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A formação e a carreira dos professores: A profissionalização da docência

Relatório nacional

3.3 Efeitos nas políticas: A estabilização dos eixos estruturantes

3.3.3 A formação e a carreira dos professores: A profissionalização da docência

O exame de 1983 dedicou atenção significativa à formação e à carreira dos professores, com várias recomendações, como referido atrás. Algumas dessas questões eram, à data, objeto de análises e intervenções, como a do Banco Mundial, a que já se aludiu, e onde se incluía o financiamento da construção e operacionalização de uma rede de Escolas Superiores de Educação, tendo em vista a formação de educadores de infância e de professores para a escolaridade obrigatória.

As questões sobre a redefinição da formação dos professores vinham já do alargamento da escolaridade obrigatória para 6 anos. Até essa altura, havia dois perfis de formação de professores em Portugal. Os professores do ensino primário, com formação integrada (incluindo no mesmo curso as componentes de formação científica de base, formação pedagógica e prática profissional), realizada nas Escolas do Magistério Primário e os professores dos ensino secundário com formação bietápica, isto é, com uma formação disciplinar universitária de base, complementada por uma formação pedagógica e um estágio profissional já em exercício na escola secundária (existiam alguns casos fora destes perfis como os professores de educação física e de música).

O prolongamento da escolaridade obrigatória para 6 anos colocou-se inicialmente de dois modos diferentes: ou a extensão do ensino primário com a criação de uma 5ª e 6ª classe ou a obrigatoriedade dos dois primeiros anos (o então 1º ciclo) do ensino secundário. Como vimos noutra parte do estudo, estas opções até coexistiram durante algum tempo. Em termos de perfil de professores, tal significava, no primeiro caso, a utilização de professores do então ensino primário e, no segundo caso, a utilização de professores do ensino secundário, a que correspondiam perfis de formação muito diferentes. Os primeiros, generalistas e com formação integrada mais curta e os segundos, especialistas por área de saber e com formação bietápica mais longa.

A opção que veio a formalizar-se foi a criação de um novo nível de ensino (o ensino preparatório) que, na prática, correspondeu à transformação do 1º ciclo do ensino secundário, mantendo uma organização multidisciplinar e utilizando o perfil dos professores do ensino secundário existentes. Essa opção, no entanto, foi sendo objeto de várias críticas, como a de uma excessiva pulverização do currículo a que correspondia um excessivo número de professores, com dificuldades acrescidas para a integração das aprendizagens, numa fase etária em que os alunos apresentariam ainda níveis pouco desenvolvidos das capacidades de abstração e integração. Por outro lado, não devemos ignorar que uma organização multidisciplinar de tipo secundário implica uma muito maior complexidade da organização escolar, quer do ponto de vista dos espaços escolares quer do ponto de vista da docência. O perfil de formação dos professores em causa é, também, no quadro da organização da formação existente, bastante mais longo. Tudo isto corresponde, pois, a um modelo com custos acrescidos significativos.

Deve referir-se ainda que, devido ao enorme aumento de alunos no ensino preparatório e no ensino secundário, o número de professores sem formação pedagógica e profissional cresceu exponencialmente, dado que o modelo bietápico de formação não conseguia responder às necessidades, especialmente na dimensão do estágio profissional, cujo número de vagas disponíveis era muito inferior ao número de docentes sem qualificação.

Do ponto de vista da carreira dos professores, a questão era também controversa. O facto de a maioria dos professores do ensino secundário (e agora também do preparatório) iniciar a sua atividade profissional sem formação pedagógica e profissional tinha, desde logo, uma consequência importante: a não identificação clara da atividade como verdadeiramente profissional e portanto o não reconhecimento de uma identidade e de estatuto profissional próprio.

Tal situação é objeto de análise, como já se referiu, no exame de 1983, que vem a recomendar “a profissionalização dos professores desde o início da carreira” e a aprovação legal de um estatuto de carreira.

A questão da profissionalização desde o início da carreira, como acontecia com os professores do ensino primário, tinha já sido alvo de atenção na “reforma Veiga Simão”, que previa uma significativa alteração dos modelos de formação, com a criação das Escolas Normais Superiores, que seriam responsáveis por uma formação integrada, e, portanto, profissionalizada, dos professores da escolaridade obrigatória (1º ao 8º anos), sendo os

