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Esquema 6: relação entre memória, ficção e identidade

11. OS EFEITOS DE FICÇÃO E DE REAL NO DISCURSO

11.1. A FICCIONALIDADE E A FACTUALIDADE COMO SEMIOTIZAÇÃO

e a Semiolinguística nos permite entender a ficção como parte do processo de troca linguageira pela construção dos espaços cênicos da linguagem, a ficção pode ser também entendida na perspectiva da transformação do mundo em discurso e da transação desse mundo semiotizado entre os sujeitos produtor do discurso

e do sujeito receptor. O que poderia nos legar tanto um poema épico quanto uma obra historiográfica que versasse sobre o mesmo tema.

Charaudeau (1995, p. 98) propõe um duplo processo: a transformação e a transação, os quais podem ser aplicados a abordagem dos corpora de nossa pesquisa. O primeiro trata de como o mundo é transformado em linguagem e convertido de mundo a significar em mundo significado. O segundo torna esse mundo significado um objeto de troca entre os parceiros da linguagem, tal como apresentamos no esquema seguinte, adaptado de Charaudeau (1995, p. 98):

Esquema 4: processo de dupla semiotização do mundo

Mundo a significar [Sujeito falante] Mundo significado [Sujeito destinatário]

Processo de Transformação

Processo de Transação

O processo de transformação envolve quatro tipos de operação que, grosso

modo, consistem na conversão do mundo em discurso. Operações que descrevemos a seguir, segundo Charaudeau (1995, p. 99):

.Identificação: nominalização dos seres do mundo: transformação destes em identidades nominais que irão compor os heróis e os seres fantásticos de uma narrativa épica;

.Qualificação: caracterização destes seres do mundo: transformação destes em identidades descritivas. É onde se constroem as qualidades dos heróis e dos antagonistas épicos e os valores que eles representam na narrativa;

.Ação: forma de ação destes seres: transformação destes em identidades narrativas, onde ocorrem o entrelace das ações dos personagens épicos;

.Causação (causation): termo de difícil tradução, que designa os motivos das ações, suas causas e efeitos: transformação das ações em relações de causalidade. Basicamente o que possibilita a mise en intrigue do poema VR.

Por sua vez, essas operações também coagem com o processo de transação, no qual a semiotização é intercambiada entre os sujeitos da linguagem, os parceiros do ato de linguagem. O que pode resultar, segundo a particularidade do ato de linguagem, tanto em uma narrativa épica quanto em uma narrativa historiográfica. Para tanto, concorrem quatro princípios que apresentamos a seguir segundo Charaudeau (1995, p. 99-100):

.alteridade: todo ato de linguagem é um fenômeno de troca entre dois parceiros, os quais devem partilhar de um domínio de saberes e de motivações comuns. Ocasião na qual temos o autor de um poema épico ou de uma obra historiográfica que se dirige a um leitor de poesia ou de um leitor interessado em um relato historiográfico;

.pertinência: os parceiros da linguagem devem reconhecer o universo de referências que são o objeto da troca linguageira, distinguindo assim o universo ficcional abordado do universo factual que compõem duas obras diferentes ou que se relacionam em uma mesma obra;

.influência: todo ato de linguagem tem, em maior ou menor grau, a intenção de fazer com que haja uma ação por parte do parceiro da linguagem, de modo que compor um épico ou historiografar a formação política, militar e religiosa de um território conteriam em si um propósito de influenciar o leitor a respeito de alguma ideia;

.regulação: todo ato de linguagem provoca uma reação ou uma contra-influência que leva os sujeitos a recorrerem a estratégias que possibilitem a intercompreensão do ato de linguagem, o que ocorre, no entanto, de maneira indireta quando se trata de um discurso escrito, sobretudo quando se lê um discurso do século XVIII a partir de um viés do século XXI.

Conforme buscamos evidenciar, esse aparato nos mostra como o mundo pode ser semiotizado de modo a fazer significá-lo como ficção ou como um fato. No caso de aplicarmos essas considerações ao discurso ficcional, depreende-se que encontramos um embasamento pelo qual podemos considerar que a ficção é construída dentro de um processo de troca, no qual deve haver um consenso entre os interlocutores quanto ao conhecimento do objeto dessa troca. A ficção também é dotada de uma capacidade de fazer agir o interlocutor, e, ao mesmo, permitir uma resposta a essa busca de fazer-agir. O que nos aponta também a importância de se verificar as relações possíveis entre o discurso ficcional e a argumentação.

A significação do mundo em um universo ficcional ou factual depende do contrato proposto na situação de comunicação: um contrato literário, no caso de Cláudio, e um contrato historiográfico, no caso de Rocha Pita. O mundo pode ser representado tanto dentro de um contrato de factualidade, quando o discurso constrói a representação do mundo real, tanto quanto dentro de um contrato que levará a ficcionalidade, quando se trata de construir no e pelo discurso um mundo imaginário.

O processo de semiotização do mundo se aplica harmoniosamente a um discurso narrativo épico, como que estudamos através do poema VR, razão pela qual é coerente verificar o que nos traz Charaudeau sobre o modo de organização narrativo do discurso. Os modos de organização são parte importante da mise en scène do discurso conforme a finalidade do ato de linguagem. Dentro das operações de semiotização do mundo encontramos a importância da narração para compor o discurso, o que é dado pela transformação de seres do mundo em identidades narrativas graças às ações destes seres.

Nesse caso, o modo de organização narrativo do discurso, conforme descrito em Charaudeau (1992) nos oferece outros subsídios para relacionar a semiotização do mundo aos processos de ficcionalização e/ou de factualização. O que nos permite entender como o factual e o ficcional se dissociam em certos momentos e se entrelaçam em outros, ao longo da narrativa épica de Cláudio Manoel e da obra historiográfica de Rocha Pita. Especificamente através do modo de organização narrativo, o produtor desse pode operar uma mise en scène que produz um discurso factual ou um discurso ficcional da seguinte maneira, conforme adaptado de Charaudeau (1992, p. 760):

historiador narrativa factual leitor da narrativa

factual NARRADOR

escritor/poeta narrativa ficcional leitor da narrativa ficcional

De certo modo, esse esquema também pode ser lido dentro de uma dimensão contratual, na qual o sujeito produtor da narrativa se desdobra em um papel enunciativo conforme a instauração do estatuto pretendido para o discurso (factual, não factual ou ficcional). Por outro lado, sobre esses dois modos de narrar, Charaudeau (1992, p. 760) alega : “il s`agit plutôt d`effets (de realité/de fiction) qui sont produits par certaines marques textuelles93.” O que aponta para a importância dos modos de organização do discurso para compreender os efeitos de ficção. Embora a ficção não deixe marcas linguísticas peculiares, é pelo texto em sua organização que depreendemos efeitos de ficção.

Cabe-nos também estender essa discussão para a finalidade do contrato comunicacional, tal como proposto pela Semiolinguística e para as maneiras através das quais ele ajuda a construir um discurso como sendo ficcional ou factual. Tarefa que nos propomos a realizar no capítulo seguinte.

93 Tradução nossa: “Trata-se então de efeitos (de realidade/de ficção) que são produzidos por certas