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3 O DNA E A GENÉTICA FORENSE: A CIÊNCIA A SERVIÇO DA JUSTIÇA PARA A SOLUÇÃO DE CRIMES VIOLENTOS

3.2 A face do sistema de perícias no Rio Grande do Norte

A temática das condições da perícia no Brasil, em razão da extrema precariedade verificada, recebeu destaque pela mídia nacional através da produção do documentário “Desafios da Segurança Pública no Brasil”, exibido pelo programa Fantástico14, da Rede Globo de Televisão.

A produção partiu do relato de aumento vertiginoso da taxa de homicídios na capital do estado do Rio Grande do Norte, que passou de 10 para 70 mortes por

14FANTÁSTICO - Desafios da Segurança Pública no Brasil, exibido em 29/04/2018 consistiu

em uma reportagem em que se evidenciou a situação da perícia criminal e a atuação da polícia ostensiva em alguns estados do país, como fatores preponderantes para os crescentes níveis da criminalidade.

cada 100 mil habitantes, observadas, principalmente, em virtude da disputa de facções criminosas pelo mercado do tráfico ilícito de entorpecentes.

O documentário demonstra que no Instituto Técnico de Perícia do Estado não há laboratório de DNA e nem programa de computador para análise de impressões digitais, de modo que as digitais coletadas nas cenas de crime são comparadas manualmente pelos peritos que somam, em todo o estado, a quantidade de 23 profissionais.

A reportagem ainda mostrou a situação de peritos que se sujeitam a laborar em suas residências, devido à ausência de infraestrutura nas unidades do ITEP/RN, os quais relatam a insatisfação em executar suas funções dadas as referidas condições.

Ainda em torno da temática da Segurança Pública, há outra reportagem elaborada pelo Fantástico, alusiva a mesma realidade já explanada, na qual também se narra as condições em que se desenvolve a investigação no país. O relato se intitula “Situação da perícia criminal no Brasil”15.

A produção retratou a atuação de peritos que trabalham in loco, ou seja, que colhem, na cena do crime, o material a ser periciado, sem o subsídio de auxiliares de perícia e muitas vezes até sem motorista para efetuar a condução do perito ao local da ocorrência.

Foi relatado, também, o posicionamento da Associação Brasileira de Criminalística, que considera o número de peritos no Brasil insuficiente, apontando que deveria haver, no mínimo, 38 mil profissionais em atividade, no entanto, o país conta apenas com 6,5 mil agentes, quantidade quase seis vezes menor que o ideal, que seria de perito 01 para cada 30 mil habitantes.

A situação chega a ser extrema quando se observa que perante a ausência de equipamentos básicos, tais como uma câmera fotográfica, não é possível dar cumprimento às diligências indispensáveis à investigação, paralisando o curso de inquéritos que resultam em casos sem solução, sendo arquivados pois insuficientes para embasar uma denúncia.

O mais preocupante é que não se está diante apenas da ausência de maquinário moderno e ferramentas avançadas, mas da carência de recursos

mínimos tais como impressora, tinta e papel para que os peritos possam registrar os pareceres.

Em decorrência da impossibilidade de se proceder a perícia de coisas e pessoas, os objetos, que deveriam ser restituídos e corpos que deveriam ser identificados e entregues às respectivas famílias, continuam se acumulando nas instalações das unidades de perícia, reduzindo mais ainda a capacidade de alocar equipamentos e funcionários.

No estado do Rio Grande do Norte, a situação do Instituto Técnico-científico de Polícia tem sido objeto de diversas portarias e inquéritos civis instaurados pelo Ministério Público estadual.

A partir de denúncia recebida pelo órgão ministerial16, foram realizadas inspeções nas dependências do ITEP, oportunidade na qual se constatou o acúmulo de cadáveres, acondicionados sem a estrutura correta, muitos em estado de decomposição e sem identificação, bem como o atraso na confecção de laudos.

Em decorrência da instauração de inquérito civil para apurar as irregularidades, o ITEP/RN manifestou-se emitindo a portaria de n° 021/2019 (ANEXO A), veiculada através do Diário Oficial do estado do Rio Grande do Norte, na qual restou determinada a realização de um mutirão para a regularização e identificação de corpos e elaboração de laudos.

Nesta toada, a obsoleta legislação processual, acompanhando o progresso que há certo tempo já é realidade em outros ordenamentos jurídicos, e com o desiderato de modernizar o procedimento de identificação criminal, adotou o procedimento de identificação através da extração do perfil genético, editando-se a lei 12.654, de 2012 que previu a utilização desse método.