professores do ensino secundário (pós-obrigatório) formados nas universidades mas em cursos incluindo uma componente de base disciplinar, uma componente pedagógica e uma componente de estágio profissional, garantindo assim a profissionalização de todos os professores no início da carreira. Um modelo baseado em tais princípios (os Ramos Educacionais) ainda foi instituído nas Faculdades de Ciências (Decreto-lei nº 443/71, de 23 de outubro) e subsistiu até à LBSE, vindo a ter continuidade, com evoluções ainda no sentido de uma maior integração das componentes de formação, nas “licenciaturas em ensino” criadas nas universidades novas (Minho, Aveiro, Évora), alargando-se depois a diversas outras, impondo progressivamente um “modelo integrado” de formação inicial dos professores que se opunha aos anteriores: “modelo teoricista”, das universidades, “modelo empiricista”, que viria a ser instituído na profissionalização dos professores (Decreto-lei nª 580/80, de 31 de dezembro) e “modelo compartimentado”, dos próprios ramos educacionais (Formosinho, 1986). Mas o abandono do modelo de escolaridade obrigatória de Veiga Simão e a não implementação das Escolas Normais Superiores (algumas ainda tiveram comissões instaladoras nomeadas, mas foram extintas pelo II Governo Provisório) conduziu à permanência, no ensino preparatório, do modelo de formação dos professores do ensino secundário.

O acordo com o Banco Mundial veio recuperar, pelo menos parcialmente, a ideia da criação de uma rede de escolas de formação de professores para a escolaridade obrigatória, agora inseridas na rede de ensino superior politécnico (na reforma Veiga Simão, as Escolas Normais Superiores constituíam uma rede autónoma das redes universitária e politécnica). No relatório de 1977, o Banco Mundial aponta três objetivos para o projeto de ensino superior politécnico em Portugal, sendo que o terceiro é referido do seguinte modo:

Melhorar a qualidade e a eficiência das escolas a todos os níveis, através do aperfeiçoamento académico do curso de formação de professores e do melhoramento das instalações, com relevo para: a) o desenvolvimento de um programa para a formação de professores no campo do ensino especial; b) a introdução de programas educacionais simultâneos para professores dentro de uma nova universidade, com destaque para a formação de professores dos ensinos preparatório e secundário; c) o fornecimento de instalações para cursos a tempo inteiro e ad-hoc para a reciclagem de professores de todos os níveis e d) a substituição das Escolas do Magistério Primário existentes por novos institutos regionais de formação de professores primários e preparatórios (ciclo básico).

A este relatório seguiu-se a aprovação do Decreto-Lei nº 427-B/77, já referido, e que cria o ensino superior de curta duração, que virá a designar-se ensino superior politécnico. Neste quadro, o Ministério da Educação editará em 1978 o projeto resultante do trabalho com o Banco Mundial sobre a formação de professores para a educação básica obrigatória “Plan for the Rationalization of Primary and Preparatory Teacher Training in Portugal”, a que se seguirá o “Programa Preliminar das Escolas Superiores de Educação”.

A questão é retomada no exame da OCDE, como vimos, e o modelo de formação inicial de professores que será instituído nas Escolas Superiores de Educação (ESE) (Portaria nº 352/86, de 8 de julho) revelar-se-á estrutural no sistema (Decreto-Lei nº 344/89, de 11 de outubro – ordenamento jurídico da formação de professores) até 2007 (Decreto-Lei nº 43/2007, de 22 de fevereiro). Tal modelo responde à recomendação do exame da OCDE de “maior assimilação entre professores do ensino primário e do ensino preparatório” adotando o mesmo modelo de formação, que assenta numa formação comum a todos os professores daqueles ciclos de ensino, tendo a formação de professores do ensino preparatório mais um ano de duração destinado a garantir a preparação para a “docência de uma área interdisciplinar”, do ensino preparatório, entretanto transformado em 2º ciclo do ensino básico, pela LBSE.

Convirá aqui notar que a aproximação do modelo de formação dos professores do ensino primário e do ensino preparatório, prevista desde Veiga Simão e objeto das preocupações quer da OCDE quer anteriormente do Banco Mundial, como instrumento de promoção da coerência da escolaridade básica e obrigatória de forma a assegurar um currículo mais integrado e menos pulverizado e disciplinarizado, acaba por ocorrer no preciso momento em que se dá um novo alargamento desta escolaridade, voltando a questão a colocar-se para o agora 3º ciclo do ensino básico (anterior ensino secundário). Tal circunstância ajudará a explicar as dificuldades de articulação dos modelos de formação de professores no ensino básico e também o facto de, apesar de a LBSE ter institucionalizado a docência por áreas interdisciplinares no 2º ciclo do ensino básico, se ter mantido uma organização curricular essencialmente por disciplinas e os professores, mesmo os entretanto formados pelo novo modelo das ESE (que naturalmente tinham que se integrar na organização escolar existente), lecionarem as disciplinas separadamente.

