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Esquema 6: relação entre memória, ficção e identidade

9. A FICÇÃO E A FACTUALIDADE EM UMA PERSPECTIVA

E como não sou verboso, não direi coisa com que o cansar. Bento Fernandes, Relação do princípio descoberto destas Minas Gerais,

Guarapitranga, 10 de dezembro de 1750.

o presente capítulo apresentamos algumas considerações gerais sobre a poesia épica e sobre o discurso historiográfico relacionando-os à Semiolinguística buscando demonstrar como esse aporte teórico oferece uma base para se abordar o tema da ficcionalidade e da factualidade. Não se trata de expor em nível de exaustividade o aparato teórico proposto por Charaudeau, mas de apontar alguns elementos que nos permitem demonstrar a coerência da aplicação da Semiolinguística neste estudo, a começar pela abordagem sobre os sujeitos da linguagem e seu trabalho de construção fictiva, conforme apresentamos a seguir.

9.1. OS SUJEITOS DO/NO DISCURSO FICCIONAL: A ERGO- FICCIONALIDADE

o artigo “Cuando la ficcion vive en la ficcion”, o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) chama a atenção para as ficções inseridas dentro de outras, como uma novela independente inserida no Dom Quixote, de Cervantes, ou uma peça encenada no Hamlet de Shakespeare: “al procedimiento

pictorico de insertar un cuadro en un cuadro, corresponde en las letras el de interpolar una ficción en outra52” (BORGES, 2014). Esse processo consiste em inserir um mundo ficcional dentro de outro, como “cuadros dentro de cuadros, libros que se desdoblan en otros libros53” (BORGES, 2014). A partir do texto de Borges, entendemos que o desdobramento dos enunciadores fictivos em uma narrativa pode ser um processo contínuo de construção em abismo.

Partículas de mundos ou universos ficcionais inteiros podem existir dentro de discursos ficcionais ou factuais. E a esse procedimento de inserir uma ficção em outra (que pode ocorrer graças ao interdiscurso) chamaremos de endo-ficção, ressaltando que não designamos com isso o funcionamento interno do discurso ficcional, mas a presença de um discurso ficcional em outro. Por sua vez, chamaremos de ergo-ficcionalidade, o conjunto de fatores (a interdiscursividade, os modos de organização do discurso, o estilo, procedimentos narrativos, construção de efeitos de real) que atuam nesse procedimento. O termo ergo-ficcionalidade é adaptado do trabalho de Peytard ([1983] 2014, p. 2), segundo o qual encontramos, no texto literário, o setor ergo-textual, que é aquele relacionado ao trabalho de elaboração, de construção do texto. O que pode ser exemplificado pela construção da narrativa e de seus personagens. A ergo- ficcionalidade, assim, consistiria no trabalho de elaboração da ficcionalidade no discurso e através da linguagem. Por sua vez, levando essa acepção ao quadro comunicacional proposto pela Semiolinguística, diríamos que a ergo-ficcionalidade se manifestaria no circuito interno da linguagem, graças às operações do sujeito comunicante.

A ergo-ficcionalidade nos remete também à questão da chamada multi-

narratividade, uma narrativa que tem origem em outra narrativa anterior. De maneira geral, poderíamos entender que a ergo-ficcionalidade se torna mais visível, ou legível através de procedimentos relacionados à narrativa. Razão pela qual julgamos pertinente discorrer sobre a relação narrativa e ergo-ficcionalidade na seção seguinte.

52 Tradução nossa: “ao procedimento pictórico de inserir um quadro em um quadro, corresponde nas

letras o de interpolar uma ficção em outra.”

53

9. 2. RELAÇÕES ENTRE ERGO-FICCIONALIDADE E NARRATIVIDADE:

o trabalho de Machado (2000) sobre o discurso literário encontramos referência ao “texto multi-narrativo, onde uma narração gera uma outra narração” (MACHADO, 2000, p. 99). Nesse caso, a autora aponta, com base no trabalho de Vuillaume (1990), o procedimento de o narrador passar a voz a um personagem, e a possibilidade, por sua vez, de este personagem narrador também ceder a voz a outro personagem. Dessa maneira, a partir de uma narrativa primária (dada pela voz do sujeito narrador 1), teríamos uma narrativa secundária, que existiria pela voz cedida a um narrador 2. Um procedimento que poderia ser continuado em mise-en-

abîme, no qual personagens seriam criados pela enunciação de outros personagens. Chamamos a atenção também para o fato de que essas narrativas secundárias ou terciárias podem se referir tanto ao mundo da ficção quanto ao mundo factual (cf. MACHADO, 2000, p. 100). Nesse caso, haveria pelo menos dois eixos de projeção da narrativa: um que se voltaria para o interior do universo ficcional da obra, e outro para o universo factual, a situação de comunicação na qual a obra foi construída, a eventos reais retratados no universo ficcional. Alguns exemplos da projeção factual dessa narrativa podem ser dados nos casos em que o narrador dialoga com o leitor, naqueles casos em que o narrador faz menção a sua própria obra ou ao seu processo de escritura, ou quando se reporta a eventos reais que de algum modo participam da narrativa ficcional.

