Todavia, é na conclusão da fábula (sentença) que o elemento histórico é mais perceptível, uma vez que estas sentenças pretendem por vezes adequar a moralidade da narrativa a um determinado contexto, ainda que esse mesmo contexto seja genérico. Veja-se a fábula “Os lobos e as ovelhas” (F. 153). Este texto nota o perigo de abandonar aqueles que trazem benefício em favor de circunstâncias inseguras. Tendo essa moralidade presente, a sentença final adapta a acção ao contexto político do momento histórico em que o texto é publicado. Nesta fábula é exposto o perigo de uma pólis ser prejudicada pela sua própria negligência para com os seus líderes. Esta é uma indicação genérica, sem referência a uma cidade concreta. Mas bastará recordar o célebre episódio da condenação de Alcibíades aquando da expedição ateniense na Sicília (414 a.C.), para se entender o quão perceptível seria esta fábula quando usada em contexto de discurso político no seio da pólis grega.

O elemento político é aquele que mais informação cultural transporta, no que diz respeitos às notícias de uma sociedade base para a produção da fábula. Nesse sentido, ao exemplo anterior poderíamos acrescentar a fábula “Os gansos e as garças” (F. 228), em cuja sentença existe novamente uma referência à pólis. A analogia com a narrativa comporta a concepção de uma realidade possível: a fuga de uma cidade sujeita à guerra – em nenhum momento é sugerido um

conflito interno ou potenciado por um invasor. Também é vincada a informação sobre a distinção entre os pobres e os ricos. Mais uma vez, nada de efectivamente relevante, dada a guerra e a discrepância sociais serem factos comuns nas sociedades antigas – um comentário igualmente extensível a todo e qualquer período da História. Todavia, estas coordenadas criam um fundo social para a produção da sentença. O contexto faz-se um dado histórico, sem que para isso seja necessário um balizamento cronológico ou uma geografia.

De resto, até figuras políticas concretas, como sejam os arcontes, podem ser referidas em função do seu comportamento político (F. 243). E também neste exemplo é a sentença a transportar a informação periférica à narrativa e a adequar a fábula a um dado contexto. Portanto, a fábula dá-nos notícia de uma determinada realidade genérica: uma sociedade politizada e com estruturas funcionais hierarquizadas (cf. F. 26).

A fábula pode também referir uma geografia precisa, como é o caso da referência ao rio Meandro e à cidade de Mileto na fábula “As raposas no rio Meandro”(F. 232). Neste texto a alegoria é montada sobre um cenário concreto e humanizado – a raposa afirma levar uma mensagem para a cidade. A fábula transmite-nos assim dois dados de referência para a sociedade receptora: o sinuoso rio Meandro e a cidade de Mileto.

Da geografia para a medicina, o mesmo pode ser dito da fábula “O doente e o médico” (F. 170). Aí são referidos sintomas de um determinado padecimento e a consequente análise de um médico (ἰατρόc) a propósito. Neste caso, uma diagnóstico negligente baseado no aspecto exterior do enfermo. Para além de ser notada a relação médico/paciente,

há uma constatação da falibilidade da medicina antiga. Mais uma vez, não está em causa uma novidade arqueológica, antes uma referência ao quotidiano e a localização da acção num mundo real.

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