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Capítulo II: A transição da formação artesanal para a formação industrial na perspectiva

2.4 Rousseau: a formação do jovem burguês em “filósofo-operário”

2.4.1 Os princípios da formação artesanal

No Livro III, do Emílio, Rousseau prescreve ao seu aluno imaginário, os princípios da formação artesanal. Ele inicia a juventude como o “tempo humano” da aprendizagem profissional, ou seja, o tempo da força relativa, do meio termo situado entre a criança e o homem (A pesar de indiscriminadamente usar os termos criança, seja para o adolescente ou para o jovem):

Como homem ele é fraquíssimo; como criança, é muito forte. (...) É um tempo de força relativa. É o tempo mais precioso da vida. Há excedente de faculdades e de forças. É preciso empregá-las em trabalhos, armazená-los em seus braços e em sua cabeça. É um tempo dos trabalhos, da instrução, dos estudos (1999, p.201). São princípios pioneiros sobre as características e implicações psicopedagógicas dos vários tempos da vida: é preciso escolher o que ensinar, assim como o tempo próprio para ensiná-las. A idéia de formação deve levar em conta a idade do aluno, assim como, a experiência prática no campo ou na cidade, o trabalho manual e a reflexão sobre ele. Rousseau critica a “filosofia de gabinete” e recorre à experiência para descrever a força física e a capacidade de espírito dos jovens.

Vejo em nossos campos jovens que lavram, seguram o arado, enchem um tonel de vinho, guiam um carro como seus pais; consideraríamos adultos, se o som de suas vozes não os traíssem. Em nossas próprias cidades, jovens trabalhadores, ferreiros, cuteleiros, ferradores, são quase tão robustos quanto os mestres, e seriam pouco menos hábeis se os tivessem treinado a tempo. Se há diferença, e concordo que há, ela é muito menor do que a que existe entre os desejos fogosos de um homem e os desejos limitados de uma criança. Não se está falando apenas de forças físicas, mas sobretudo da força e da capacidade do espírito que as completam e as dirigem (Ibidem).

Portanto, o enfoque de Rousseau está nas diferenças físicas e espirituais (psíquicas e cognitivas) enquanto que as diferenças sócio-econômicas, ou como ele denomina, as diferenças morais, ficarão em segundo plano porque é preciso saber o que ensinar. O caráter ideológico de sua proposta pedagógico, veremos a seguir.

Quando se refere às descobertas da ciência, os instrumentos e as máquinas que “substituem” os órgãos humanos, Rousseau critica os efeitos maléficos de instrumentos

inventados para guiar as nossas experiências e suprir a exatidão dos sentidos. Quanto mais engenhosos são nossos instrumentos, mais grosseiros e desajeitados tornam-se nossos órgãos; de tanto juntar aparelhos ao nosso redor, já não os achamos em nós mesmos (1999, p. 220).

Como ofensiva à essa deformação humana pelas descobertas da ciência, ele propõe o afastamento dos livros (da pedagogia livresca, tradicional) e a educação na oficina, onde as mãos trabalham em prol do espírito. Assim, ele pensava que a criança se torna filósofa acreditando ser apenas um operária (Ibidem).

Os princípios da educação na oficina incluem o tempo que a criança precisa ter para distinguir o que lhe convém e o que não lhe convém; aprender tudo o que é útil para a sua idade; perceber a diferença entre trabalho e diversão; obedecer à lei da necessidade como mestra que lhe ensina a fazer o que não gosta para prevenir um mal ainda maior e considerar o uso do bom senso para que a criança não se deixe levar, sendo apenas uma máquina nas mãos das outras pessoas.

Rousseau situa as artes manuais no contexto da formação da sociedade, pois a prática das artes manuais que só envolve apenas um homem não leva às artes da indústria, que exigem a colaboração de outras pessoas:

Enquanto só conhecemos a necessidade física, cada homem basta a si mesmo, a introdução do supérfluo torna indispensável a divisão e a distribuição do trabalho, pois embora um homem trabalhando sozinho ganhe apenas a subsistência de um homem, cem homens trabalhando em harmonia ganharão a subsistência de duzentos (1999, p.234)

A metodologia de ensino na oficina inclui a atuação direta do aluno onde ele mesmo ponha as mãos à obra, observe, atue e reflita sobre a prática para saber perfeitamente a razão de tudo o que faz ali. Mas essa metodologia não se restringe ao aluno. O caráter do ensino na oficina é interativo pois o mestre deve servir de exemplo e também colocar as mãos à obra: Trabalhai vós também, dê exemplo, para torná-lo mestre, seja em toda parte aprendiz (1999, p. 235).

