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CAPÍTULO 6 – AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTERATIVAS DA EXPOSIÇÃO

7.3. A PROPRIAÇÃO : A RECRIAÇÃO DA AÇÃO CULTURAL

7.3.4. O Concurso para a Escolha do Nome do Centro Cultural

Eu tava no dia que botaram o quadro, o nome dele, eu tava… É que a gente foi na escola. Eles começaram a falar, aí colocaram a placa, colocaram o nome do Doutor Santo Bornéo que ela tinha preparado, depois os familiares deles falaram um pouco, e deu, terminou.

Morgana (11 anos)

Durante a inauguração do Centro Cultural foi lançado pelo Projeto Curicaca um concurso para dar-lhe um nome. Este processo consolidou a idéia do espaço como um local público. Sobre a experiência do concurso falam as irmãs Carmela e Rejane, filhas do Doutor Santo Bornéo:

Dona Carmela: Vocês acho que deixaram o começo aí, lançaram o projeto

pra escolha do nome e acho que quando vocês foram embora, o pessoal da prefeitura aí, do Centro Cultural mesmo, a secretária da educação e da cultura que terminou… daí eles divulgaram, fizeram uma porção de inscrições e parece que seis ou sete nomes foram indicados e três indicações eram do mesmo nome, que era o nome do pai, não é? E depois mandaram fazer uma placa, até eu levei os alunos aqui da escola, e nós fomos lá. Foi uma homenagem bonita… valeu a pena!

Dona Rejane: E apareceram diversas propostas com outros nomes, mas

teve o julgamento e o nome do nosso pai foi… que acharam que estava melhor justificado o porquê do nome dele. E foi o que venceu. Ah…foi emocionante! Tava muito bonita, uma homenagem muito bonita a ele… e sem hipocresia, muito justa!

O espaço público é o local de encontro, de tomada de decisões coletivas e de reconhecimento como vizinho, parente, amigo ou turista. A abordagem de Hannah Arendt sobre as esferas pública e privada é esclarecedora para a análise que estamos empreendendo. Para ela, a esfera pública é o que nos une e, ao mesmo tempo, o que nos separa, “evitando que colidamos uns com os outros”. Arendt indica dois fenômenos essenciais que caracterizam o termo público. Em primeiro lugar, o que é amplamente conhecido e divulgado, podendo ser visto e escutado por todos e, em um segundo lugar, significa o “próprio mundo”, ou seja, tudo que é comum e que se diferencia do privado. Ela afirma, ainda, que a esfera pública só é possível na existência de uma preocupação com o que transcende o tempo presente:

[…] o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isto que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram e aqueles que virão depois de nós. Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. 195

Parece-me haver aí uma relação entre a noção de esfera pública de Arendt e uma das preocupações dos trabalhos ambientais da ONG na região, o reconhecimento dos direitos das gerações futuras. Os problemas ambientais são no fundo resultado de conflitos entre interesses públicos e privados, pois a luta ambiental, em suma, defende o caráter coletivo e o acesso indiferenciado aos recursos e bens de um mundo comum. Para que esses valores possam ser defendidos por todos é preciso, no entanto, que sejam reconhecidos, tenham uma “presença pública”, usando os termos de Arendt. Foi o que ocorreu quando o Centro

Cultural recebeu o nome do Doutor Santo Bornéo por meio de um processo participativo. Confirmava-se, assim, o caráter de um bem comum. Na prática, o caráter público pode ser percebido nas manifestações das crianças. Mesmo que elas continuassem se referindo ao Centro Cultural como “a Casa”, todas sabiam que o centro levava o nome de Doutor Santo Bornéo e contavam com detalhes o momento de sua nomeação:

Fabiano: Nesse dia eu tava, eles falaram um monte de coisa, falou os

familiares do Doutor Santo, falou uma aluna ali, aí colocou a placa…

Kauê: Chamaram o colégio, todas as salas… Fabiano: E a gente foi lá. A Dona Teca falou…

Kauê: E puxaram uma cordinha, lá. Só botaram a loninha em cima da

placa. Era umas três horas, três e meia…

O nome de Doutor Santo ficou marcado na história de Cambará. Como já foi visto, esse reconhecimento na comunidade foi especialmente gratificante para os seus familiares196:

Rejane: Olha Patrícia, pela escolha do nome ali, nos calou muito fundo pelo reconhecimento, sabe? Porque foi uma pessoa da família que lançou o nome do nosso pai, mas foi julgado por uma comissão, e a gente acha que reconheceram o que ele fez, já que votaram pelo nome dele… e isso aí cala muito.

Nas palavras de Dona Rejane fica claro, no entanto, que o mais importante foi o caráter político que envolveu esta escolha. O processo ganhou importância na medida em que gerou a mobilização de grupos e pessoas que defendiam a indicação de Doutor Santo. Há no fundo dessa mobilização uma história privada e o trabalho determinado de Dona Isa, afilhada do Doutor Santo. Em outra situação ela havia declarado sua insatisfação por não ter nenhuma foto de seu pai na exposição: “Por que o papai foi dos que mais lutou por Cambará, e as casas de madeira mais antigas, tudo da serraria dele, e não tinha uma fotografia dos Pereira!…”

____________

195

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 65.

196

O processo de seleção de imagens talvez não tenha sido amplo o suficiente para permitir a participação de um número maior de pessoas e a representação de seus parentes mais próximos nas fotografias. Isso exigiria uma período mais longo e uma organização mais complexa para esta etapa, com a realização de várias reuniões e a definição de comissões de decisão, o que avaliamos não ser possível dentro dos prazos estabelecidos. É claro que sempre haverá pessoas que se sentirão excluídas na sua representação em um trabalho como esse, que possui limites. Porém, o que quero ressaltar é a importância de estarmos atentos para essa oportunidade de exercício participativo, que demanda, além da vontade, as condições de tempo e planejamento para ser construída. De qualquer forma, suponho que o fato de Dona Isa ressentir-se com a ausência de seu pai entre as fotos da exposição, talvez, a tenha encorajado a empenhar-se na definição do nome de seu padrinho para o Centro Cultural. Era uma forma de ver representada sua família na Ação Cultural. No seguinte relato, Dona Isa orgulha-se de ter somado esforços para atingir seus objetivos:

Eu tinha um amor pela minha madrinha e o meu padrinho, no caso é essa aqui ó (mostrando a fotografia), aí eu tinha um amor, eu me sentia como filha deles, que eles me criaram como filha, aí quando ele veio a falecer, fizeram aquele pedido… e eu cá comigo: ‘ Eu acho que não tem pessoa mais merecida que o Doutor Santo Bornéo’. Foi um concurso, parece que tinha oito elementos na comissão, aí a gente entregou, tinha o dia certo, a gente entregou batidinho o trabalho, e quando eu vi, chamaram que tinha sido este trabalho o melhor! Eu que fiz a campanha.

Esta ação concreta mostrava assim a possibilidade de expressar uma vontade e de conquistá-la coletivamente. A experiência do concurso pode ser considerada, assim, como uma referência para a conquista de outras formas de participação, fortalecendo a organização e a autonomia da comunidade. Por seu caráter original apresento a seguir uma das três indicações do nome de Doutor Santo que concorreu no concurso: