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1.2 Panorama da Questão Agrária no Brasil

2.1.3 A fase da “institucionalização defensiva” dos movimentos sociais

Um conjunto de derrotas imprimidas à classe trabalhadora, seja pelas forças da burguesia, seja pelas opções políticas e teóricas das direções do proletariado em uma socialidade fetichizada pelo capital, exerceram profunda influência no processo de recuo da luta revolucionária às esferas do cotidiano e ao ativismo político.

O caráter contestatório que foi perdendo vigor e abrindo espaço a forças sociais preocupadas com a construção de condições melhores de vida dentro dos marcos do capitalismo foi um indicador do abandono paulatino da via revolucionária. Em seu lugar, a introdução de bandeiras de luta tendo como consignas a cidadania, as políticas públicas, o desenvolvimento e a luta institucional em si que, juntamente as teorias emergentes em meados da década de 196063, apontavam para a suposta superação das teses materialistas históricas de explicação e atuação na realidade social.

Com a derrubada do muro de Berlim (1989) e o fim da URSS (1991), demarcou- se a quebra do equilíbrio estabelecido ao final da segunda guerra mundial pelos acordos entre Stalin (URSS) e Roosevelt (EUA), provocando instabilidade em todos os regimes - no Leste e no Oeste - o que causou profundos abalos na orientação do rumo, estratégias e táticas das lutas dos trabalhadores em todo o planeta. Velhas crenças foram destruídas, antigos dogmas foram demolidos e deixaram militantes e intelectuais atônitos sobre o que ocorreu e o que fazer dali para frente. Com base nestes fatos escrevia Júlio Turra no calor dos acontecimentos:

63 O multiculturalismo, a teoria do agir comunicativo; o construtivismo; o existencialismo, são algumas destas tendências.

As relações entre as classes, entre partidos e governos estão sendo profundamente modificadas. Os partidos comunistas, ligados à manutenção dos privilégios e da autoridade reinante em Moscou, são incapazes de explicar que a crise mortal e irreversível do stalinismo não é a crise do comunismo e do socialismo. (TURRA, 1990, p. 2)

Nas décadas de 1980 e 1990 também são marcadas pela falência do Estado de bem-estar-social na Europa. O atendimento dos Estados Europeus às políticas mais amplas da população passou a ser paulatinamente substituído pela precarização dos serviços públicos.

Para manter sua hegemonia de classe e a estabilidade política para a fluidez da reprodução do capital, é fundamental à burguesia evitar conflitos de qualquer ordem. Neste sentido, nos anos 1990 uma nova orientação é dada para o enfrentamento das chamadas “questões sociais”: a focalização das políticas sociais em determinados grupos, ao invés de políticas universais.

Desde o ano de 1968, com a nomeação de Robert McNamara para diretor do Banco Mundial, cargo que ocupou até o ano de 1980, esta instituição financeira se converteu no principal organismo internacional da direção e financiamento das chamadas reformas sociais sob a ordem do capital. De acordo com Leher,

governos “sensatos” passaram a encampar a agenda do Banco Mundial como se fosse a sua própria agenda. Com efeito, um governo somente é avaliado como de „boa governança‟ se as suas políticas coincidem com as do FMI, do Banco Mundial e da OMC (não casualmente as mesmas preconizadas por Washington) (LEHER, 2005, p. 2)

Os estudos de Leher (1998 e 2005) e Segundo (2007) indicam que o conjunto da análise, formulações e execuções de políticas promovidas pela UNESCO e Banco Mundial acerca da problemática da sociedade atual, dentre elas a educação, corresponde a uma resposta às metas para que o mundo capitalista prossiga em sua trajetória acumulativa sem riscos de crises. Leher é enfático ao afirmar:

Atualmente a prioridade do organismo é atuar na “despolitização” da

reforma agrária, inserindo-a no escopo do capitalismo agrário, e atuar

na educação de jovens e adultos nas periferias, na educação do campo e na ação junto às chamadas minorias étnicas, sustentando que o problema da miséria imposta aos negros e aos povos indígenas não tem relação com a condição de classe – como se a classe social não tivesse cor na América Latina – sendo uma questão restrita a identidade e à cultura. (LEHER, 2005. p. 06. Grifos meus)

Não por acaso há uma forte divulgação e íntimas relações entre os objetivos das agências internacionais e as políticas e teorias no âmbito educacional elaborado tanto na

acepção direitista, quanto nas formulações da esquerda pós-moderna. Essa última, como analisei na primeira parte desta tese, no afã de valorizar as culturas, os saberes, o cotidiano em nome de uma “nova” ciência que dê voz aos povos oprimidos, ofereceram uma teorização subjetivista e relativista da realidade.

