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CAPÍTULO 6 – AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTERATIVAS DA EXPOSIÇÃO

7.3. A PROPRIAÇÃO : A RECRIAÇÃO DA AÇÃO CULTURAL

7.3.2. A Festa

A festa foi ótima, tava todo mundo alegre, divertido… serviram umas bebidinhas lá, a gente tomou…

Dona Sildéia

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A inauguração do Centro Cultural estava marcada para as 17 horas do dia 8 de dezembro de 1998. Na semana anterior, havíamos – “curicacas” e cambaraenses – nos dedicado exclusivamente para a organização da Ação Cultural, montando a exposição, ensaiando a performance e preparando a iluminação. Até as últimas horas que antecederam a abertura da Casa estávamos envolvidos com a preparação dos últimos detalhes.

A festa era, para nós “curicacas”, uma estratégia da Ação, pois significava um momento importante de apropriação do espaço cultural pela comunidade cambaraense. Dentro dela, a performance era o ponto culminante. Algumas pessoas vieram de Porto Alegre para a festa em um ônibus fretado e desde cedo percebia-se uma movimentação diferente na cidade. A preparação dos quitutes da festa coube à comunidade.

Por volta das 16 horas já se viam pessoas reunidas na praça em frente à Casa. Depois de um discurso de abertura, todos foram convidados para as apresentações de danças do grupo “Herdeiros da Tradição” no piso superior. A performance era ainda uma surpresa que só os familiares mais íntimos de Silvana sabiam que iria acontecer. Como conta Suzana, sua irmã: “então começaram a entrar e entrar, e a gente pra conseguir chegar lá em cima, tivemos que pedir... a vó dizia: - É minha neta!, espere, quero ver minha neta!”

No paradigma da modernidade, seguindo o pensamento cartesiano, a ludicidade, a diversão e o contentamento passaram a ser considerados como obstáculos à reflexão, à disciplina e ao conhecimento, sendo proibidos, ignorados ou confinados a momentos e locais determinados. Esta característica, predominando nas escolas, sindicatos e partidos, enrijeceu as relações educacionais e políticas perdendo-se, assim, muitas das potencialidades críticas, transgressivas e sensíveis presentes na dimensão humana do prazer.

Boaventura Santos discute o potencial emancipatório nas festas e nas brincadeiras que reside na auto-reflexão e no antidogmatismo do riso e da invenção. Ele lembra, por exemplo, como a festa barroca e o carnaval nas antigas colônias foram, a princípio, ricamente revolucionários, momentos únicos de sociabilidade e de

crítica, nos quais o povo parodiava os representantes do poder.187 Na convergência deste pensamento, Jorge Larrosa defende o riso não como uma dimensão exterior, oposta ou protegida da seriedade, mas como o outro lado da moeda, vital, dialógico e necessário a fim de se evitar a rigidez do pensamento. Comparando o riso a um chapéu de guizos, ele diz:

O chapéu de guizos é o que põe a nu que toda roupagem é máscara, que todo rosto é máscara, e impede que as máscaras, crentes de si mesmas, se solidifiquem e se ressequem. E essa é sua contribuição para a aprendizagem: não a destruição das máscaras, mas o reconhecimento de seu caráter de máscaras e o impedimento que se grudem completamente. O chapéu de guizos da agilidade permite que a consciência continue fazendo piruetas. E, então, o baile de máscaras converte-se em uma alegre dança.188

Os momentos de festa, divertimento, contentamento e de auto-ironia permitem um distanciamento da realidade, afrouxam as amarras da consciência e desfazem a convencionalidade, a disciplina e as certezas do cotidiano. Há em comum no posicionamento desses dois autores a necessidade de uma nova concepção da subjetividade, do posicionamento e da interferência no mundo que ponha em cheque a atitude austera, fechada e dogmática da política e da educação e que seja mais aberta, irreverente, mas não menos inquietante e subversiva. Eles, assim como Calvino189, sugerem de certa forma o exercício da leveza como uma qualidade necessária para o próximo milênio. A prática da ludicidade, da estética e do prazer, contudo, não deve ser encarada como um instrumento de conscientização, uma mera tática para a aprendizagem e a indução de novos comportamentos, mas como uma das faces do conhecimento e do desenvolvimento humano. A revalorização dessas dimensões faz parte da transição paradigmática que estamos vivendo, são uma forma de “emancipação da subjetividade”, nos termos de Boaventura. Com este propósito, a festa de inauguração da Casa

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SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, v.1, 2001, p. 363-366.