Segundo o novo diploma, o material genético do indivíduo poderá ser extraído em duas situações diferentes, a fim de identifica-lo criminalmente: (a) na fase investigatória e (b) na execução da pena. O ato atinge, consequentemente, tanto o investigado/acusado quanto os condenados. Não obstante, é notável que a intenção da coleta é diversa, dependendo da situação processual em que se enquadra: se

16 Notícia publicada em 27 de janeiro de 2019, pelo jornalista Everton Dantas no site OP9,

afirma que Portaria publicada em 26/01/2019 no Diário Oficial, com o objetivo de buscar soluções para a melhoria da estrutura do setor de antropologia forense do ITEP/RN, de autoria do promotor Vitor Emanuel de Medeiros Azevedo, que atua junto à 19ª promotoria de justiça da comarca de Natal/RN, constatou a existência de, pelo menos, 79 corpos acumulados nas instalações do ITEP, sendo dezenas de corpos esqueletizados, semiesqueletizados ou mumificados.

a extração do perfil genético acontecer na fase investigatória, o DNA servirá de prova para um caso concreto e determinado, isto é, para um delito que já ocorreu; de outro viés, se a extração se der na execução da pena, o DNA que se encontrará em um banco de dados genético, será útil para casos futuros, em que se desconheça a autoria criminosa (GIONGO, 2016, p.379).

A respeito do tema, inaugurou-se uma discussão em torno da Lei 12.654, de 2012, em dois sentidos. O primeiro, diz respeito ao alcance da informação obtida a partir da análise do perfil genético, precipuamente de sua utilização como prova no processo criminal.

Nada obstante essa previsão, em que pese a aludida lei disciplinar o procedimento de identificação de suspeitos enquanto uma obrigação a ser desempenhada pelo poder público, nos casos em que não houver outro meio de obtenção da identidade de uma pessoa submetida à investigação, a coleta desse material deve observar o consentimento do suspeito para fins de utilização da informação genética como prova no processo penal.

Consubstancia o direito fundamental à não autoincriminação, o qual, se por ventura, restar maculado, enseja o reconhecimento e decretação da nulidade da prova, ante o método empregado na extração, que irá configurar o vício desse procedimento.

O segundo ponto de debate gravitou em torno da cogência dos mandamentos desse diploma legal, se seriam normas de recomendação, a serem seguidas de acordo com o senso de oportunidade e conveniência da administração pública de cada estado da federação, ou seja, uma competência discricionária, ou se seriam normas que impõe a implantação de seu conteúdo.

Sobre esse aspecto, passaremos à análise de uma situação judicializada no estado do Rio Grande do Norte na qual se discutiu a respeito do tema.

O Ministério Público do Rio Grande do Norte ajuizou, no ano de 2012, ação em face do Estado do Rio Grande do Norte, objetivando a condenação do requerido ao cumprimento da Lei 12.037, de 2009, que posteriormente foi pela alterada pela Lei 12.654, de 2012, no tocante à identificação criminal de acusados, por meio fotográfico, datiloscópico e genético.

O poder executivo estadual alegou, em sua defesa, a ausência de peritos nos quadros da polícia civil, bem como aduziu que a realização desses

procedimentos não figura entre as atribuições de delegados, agentes e escrivãos da polícia.

Afirmou ainda que a Lei 12.654, de 2012, que prevê coleta de perfil genético como forma de identificação criminal, institui apenas uma faculdade e que, portanto, não teria o condão de vincular o poder público a realizar a identificação criminal através desses meios.

Em 26 de agosto do ano corrente, a 1ª Vara da Fazenda Pública de Natal/RN proferiu decisão, posicionando-se pela obrigatoriedade de implantação da identificação criminal, nos moldes da Lei 12.037/ 09.

No dispositivo restou consignada a determinação ao Estado do Rio Grande do Norte de realizar o procedimento de identificação criminal por meio datiloscópico e fotográfico em todas as unidades da Polícia Civil, incluindo na lei orçamentária subsequente ao trânsito em julgado da sentença a rubrica necessária à compra dos equipamentos necessários ao cumprimento da obrigação.

