• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II. Masculinidades elitizadas

2. Símbolos do poder masculino

Durante o período colonial, os símbolos do poder viril desses homens estavam por toda parte. O cavalo, animal que remete a ideia de potência, poder, virilidade, vigor e resistência (O’Connell, 2010), fazia parte da rotina dos engenhos. Freyre afirma que sem o cavalo a “figura do senhor de engenho teria ficado incompleta na sua dignidade” (Freyre, [1937] 2004, p. 97). Existia o homem com, ou no cavalo, e o homem sem cavalo. O primeiro, com ares e mística de fidalgo, com gestos de mando, de galanteio e de rompantes guerreiros. Era do alto do dorso desse animal que o senhor falava, que dava suas ordens sempre falando grosso ao homem sem cavalo. Outra forma de ostentar sua masculinidade era a condução de carroças ou cabriolés, sempre puxadas por cavalos de raças nobres. Segurando as rédeas, fazendo os animais obedecerem a seus comandos, guiando, chicoteando, fazendo subir poeira, “espancando moleques e os animais, fazendo com que carroças, cavalos, moleques, escravos e mulheres os obedecessem com a mesma docilidade” (Freyre, [1937] 2004, p. 100). A carroça ou o dorso dos cavalos os colocavam sempre em posição de superioridade em relação a quem estava a pé, fazendo com que o olhar do senhor fosse direcionado de cima para baixo.

Não por acaso, o cavalo de raça recebia melhor tratamento do que o dispensado ao trabalhador da bagaceira. O amor devotado ao animal era em virtude

da nobreza por ele proporcionada, sempre a completar a figura aristocrata do senhor de engenho. Na hierarquia do engenho, o cavalo ocupava o topo, ficando abaixo dele todos os outros animais, como os de tração e os usados para o alimento. Todavia, os carneiros também recebiam tratamento de destaque, tendo em vista que, para Freyre, (2004), eram animais que auxiliavam na formação nobre, máscula, viril e aristocrata do filho do dono de engenho, à medida que eram usados como montaria, desenvolvendo nesses as habilidades necessárias para a formação de cavaleiros virtuosos. Podemos assim afirmar com Louro, (2010), que havia um intenso investimento na fabricação do modelo de masculinidade representada na figura do senhor de engenho por meio de processos pedagógicos específicos.

De acordo com Lugarinho, (2013), o colonizador português submeteu as populações locais e as seqüestradas da África e escravizadas no Brasil baseado em concepções próprias de humanidade e de masculinidade. Estabelecendo o homem europeu como superior, pois dotado de humanidade, a lógica colonial determinava que a população submetida, se não desprovida de todo da humanidade, não comportava a autêntica masculinidade, sendo por isso considerada feminilizada, justificando-se assim, sua submissão (Lugarinho, 2013). Mesmo após a emergência do Estado nacional, o expediente do patriarcado não foi eliminado, prevalecendo a autoridade masculina, estabelecendo-se o patriarca como representante da ordem jurídica do estado (Lugarinho, 2013). Aqueles que não se enquadravam no padrão masculino, europeu e branco, eram tratados sob o estatuto da subordinação, infantilizados, feminilizados e marginalizados. A superioridade do homem sobre a mulher e do homem branco europeu por sobre todos os homens não brancos e não europeus ficou garantida, instituindo-se as exceções a partir de um conjunto de oposições (Lugarinho, 2013).

Contudo, a masculinidade viril, potente, brutal, teve que abrir espaço a novas formas de exercício da masculinidade. Gilberto Freyre trata desse assunto no livro intitulado “Sobrados e Mucambos”, publicado em 1936, remetendo o processo de decadência dos donos de engenho a um período recuado da história do Brasil. O sociólogo pernambucano afirma que desde o século dezoito mudanças ricas em consequências foram se processando no que diz respeito ao tratamento da coroa portuguesa com a aristocracia rural. Ainda nesse século, o Estado português passou a marcar uma atuação maior na colônia, conforme podemos ver na citação de Freyre:

Os capitães mandados para as Minas era como se viessem para terras que acabassem de ser conquistadas: arrogantes, dominadores, seu olhar duro fiscalizando tudo, até as libertinagens dos frades. A própria tradição dos grandes proprietários açoitarem criminoso em suas fazendas, dentro da porteira, tabu dos seus engenhos, é quebrada em Minas em pleno século XVIII (Freyre, [1936] 2000, p.16)

O Estado português, através de seus agentes põe termos à violência, ao poder sem freios dos antigos senhores de engenho. Em uma época em que a masculinidade e a virilidade eram sinônimas de violência, em que ser homem era ser dominador, não ter senhor, os limites de seu poder arrogante eram lidos por Freyre como desvirilizadores. A citação acima deixa entrever que Gilberto Freyre por vezes parece legitimar o poder sem limite dos senhores de engenho. Talvez porque considerasse esses personagens como os desbravadores da terra. Isso lhes daria o direito de viveram sob as leis por eles ditadas. Qualquer outra autoridade, mesmo do Estado, era percebida como ilegítima, arrogante.

Para Gilberto Freyre, o rei não mostrava mais a mesma indulgência com dívidas em atraso que havia mostrado tempos antes. Os senhores rurais foram ficando em segundo plano. Esse processo foi acentuado com a vinda da família real para o Brasil em 1808.

Os engenhos, lugares santos donde outrora ninguém se aproximava senão na ponta dos pés e para pedir alguma coisa – pedir asilo, pedir voto, pedir moça em casamento, pedir esmola para festa de igreja, pedir comida, pedir um coco de água para beber – deram para ser invadidos por agentes de cobrança, representantes de uma instituição arrogante da cidade – o banco – quase tão desprestigiadora da majestade casa-grande quanto a polícia (Freyre, 2000, p. 17-18).

O sociólogo mostra-se explicitamente solidário aos senhores de engenho. Lamenta seu declínio e a perda dos privilégios de casta aristocrática. Freyre põe a decadência da sociedade patriarcal na conta dos mascates. Para ele, a ascensão da classe dos mascates (comerciantes) ocorreu às custas do nobre aristocrata do engenho.

Se para Freyre o declínio do senhor de engenho representa a perda de um passado feliz, nobre, aristocrático, para José Américo o desaparecimento dessa

figura é visto como positivo dentro do horizonte de emergência de um mundo novo, “moderno”.

Documentos relacionados