188

LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998, p. 225-226.

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cumpriu, em primeira instância, a função de privilegiar o prazer e a surpresa na Ação Cultural.

Além disso, uma festa é sempre um momento em que se fortalece um grupo social, pois é um motivo de reunião. Como tal, não é só um acontecimento presente, mas compreende todas as horas de preparação, expectativa e os momentos posteriores a ela. Na seqüência de declarações abaixo as pessoas enfatizam suas presenças e mostram como foram na festa:

Fabiano: A mãe foi comigo olhar as foto, e os três irmão. Kauê: Eu fui. Com todo mundo.

Fabiano: Eu voltei umas quantas vezes.

Dona Eneida Teixeira: Eu fui com amigas daqui, com a Zeli da pousada,

depois com a Terezinha e achei muito bonita aquela declamação da Silvana, é... muito bonito aquilo.

Seu Irineu: Eu tava ali! Eu achei bonito, bem importante!

Samara: Eu não fui, porque eu lembro que a gente tinha ensaio do coral

para ir cantar na igreja, aí como era bem no horário da inauguração, a gente teve que ir para a igreja.

Samira: Eu dei uma escapadinha antes de ir para igreja. Eu fui sozinha!

Daí eu fui, né? Não tinha ninguém para ir comigo, daí eu digo: ‘Já que eu

participei do Projeto, pelo menos eu tenho que ir, pelo menos para olhar, né?’

A partir dessas declarações, pode-se perceber que o fato de estar presente e de ir junto com outras pessoas para a festa foi uma oportunidade importante de fortalecerem-se os vínculos afetivos, de prazer e de participação. Vale a pena lembrar que durante todo o Projeto de Desenvolvimento Sustentável, houve um movimento de formação e organização de diferentes forças participativas na comunidade, como a Associação dos Artesãos, a ACAPI (Associação Cambaraense de Apicultores) e a ACONTUR (Associação de Condutores de Ecoturismo). Como já foi visto, a apropriação associa-se à capacidade de participar.190 Através de experiências culturais, políticas e sociais, afirma-se a condição de refletir e decidir sobre a vida comum. Nas práticas participativas, cruzam-se interesses diversos,

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fortalecendo-se, através das ações, das lutas e dos conflitos, o sentido de coletividade. Lembrando a reflexão de Maristela Fantin:

O processo de participação popular é um processo de construção, disputa e reconstrução da capacidade, do saber, da dignidade e da cidadania dos grupos marginalizados. A experiência de participação é entendida como aproximação com outros valores, culturas, conhecimentos e práticas. Resulta em trocas que potencializam a apropriação191 de novas práticas,

com maior coerência entre o projeto da cidadania e o seu fazer cotidiano.192

Mesmo que as formas de participação não tenham um conteúdo político ou de organização da sociedade civil de forma explícita, como na participação da festa, permanecem os aspectos levantados pela autora, pois aqui também refletiu-se a diversidade de indivíduos e grupos que circularam no espaço da Ação Cultural e houve a reconstrução de um saber, potencializando-se a apropriação do novo. Verifica-se também, no caso da festa, o caráter mais simbólico da participação, no sentido de marcar uma presença. Por isso, foi tão comum no Livro da Exposição, a expressão: “Eu estive aqui”, como se fosse a conquista de um lugar na Ação.

Participar, pertencer, encantar-se e apropriar-se parecem aqui corresponder a um mesmo sentido. São modos de estar na Casa que não se limitaram, porém, ao dia da festa de inauguração. Como diz também Maffesoli:

[…] os pequenos momentos festivos, as deambulações diárias, os lazeres etc. não podem mais ser considerados como elementos sem importância ou frívolos da vida social. Enquanto exprimem as emoções coletivas, eles constituem uma verdadeira ‘centralidade subterrânea’, um irreprimível querer viver que convém analisar. 193

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191

O grifo é meu.

192

FANTIN, op. cit., p. 28.

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