O entendimento foi assentado sob o argumento de que a ausência da identificação criminal traz embaraços à atividade jurisdicional além da possibilidade de violação do direito fundamental à liberdade, fazendo alusão ao art. 313 do CPP17 que autoriza da prisão preventiva em caso de dúvida acerca da identidade civil da pessoa. Foi mencionada, ainda, a Lei de Execuções Penais (7.210/84)18 que traz a

17 Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão

preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

IV - (revogado). (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011).

Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

18 Art. 9o-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza

grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor. (Incluído pela Lei nº 12.654, de 2012).

previsão da coleta de material genético do indivíduo para fins de criação de banco de dados contendo informações sobre perfis genéticos.

Todavia, a decisão somente fez alusão à obrigatoriedade que a referida lei impõe quanto aos métodos de identificação a serem adotados pela polícia. De tal sorte, o mesmo não se aplica às ferramentas utilizadas para a realização de perícias em geral, pois, em razão de inexistir disciplina legal, admite-se que nesta seara prepondera a competência discricionária do poder público.

É certo que a Lei 12.654/2012 não possui alcance sobre a confecção de conjunto probatório de perícia, nem poderia fazê-lo uma vez que é taxativa ao disciplinar apenas o procedimento de identificação do indiciado.

O tema é controverso e divide opiniões entre doutrinadores, quanto à extensão que esse material pode alcançar na seara criminal e se o material colhido para a identificação poderia ser utilizado como meio de prova, bem como se esta prova seria considerada lícita diante da garantia da não autoincriminação.

Temos que a autodefesa é um direito disponível, de modo que é facultado ao acusado fornecer material biológico ou colaborar de outras formas com a investigação. Contudo, havendo recusa, se instaura uma divergência doutrinária a respeito da possibilidade de coerção para a realização do exame.

Para Lopes Jr (2005, p.356), é preciso se nortear pelos princípios constitucionais e processuais, tal como o da presunção de inocência, não podendo a autoridade proceder à coleta contra a vontade do suspeito. Nas suas palavras, “submeter o sujeito passivo a uma intervenção corporal sem seu consentimento é o mesmo que autorizar a tortura para obter a confissão no interrogatório quando o imputado cala, ou seja, um inequívoco retrocesso”.

Na perspectiva de Nunes (2015, 508-517), embora o acusado não possa ser compelido com o emprego de força a fornecer material biológico para exames, endossando o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, tal direito não é absoluto. Nada obstante essa garantia seja bastante alargada no ordenamento

§ 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo. (Incluído pela Lei nº 12.654, de 2012).

§ 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético. (Incluído pela Lei nº 12.654, de 2012).

jurídico brasileiro, na maioria dos países, se restringe o direito do acusado de não auto incriminar-se.

Nunes traz a distinção entre a produção forçada de prova e aquela que é produzida, voluntária ou involuntariamente, ainda que para outro fim. Ressalta que, por mais que não se admita que alguém possa ser submetido à força a realizar exame de DNA, nada impede que os elementos necessários sejam obtidos de outras formas. Neste prisma, podem ser apreendidos fios de cabelo da pessoa contidos em roupas; sangue doado; cutículas; saliva rejeitada em recipientes, dentre outros.

Acontece que, o que o texto constitucional proíbe é que a pessoa seja forçada a produzi-la. Porém, se a pessoa produz o material para prova, esta pode, ainda que contra a sua vontade, ser utilizada para incriminá-la. Para Nunes, essa posição expressada pelo STF se apresenta acertada.

Retomando ao foco da decisão exposta, como já mencionado, não é objeto de discussão a constitucionalidade da obrigatoriedade da identificação criminal por análise de DNA, de modo que a aludida decisão nos foi útil para fins de ilustração do crítico quadro de condições do Instituto Técnico-científico de Perícia do estado do Rio Grande do Norte. Entretanto, em que pese não seja a intenção discutir acerca do referido instituto, é conveniente salientar que tal coleta, coercitiva ou não, demanda que a extração deverá ser feita da maneira menos invasiva e indolor possível.

Desse modo, de acordo com o que restou evidenciado, é latente o estado de coisas inconstitucional que se tem em relação à perícia no referido estado, o qual reflete a situação da maior parcela dos estados do país, pelo que, diante de um cenário em que não se tem condições de se executar garantias que visam a proteção da liberdade e, que também atuam como políticas de segurança pública, está configurada a urgência na intervenção estatal para sanar essa situação.

4 IMPLEMENTAÇÃO DE NOVAS FERRAMENTAS E TÉCNICAS AO