A experiência, a vida prática, o cotidiano do trabalho constituem o centro dos princípios pedagógicos de Rousseau, afinal, uma hora de trabalho ensinará mais do que as coisas que ele [o aluno] reteria de um dia de explicações (Ibidem).

Rousseau chama a atenção a respeito do valor das artes sobre o valor das coisas, porque entende que o preço de fantasia não deve se sobrepor ao preço da utilidade real. Na

sua proposta humanista, no momento em que deixares essas idéias entrarem em sua cabeça, abandonai o resto de sua educação (1999, 239).

O mundo do trabalho deve estar em consonância com a economia, as relações de troca e com o ensino, pois, a sociedade das artes consiste em trocas de indústria, a do comércio em troca de coisas, a dos bancos em trocas de signos e de dinheiro; todas essas coisas se ligam, e as noções elementares já foram adquiridas (1999, p. 240).

Rousseau não faz distinção entre as condições, as posições sociais e as riquezas porque o homem é o mesmo em todas as posições sociais...sendo as necessidades naturais as mesmas em toda parte, os meios de satisfazê-las devem ser iguais. O que fundamenta essa igualdade do homem é a educação. Uma educação essencialista que unifica, homogeneiza a humanidade em uma igualdade antropológica. Para isso é preciso tornar apropriada ao homem a educação do homem e não ao que ele não é. Rousseau tem como parâmetro os golpes de sorte que podem mudar as contingências humanas e, alguém sendo rico fica pobre e vice-versa. Em uma alusão ao princípio de sociabilidade hobbesiano, Rousseau afirma que Tudo o que os homens fizeram os homens podem destruir [riquezas], os únicos caracteres indeléveis são os que a natureza imprime, e a natureza não fez nem príncipes, nem ricos, nem senhores (1999, p.248). A verdadeira educação “do homem” é a que não fragmenta o conhecimento, multifacetada, em uma clara alusão ao que Marx chamará posteriormente de educação politécnica em contraposição à educação unilateral.

Trabalhando para formá-lo exclusivamente para uma condição [econômica, social, de comando] o tornais inútil para qualquer outra...carente de tudo, o que fará esse luxuoso imbecil que não sabe valer-se de si mesmo e só se aplica ao que lhe é alheio (Ibidem).

Na sociedade baseada na mútua dependência e forjada nas trocas, toda ociosidade é indigna, pois quem come na ociosidade o que não ganhou por si mesmo rouba- o...trabalhar é um dever para o homem social. Rico ou pobre, poderoso ou fraco, todo cidadão ocioso é um patife (1999, 250).

De todas as ocupações que podem fornecer o sustento do homem, a que mais se aproxima do estado de natureza é o trabalho manual; de todas as condições, a mais independente da sorte e dos homens e a do artesão porque ele só depende de sua sorte, é livre. É preciso que o aluno aprenda um ofício, menos para saber um ofício do que para

superar os preconceitos que o desprezam. Não trabalhar por necessidade mas por glória. Ele distingue talento de ofício, porque ele é uma arte puramente mecânica onde as mãos trabalham mais do que a cabeça.

Rousseau critica o “fidalgo de Locke”: não quero que meu aluno seja bordador, nem dourador, nem envernizador. Diz que é preciso escolher uma profissão honesta, útil, conveniente ao sexo e à idade, que não seja sedentária, que não “efemine” e amoleça o corpo. O maior exemplo é de homem que domina ofícios é Robinson Crusoé, porque o homem é o cidadão que não tem outro bem para colocar na sociedade a não ser ele próprio. Então, o homem deve bastar-se a si próprio e fazer de seu trabalho uma moeda de troca. O melhor ofício é a marcenaria. É limpo, é útil, pode ser feito em casa, cansa suficientemente o corpo, exige do trabalhador habilidade e inteligência e a elegância e o gosto estão incluídos na forma das obras que a utilidade determina.