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Capítulo II: A transição da formação artesanal para a formação industrial na perspectiva

2.4 Rousseau: a formação do jovem burguês em “filósofo-operário”

2.4.2 A formação artesanal e a perspectiva de classe

Mas nesse elogio ao ofício da marcenaria há senões. Rousseau proíbe seu aluno de executar trabalhos insalubres, mas não aos ofícios penosos, nem mesmo os ofícios perigosos porque eles exercitam ao mesmo tempo a força e a coragem. Ele também é contra os trabalhos da indústria e compara os trabalhadores destas com autômatos que só aplicam as mãos num mesmo trabalho, tais como os alfaiates, os costureiros de meias, os que trabalham pedras, de que serve empregar nessas profissões homens de senso? É uma máquina que leva outra (1999, p. 257).

Na proposta pedagógica interativa entre mestre e aluno, Rousseau adverte que os dois estarão em aprendizado, mas não poderão passar o tempo todo na mesa de trabalho tendo em vista que não somos aprendizes de trabalhadores, somos aprendizes de homens, e o aprendizado deste último é mais difícil e mais longo do que o outro. Fica evidente que Rousseau valoriza o trabalho manual como parte de uma educação mais ampla para o aluno fidalgo, assim como, caracteriza a educação classista onde há trabalhadores e não trabalhadores manuais. Em uma proposta político-pedagógica cindida da realidade, o trabalho manual é um fragmento desinteressado da aprendizagem de alguém que se utilizará dele como exercício de ação e reflexão para aplicá-lo em sua vida individual,

contextualizada na realidade do mundo do trabalho mas para jamais ser um trabalhador manual.

Nos seus princípios teórico-metodológicos, Rousseau recomenda ao seu aluno que: Devemos ir toda a semana uma ou duas vezes passar o dia inteiro junto com o mestre de ofício, levantando-nos à mesma hora, chegando do trabalho antes dele, comendo à sua mesa, trabalhando sob suas ordens, depois ceamos com sua família. Orgulhar-se de ter vencido os preconceitos é submeter-se a eles...Com o hábito do corpo e do trabalho manual dou ao meu aluno o gosto pela reflexão e pela meditação...É preciso que trabalhe como um camponês e pense como um filósofo. O grande segredo da educação é fazer com que os exercícios do corpo e os do espírito sirvam sempre de descanso uns para os outros (1999, p. 261). Mas será que o aluno de Rousseau, que estava sendo formado para observar, agir, meditar e refletir, não percebe as contradições sócio-econômicas do mundo do trabalho? Sim, Rousseau prevê que, em determinado momento, seu aluno perceberia as desigualdades de condições e pode questionar: Um rico também deve seu trabalho à sociedade. E tu, que fazes por ela? A resposta é simplesmente: não sei. Enquanto encontro a resposta, darei aos pobres o que tenho de sobra e faço uma mesa por semana para não ser completamente inútil (1999, p. 263).

Em outro texto, Considerações sobre o governo da Polônia e de sua forma projetada, no capítulo sobre educação, Rousseau posiciona-se sobre a estatalidade da educação, ainda que com certos limites: Eu não gosto dessas distinções de colégios e de academias que fazem com que a nobreza rica e a nobreza pobre sejam educadas diferentemente e em separado. Todos sendo iguais pela constituição do Estado devem ser educados juntos e da mesma forma (Antunes, in Lombardi & Saviani, 2005, p.53).

Nessa resposta de Rousseau sobre as desigualdades sociais há dois aspectos interligados. Um, é o que ele explicita em vários momentos do capítulo III, do Emílio, a consideração pelas características próprias do jovem, o que ele pode e não pode aprender em sua idade. O outro aspecto é a diferenciação de classe. Vejamos, evitemos antecipar- nos quanto às instruções que exigem um espírito mais maduro (p.261). Em outro momento, quando fala sobre a divisão do trabalho, ele ensina que deve-se afastar do aluno todas as noções das relações sociais que não estão ao seu alcance, mas, quando o encadeamento dos acontecimentos vos forçar a lhe mostrar a mútua dependência dos homens, em vez de mostrá-los pelo lado moral [da exploração do homem pelo homem],

voltai sua atenção para a indústria e as artes mecânicas [as forças de produção criadas pelo trabalho do homem, ou seja, o trabalho social, abstrato] (p.234).

E quando apontava para a necessidade da igualdade convencional, Rousseau advertia que os conhecimentos políticos de uma criança devem ser nítidos e limitados, ela deve conhecer do governo em grau apenas o que se relaciona com o direito de propriedade (p.240). E sobre a troca eqüitativa, o filósofo genebrino recomenda que não entre na explicação dos efeitos morais dessa instituição (p.242).

A partir das considerações feitas acima, podemos situar Rousseau entre o pensamento liberal e o pensamento progressista. Como pensador liberal, ele defende a formação artesanal como se fosse um “epifenômeno” educativo. Quer dizer, para ele, era importante que o aprendiz fidalgo se inserisse nos trabalhos manuais. No entanto, estes tinham como finalidade aprender a trabalhar individualmente, como atividade de lazer e para desenvolver habilidades psicológicas cognitivistas. Na mesma proporção que Locke, Rousseau afirma que Emílio nunca será um trabalhador manual, deixando claro sua perspectiva classista de divisão do trabalho e de processo educativo diferenciado.

