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Capítulo II. Masculinidades elitizadas

1. A figura histórica do senhor de engenho

A figura histórica do senhor de engenho “descrita” e admirada por Freyre no livro “Casa-Grande & Senzala”, obra publicada em 1933, é saturada de nobreza, impetuosidade, valentia, coragem, heroísmo. Homens sisudos, habitando suas casas-grandes, protegidos por índios e por negros armados de arco e flechas e arcabuzes. Donos de terras, de escravos, donos da própria vontade e das vontades alheias, que costumavam contestar as ordens do próprio rei de Portugal (Freyre, [1933] 2006).

O homem descrito e admirado por Freyre foi o responsável pela “desvirginização” (Freyre, [1937] 2004) da mata Atlântica da ainda colônia portuguesa. Devastando matas, animais, homens, a fogo, os primeiros colonizadores do Brasil prepararam a terra para as primeiras plantações de cana-de- açúcar. Apropriando-se de vastos espaços, terras, rios, animais e também de corpos humanos, os portugueses que deram origem a figura do senhor de engenho também emprenhavam mulheres, faziam filhos em atividade que, de acordo com Freyre, tanto tinha de individual, quanto de ação política e econômica (Freyre, [1933] 2006).

A colonização de uma terra virgem, selvagem, plena de perigos, de ameaças terríveis foi “obra de esforço heróico individual” (Freyre, [1933], 2006, p. 80). A participação do Estado português foi mínima, para não dizer quase inexistente. Os homens que desbravaram essa terra, heroicamente, constituíram as primeiras famílias, formando assim uma aristocracia rural. Freyre esforça-se por mostrar – superdimensionando o fator virilidade na colonização – que não houve participação de nenhuma companhia de comércio nem do Estado no processo colonizador do Brasil. A sociedade colonial formou-se sob o poder patriarcal. Freyre procura legitimar a existência do patriarcalismo referenciando a ausência de instituições políticas e sociais capazes de atingir todas as distâncias que os territórios coloniais impunham, demandando assim a experiência cotidiana do patriarcado afim de que

as populações de colonos (brancos, mestiços, ameríndios e escravos africanos) se submetessem ao mesmo poder colonial.

A sociedade colonial incorporou uma lógica bélica (Lugarinho, 2013). As identidades masculinas eram caracterizadas pela proteção ao grupo familiar e pela defesa dos interesses da coletividade. Individualmente, ela também se expressa pela defesa da honra masculina, honra entendida aqui como o grau de comprometimento do indivíduo com algum ideal validado pela sociedade na qual se situa (Lugarinho, 2013).

O aparato econômico, como instalação de engenhos, compra de escravos, animais de tração, ferramentas, eram custeados pelos próprios colonos, acarretando em desdobramentos políticos com a consequente formação “da aristocracia mais poderosa das Américas” (Freyre, [1933] 2006, p. 81). A aventura dos primeiros tempos de colonização era sempre a promessa da experiência plena da virilidade em meio a uma vida livre, no meio de muitas mulheres nuas, aventuras inimagináveis, o que talvez levasse os primeiros colonos a sentirem-se os “garanhões desbragados” (Freyre, [1933] 2006, p. 83).

A eliminação dos animais silvestres como serpentes – muitas vezes mortas por asfixia – temidos por homens, mulheres e crianças à época da colonização (Andrade, 2004) chama a atenção para a índole guerreira, máscula e viril dessa personagem histórica. Albuquerque Júnior, (2003), descreve o senhor de engenho como: “Tipo fisicamente constituído e forte...verdadeiro pai-d’égua; gritando muito e decompondo como o capitão de um navio; homem bravo; homem de gênio forte; falando sempre em mulheres” (Albuquerque júnior, 2003, p. 19).

Freyre mobiliza palavras como virgindade, fecundar, entre outras para se referir à colonização do Brasil. Com essas palavras ele pode associar a natureza, a terra – esta pensada como uma virgem – a uma mulher. O europeu (português) é percebido como o homem viril, másculo, todo poderoso, que veio deflorar a virgem (terra, natureza) lançando sobre ela sua semente (que originou os extensos canaviais) e fecundar, fazendo-a produzir o elemento gerador de uma das maiores riquezas do mundo moderno. Esse homem viril fez com que a natureza deixasse de ser um todo harmonioso e nela se desenvolvessem relações de dependência e de extrema subordinação: do escravo ao senhor, da mulher ao homem, da mata a cana-de- açúcar (Freyre, [1937] 2004, p. 81).

A ação desse homem foi violenta. Aliás, Freyre percebe esse fator como determinante no processo de colonização do Brasil. As atitudes violentas que caracterizaram as ações dos colonos e parecem ser celebradas por Gilberto Freyre como único remédio possível para a sociedade da época, foram recursos para que os homens pudessem construir identidades potentes, capazes de fazê-los sentirem- se viris (Nolasco, 2003). A estratégia de Freyre era atribuir um sentido à violência, agregando crenças e valores, papeis sociais que, no caso dos senhores de engenho, era o de defender a ordem colonial instaurada, desta forma afastando as atitudes do personagem da associação à barbárie, meios primitivos de se resolver conflitos.

Sem a violência arbitrária, sem a arrogância dos colonos dos primeiros séculos da colonização, a civilização dos trópicos não teria sido possível (Freyre, [1937] 2004). A violência, associada ao fator masculinidade e virilidade, que para Freyre era igual a homem branco e europeu, são percebidas por este autor como legitimadoras da conduta todo-poderosa dos donos de engenhos. Homens que de suas casas-grandes comandavam, aos gritos, os homens das senzalas. Que reservavam o chicote para os que ousassem desobedecer.

Contudo, a “representação” da sociedade colonial na obra de Freyre é carente de imparcialidade e de embasamento fundado apenas na razão. As percepções do mundo social não são neutras. Elas legitimam hierarquias, estabelecem lugares de pertencimento, apresentam uma dominação como natural, ocultando sua historicidade (Chartier, 1990). Freyre procura naturalizar a hierarquia do homem branco europeu sobre os homens e mulheres a ele submetidos. A representação da identidade máscula (européia) por Freyre, ao lado da representação do negro (submetido) define socialmente os lugares de cada um: o de mando para o senhor; o de subserviência para o negro.

Para Albuquerque Júnior, (2013), o que Freyre procura fazer é eternizar a sociedade brasileira dos tempos coloniais. Sociedade marcada pelo poder masculino e pela violência de gênero. Pelo arbítrio do homem sobre a mulher, do homem branco sobre o homem de cor. A legitimidade do poder da etnia branca sobre a negra, inclusive, é buscada na associação do homem negro ao gênero feminino. Albuquerque júnior, (2013), afirma que na obra de Gilberto Freire está presente a idéia de que a raça negra seria feminina, como podemos ver adiante:

Ele chega a endossar a idéia, que atribui a alguns sociólogos, de que a raça negra é a raça mulher. Uma raça afetiva, sentimental, pouco racional, passiva, masoquista, que marcaria com estes elementos a cultura brasileira (Albuquerque Júnior, 2013, p. 34).

Em uma sociedade em que o feminino é inferiorizado, ocupando lugares desvalorizados socialmente, a associação do homem de cor com a mulher implica em uma imposição para que este ocupe lugares desprestigiados, para que aceite a hierarquia – com todas as suas implicações – estabelecida pelo homem branco. A afetividade, o fator sentimento, “característicos” dos povos de cor, opõem esses grupos étnicos aos europeus, estes dotados de razão, portadores, por isso, de uma natureza capaz de por ordem ao mundo natural e social, enfim, capazes de formar e conduzir uma civilização.

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