Por sua vez, depreendemos que essas narrativas ficcionais podem, dentro da obra mesma de ficção, ter diferentes estatutos em relação à história contada. Um personagem A enuncia uma narrativa B, e esta poderia ter, dentro do universo de A, um estatuto factual. Isso porque dentro da narração de A, a narrativa B se referiria a eventos reais. Por outro lado, o personagem A pode narrar uma história factual contendo um personagem B, o qual narra uma fábula. No primeiro caso, teríamos uma narrativa com efeito de factualidade, ainda que uma factualidade ficcional, dentro de uma narrativa ficcional. No segundo, teríamos uma narrativa ficcional dentro de uma narrativa factual.

A factualidade e a ficcionalidade podem subsistir uma dentro de outra através de um desdobramento realizado pelos personagens da história. O universo da obra narrada reproduz procedimentos de enunciação criando suas próprias factualidades e suas

próprias ficcionalidades. Esse procedimento pode ser melhor entendido sobretudo através da Semiolinguística. O que abordamos no item seguinte.

9. 3. A ERGO-FICCIONALIDADE CONFORME A SEMIOLINGUÍSTICA:

elacionando a ergo-ficcionalidade a Semiolinguística de Jean Peytard54, podemos verificar que esse processo é possibilitado pelo desdobramento do enunciador em outros enunciadores discursivos, ou, como poderíamos dizer, nos desdobramento do sujeito escritor nas vozes narrativas do universo ficcional, e nas vozes que se desdobram dessas vozes anteriores. No entanto, esse discurso literário poderia ainda ser ficcional ou não, o que nos leva a pensar na possibilidade de propor uma outra qualificação ou categorização para esse scriptor literário de ficção, assim como para o lector de ficção: poderíamos falar de um lector fictivo e de um scriptor

fictivo, para distingui-los de outro tipo de lector e scriptor literário, conforme a terminologia de Peytard ([1983] 2014, p. 2) envolvido em um contrato de um discurso literário não ficcional.

9. 4. FORMAS DE OCORRÊNCIA DA ERGO-FICCIONALIDADE:

onforme nos diz Mendes (2008b, p. 215), os efeitos de ficção podem ocorrer dentro de um discurso de ficção através da intertextualidade literária. Essa endo-ficcionalidade, conforme mencionamos anteriormente, pode ocorrer através da heterogeneidade, pela intertextualidade literária, e em termos de discurso, pode consistir em uma situação de comunicação dentro de outra. Encontramos com frequência esse recurso nos discursos com ênfase no modo de organização narrativo, como a poesia épica. Nesse caso, dentro de uma narrativa majoritária encontramos o que podemos definir como outra mise en scène discursiva, com seus parceiros, sua

54 Peytard elaborou uma teoria que chamou de Semiolinguistica, A qual foi retomada e amplamente

finalidade e macro-tema, em termos semiolinguísticos construída pelo universo ficcional.

Mas como poderíamos descrever esse procedimento quando essa inserção ocorre em um discurso factual? Como, por exemplo, caracterizar esse recurso se o pequeno universo ficcional ocorre dentro de um texto factual? Teríamos, nesse caso, uma endo- ficcionalidade que atuaria dentro do mecanismo da factualidade? Essa endo-ficção poderia ocorrer através da intertextualidade: citação de provérbios, de uma história fictícia usada como exemplo? Assim como a inserção de efeitos de factualidade dentro de uma narrativa ficcional não lhe altera o estatuto, a inserção de fragmentos de ficção dentro de um relato factual não o torna fictício.

Podemos avançar um pouco nessa discussão se levarmos em conta o estilo: um traço da ergo-ficcionalidade operada pelos sujeitos do discurso, o que apresentamos no capítulo seguinte. Assim, uma vez, tendo levado em conta o trabalho os sujeitos do discurso na construção da ficcionalidade, verificaremos a seguir, os aspectos desse trabalho no discurso, e como essa atividade ergo-discursiva contribui para a construção de efeitos de ficcionalidade e de factualidade.