O novo sindicalismo, os novos movimentos sociais, ONGs e setores majoritários do Partido dos Trabalhadores na atualidade apostam nos acordos e na ocupação do Estado a todo custo alimentando o slogan da melhoria das vidas das pessoas por meio dos projetos, programas, legislações e participação popular.64

O Estado passa a dividir sua gestão com as instituições não-governamentais, inclusive sindicatos e movimentos sociais. A expansão das ONGs se consolida ao passo que as famigeradas parcerias e prestação de serviço destas entidades com o poder público se ampliam. Assim, estas organizações tornam-se cada vez mais governamentais e gestoras de vultosos recursos públicos.

Alega-se que o serviço prestado pelas ONG‟s é menos burocrático e mais rápido do que os realizados tradicionalmente pelas instituições estatais. Mas no fundo, esta é expressão da crise geral do capital que reduz e burocratiza o Estado para o atendimento às necessidades da classe trabalhadora e amplia e torna mais ágil a resolução das demandas da classe dominante, como sempre foi característico desta instituição.

É neste sentido que Ridenti (2006) diagnostica que os movimentos sociais na atualidade vivem a fase de “institucionalização defensiva”. Isto é, ao passo que a burguesia busca retirar os direitos conquistados pelas lutas dos trabalhadores, a resistência, especialmente dos sindicatos, se colocam na defesa dos direitos já conquistados, abrindo mão de avançar para reivindicações mais arrojadas, inclusive para além dos limites corporativos das categorias.

Os anos de rebaixamento dos programas por parte das direções dos movimentos sociais, bem como toda a sorte de cooptações do capital a estas organizações reduzem a resistência mais consistente fazendo com que o Estado burguês paute a agenda da luta de classes, deixando os movimentos sociais e sindicais na defensiva. É neste contexto que emerge o Movimento por uma Educação do Campo.

64 Não se trata de ser contra as conquistas ou lutar pelo direito dos cidadãos. Mas sim, a crítica aqui empreendida diz respeito à estratégia e táticas da esquerda em relação ao Estado, sua conivência e incorporação das lutas ao institucional, sem maiores críticas ou explicação aos trabalhadores do que ele significa. Além da crença de que está na conquista de postos no Estado a grande alternativa para a realização das mudanças na vida dos indivíduos.

2.2 O Movimento por uma Educação do campo e as idéias pedagógicas de esquerda

O Movimento por uma Educação do Campo será aqui analisado em relação à trajetória dos movimentos sociais no Brasil considerando os seguintes aspectos: a) a intensificação da luta de classes no campo nos anos 1990; b) a concepção basista do comunitarismo cristão; c) a fase de institucionalização defensiva dos movimentos sociais; d) as interpretações idealistas (cristãs e leigas) acerca do problema agrário; e) as teorias pedagógicas contra-hegemônicas que fundamentam a educação do campo (Pedagogia da Educação Popular e as Pedagogias da prática); f) a influência das teorias pedagógicas hegemônicas ligadas ao (neo) escolanovismo e ao relativismo cultural e epistemológico.

Indubitavelmente, no âmbito dos enfrentamentos concretos da luta efetiva pela terra e pelas transformações sociais para além do capital, os movimentos do campo desde os anos 1980, ocupam um lugar de grande relevância, sobretudo o MST. Sem estes movimentos aguerridos, a luta pela reforma agrária estaria num patamar inferior ao que está na atualidade. Além disso, estes movimentos pautaram e conseguiram apoio em seus projetos educacionais na modalidade de educação de jovens e adultos, educação básica e educação superior fazendo com que milhares de trabalhadores do campo acessassem o conhecimento científico.

Por outro lado, ao analisar os fundamentos teóricos sobre os quais os movimentos do campo se apóiam, identifica-se um ecletismo que vai do pretendido marxismo às interpretações dos fatos histórico-sociais à luz da agenda pós-moderna. O ecletismo se intensifica ainda mais quando se trata dos projetos e formulações pedagógicas hegemônicos no Movimento por uma Educação do Campo, como bem analisou Oliveira (2008). Roseli Caldart, por exemplo, ao tratar da questão dos fundamentos teóricos da Educação do Campo, afirma:

Destaque-se que não se trata de discutir “filiação teórica”, ou que autores “seguimos”. A questão é mais profunda, e diz respeito a relação entre teoria e prática; diz respeito ao necessário movimento da

práxis. A questão e o momento exigem que pensemos em perspectiva:

a Educação do Campo na relação com a educação, ou com o debate/ a prática da educação contemporânea. No fundo parece que está na hora de se perguntar: o que significa a emergência da Educação do Campo no contexto atual da educação contemporânea, e especialmente no Brasil? Ou de maneira mais direta, até que ponto representa (ou sinaliza) um contraponto à concepção liberal de educação, hoje hegemônica? (CALDART, 2008, p. 76-77).