Porém, quando aproximamos algumas idéias da proposta político-pedagógica de Rousseau às propostas marxistas, encontramos alguns princípios que inspiraram Marx a subverter o pensamento liberal rousseaniano para finalidades progressistas, especialmente à critica da divisão do trabalho e ao processo educativo. Isto pode ser identificado nas propostas de Rousseau de formação do jovem “filósofo-operário”; na importância de agir, de compreender e de analisar cada passo do processo do trabalho adotando uma concepção integral dele; também na relevante interação e aprendizagem mútua entre mestre e aprendiz e, finalmente, na descoberta das particularidades entre as diversas fases da vida (infância, adolescência e vida adulta) e sua implicação no processo ensino-aprendizagem. Com esse mote, passamos a analisar as propostas político-pedagógicas baseadas da perspectiva progressista marxista.

Sintetizando o capítulo, os pontos convergentes apresentados pelos “inovadores pedagógicos” adeptos da nostalgia da formação artesanal na perspectiva conservadora liberal – Locke, Mandeville, Smith e Rousseau – estão baseados em uma concepção de homem cuja natureza é egoísta, voltada exclusivamente aos interesses pessoais, caracterizada pelo caráter astuto, hipócrita, orgulhoso, vaidoso. Esse egoísmo ético

impossibilita uma sociedade caritativa, altruísta e solidária; o reconhecimento das disposições naturais, individualizadas leva a uma intervenção educativa igualmente diferenciada. Reconhecimento do trabalho como fonte da riqueza, ênfase na eficácia da produção baseada na divisão do trabalho em manual e intelectual.

Consideram que a educação é a causa da diferença entre as pessoas. O processo educativo não é pensado para terminar com as diferenças sócio-econômicas entre as pessoas, mas é pensado de forma que as diferentes pessoas se adaptem à realidade determinista nas quais nasceram. Portanto, o processo educativo deve ser adequado à cada classe social; o reconhecimento e exaltação dos hábitos de vida e de trabalho dos campesinos como modelo ao jovem cavalheiro, mas sem nenhuma intenção de integrar esse com os primeiros. Há ênfase na atividade manual como recreio, descanso às atividades intelectuais e voltadas aos negócios de formação do jovem cavalheiro, ou seja, preocupação em formar determinado segmento da juventude, àquela encarregada em manter a propriedade; a universidade como espaço de formação da juventude que representa os futuros homens de negócio; o conhecimento rudimentar (ler, escrever e calcular) destinado às classes trabalhadoras; defesa do livre comércio, do ensino privado; crítica ao Estatuto da Aprendizagem que regulamenta a aprendizagem dos ofícios.

A proposta pedagógica nostálgica da formação artesanal dos representantes da perspectiva liberal nos apontam para três aspectos interessantes: as características da “instituição total”, a concepção de “natureza humana” e a construção da subjetividade.

Em Locke, as características da “instituição total” aparecem na elaboração da Escola do Trabalho. Esta era destinada à “correção” dos filhos dos trabalhadores que mendigavam pelas ruas. Por outro lado, o sistema tutoral era destinado à formação do jovem cavalheiro – futuro homem de negócios, ou seja, noções e natureza humana e sistemas formativos diferenciados pelo critério de classe social. Quanto à subjetividade, Locke indica que as diferenças humanas existem devido as impressões que as pessoas recebem desde a tenra idade. Sua indicação vanguardista é para que se dê atenção à natureza particular de cada um. No entanto, como a fonte dessas diferenças é a educação, para o médico inglês, cada sujeito deve adaptar-se com suas diferenças à classe social em que vive.

A proposta de Mandeville é de manter os jovens pobres na ignorância para mantê- los no trabalho subalterno. Em relação à subjetividade, Mandeville escracha o que o ser humano tem de mais libidinal. Pois, em seu entendimento, as paixões, os desejos, a hipocrisia, o disfarce, a adulação, a imitação, ou seja, as características humanas consideradas más é que constituem realmente o cimento da sociedade, afinal, são os vícios privados que geram os benefícios públicos.

As características da “instituição total” na proposta formativa profissional de Smith está situada nos primórdios da produção industrial ou do capitalismo nascente. É no contexto da divisão do trabalho que se dá o aprimoramento das forças produtivas, assim como parte das habilidades, da destreza e do bem senso do trabalho que é dirigido ou executado. O desculturamento, a despersonalização, a carreira moral e todas as demais caraterísticas do internado na instituição total estão presentes no processo de adestramento ocorrido no interior das fábricas. Obviamente que a subjetividade ficará marcada por esse processo. Smith descreve o trabalhador que executa somente atividades simples como embotado e ignorante. Fica evidente que, para smith, a subjetividade é formada dentro da condição de classe.

As idéias humanistas de Rousseau representam um divisor de águas. Seu elogio ao trabalho formativo da agricultura e do trabalho artesanal enquanto possibilidade de unir ação e reflexão serão o paradigma da perspectiva tanto liberal quanto progressista. Sua proposta formativa baseada no tirocínio do aprendiz junto ao mestre artesão dará a marca do disciplinamento e despersonalização presentes na “instituição total”. Assim como o destaque de se considerar a faixa etária da criança e do adolescente no processo formativo e, principalmente, a denúncia da inversão de valores entre homens e máquinas (denominada posteriormente por Marx de fetichismo e reificação).

Capítulo III: A tensão entre uma concepção nostálgica e futurista de