Pode-se dizer que para Caldart o problema da opção teórica, não da teoria, é uma questão menor e menos profunda. Deste modo, sua concepção acompanha a tendência relativista e do recuo teórico contemporâneo presentes em autores articulados à agenda pós-moderna. Mas essa posição está presente, também, em algumas tendências não- dominantes na docência e em formulações dos movimentos sociais em sua fase basista que não vêm problemas em unificar teorias com princípios, métodos e finalidades divergentes.

Dois anos mais tarde, em 2010, Caldart afirmou:

Queremos estudar os fenômenos ou as questões da vida em toda sua complexidade, tal como existem na realidade (ainda que não apreendidas assim na vivência cotidiana ou nas aprendizagens espontâneas). Precisamos, portanto, de uma abordagem do conhecimento que dê conta de compreender a realidade como totalidade, nas suas contradições, no seu movimento histórico. Por isso, o materialismo histórico-dialético é nossa referência principal

e a obra da Marx um bom exemplo aos educadores de como e em

que perspectiva trabalhar com o conhecimento científico. (CALDART, 2010, p. 81. Grifos meus)

O anúncio do materialismo histórico-dialético e a obra de Marx como referência principal da educação do campo, segundo a citação acima, não impede que as referências secundárias, digamos, sejam diametralmente opostas ao Marxismo em seus fundamentos, métodos e objetivos. Nas formulações no interior do Movimento por Uma Educação do Campo, como analisarei adiante, estão presentes as pedagogias do “aprender a aprender” em suas vertentes neo-escolanovistas como o construtivismo e as pesquisas na linha do professor reflexivo. Além disso, o multiculturalismo (por meio da defesa da educação para a diversidade) e a teoria da complexidade de Edgar Morin, ambas integrantes da “agenda” pós-moderna, são anunciados com frequencia em alguns dos projetos de Licenciatura em Educação do Campo analisados.

Para localizar a Educação do Campo no quadro das teorias pedagógicas contemporâneas, pode-se dizer que ela se encontra no âmbito das tendências contra- hegemônicas em educação. Estas guardam uma heterogeneidade que vai “desde os liberais progressistas até os radicais anarquistas, passando pela concepção libertadora e por uma preocupação com uma fundamentação marxista.” (SAVIANI, 2007, p. 414). Portanto, no amplo leque das pedagogias contra-hegemônicas, cabem tendências variadas que não se caracterizam apenas por um perfil revolucionário ou Marxista. A expressão mais apropriada para tratar estas tendências seria “pedagogias de esquerda”, com toda a amplitude que possa ter este termo, como pondera Snyders (1974).

No interior destas tendências emergem duas modalidades que se distinguem. Uma está centrada no saber do povo e na autonomia de suas organizações sendo a educação escolar considerada um instrumento de opressão da formação humana porque oriunda das necessidades da formação de quadros para a reprodução do capital. Para estas tendências, a ciência e a filosofia não podem ser classificadas como mais avançadas do que os saberes empírico-cotidianos do povo. Afirmar isto seria, de acordo com esta vertente, desconsiderar que o povo possui uma racionalidade própria e diversa, não havendo conhecimentos que se aproximem mais ou menos da realidade. Desta feita, propõem uma educação autônoma, à margem da estrutura escolar. A outra modalidade das pedagogias contra-hegemônicas se pauta na centralidade da educação escolar, valorizando o acesso das camadas populares ao conhecimento em suas formas mais desenvolvidas como forma de fazer avançar a luta pela superação da sociedade capitalista. (SAVIANI, 2007, p. 415).

Na primeira modalidade encontram-se, dentre outras, as Pedagogias da Educação Popular, a Pedagogia da Prática, as Pedagogia do Campo. Na segunda têm-se a Pedagogia Histórico-Crítica e a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos.

Na trilha destas questões passo a analisar as teorias contra-hegemônicas de maior destaque e que dão lastro teórico ao Movimento Por Uma Educação do Campo, a saber: as Pedagogias da Educação Popular, especialmente a proposição freireana; as pedagogias da prática e as Pedagogias do Campo, com destaque às formulações pedagógicas do MST, das Escolas Famílias Agrícolas e da educação contextualizada na perspectiva da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB). Mas é importante destacar que há ainda as influências das pedagogias do aprender a aprender, portanto das teorias hegemônicas em educação, nas formulações acerca da formação dos educadores do campo.65