A tais dificuldades, decorrentes da organização do currículo, haverá que acrescentar outras, derivadas das clivagens e confrontos entre o estatuto da formação, quer ao nível dos graus académicos (bacharelato/licenciatura) e profissionais (profissionalizado/não

profissionalizado) quer da natureza (universitária/politécnica) das instituições de formação. O facto de a maioria das universidades não ter incluído, como fora feito pelas Faculdades de Ciências, a formação pedagógica e profissional nos seus cursos provocou, face às crescentes necessidades de professores, designadamente nos ciclos pós-primários derivados das extensões da escolaridade obrigatória e do aumento da procura social de educação nas décadas de 70 e 80, um recrutamento de inúmeros professores sem tal preparação. Essa situação constituía um claro óbice à profissionalização e à melhoria do estatuto profissional dos professores, então olhado como um pressuposto de uma “reforma eficaz do sistema” (OCDE, 1990). Assim, não surpreende que, no exame da OCDE, “a profissionalização de todos os professores” e a “instauração de uma estrutura progressiva da carreira docente” tenham sido também questões prioritárias. Embora já em 1980 tivesse sido criado um modelo de profissionalização para os inúmeros professores recrutados sem preparação pedagógica e profissional, designado por “profissionalização em exercício” (Decreto-Lei nº 580/80, de 31 de dezembro), o mesmo mostrava-se insuficiente para a resolução do problema, quer do ponto de vista quantitativo quer qualitativo.

Com a entrada em funcionamento das ESE, vão estas ser utilizadas não só para a formação de professores dos anteriores ensinos primário e preparatório (e também de educadores de infância), mas, dadas as suas características de instituições regionalizadas, numa malha cobrindo praticamente todos os distritos, também para assegurar a preparação pedagógica e a profissionalização dos muitos milhares de professores que haviam sido recrutados sem tal preparação (Decreto-Lei 405/86, de 8 de Dezembro).

Esta dupla intervenção das ESE – e também das novas universidades onde haviam sido criados Centros Integrados de Formação de Professores (CIFOP) – na formação inicial profissionalizada dos educadores de infância e dos professores dos 1º e 2º ciclos do ensino básico (anteriores ensinos primário e preparatório) e na formação pedagógica e consequente profissionalização em massa dos professores do 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário (além dos anteriores professores do ensino preparatório) dá, finalmente, uma resposta aos problemas criados, em termos de preparação de professores, com o vertiginoso crescimento do acesso à escola, desde o início dos anos 70, e com a suspensão das Escolas Normais Superiores da reforma Veiga Simão, sem a existência de alternativas, quer nas universidades quer fora delas. A requalificação – em formação de nível superior – da formação dos educadores de infância e professores do ensino primário e também da

preparação pedagógica e da profissionalização dos docentes de outros ciclos de ensino, que será finalmente ordenada num regime jurídico da formação de professores em 1989 (Decreto- Lei nº 344/89 de 11 de outubro), ao estabelecer uma aproximação das graduações e da natureza profissional da formação, é de grande importância na criação das condições para a estruturação de uma carreira docente comum aos diversos níveis de ensino.

Em 1988, o ministro Roberto Carneiro, através do Despacho nº 114/ME/88, nomeia uma comissão para estudar “a situação do professor em Portugal”, a qual era constituída pelos seguintes “universitários de várias instituições, regiões e ramos científicos”: Manuel Braga da Cruz, Alberto Romão Dias, João Formosinho Sanches, Joaquim Bairrão Ruivo, José Carlos Seabra Pereira e José Cordeiro Tavares. Esta comissão apresentou o seu relatório (Cruz, et al. 1988) que se debruçou sobre os seguintes aspetos: condições sociais da profissão docente, ingresso e permanência na profissão docente, exercício da atividade profissional, formação de professores, representações dos professores, estatuto socioprofissional e carreira, comportamentos culturais, sociais e políticos e evolução comparada do sistema remuneratório.

Logo na introdução, o relatório referia que, “apesar do crescente processo de profissionalização que têm vindo a conhecer os professores nos últimos tempos, é cada vez mais difundida a percepção de que o seu estatuto socioprofissional se tem vindo progressivamente a degradar” (p. 1190). O trabalho do grupo partiu de duas sondagens de opinião, feitas a amostras, definidas a partir de critérios de confiança estatística, representativas dos professores e da população em geral. O resultado do trabalho, apesar de não apresentar propostas finais, mostrava claramente a necessidade de definir um estatuto da profissão, tendo constituído um importante instrumento, com impacto político, no debate sobre o assunto.

Assim, em 1989 virá a ser aprovada “a estrutura da carreira do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário” (Decreto-lei nº 409/89, de 18 de novembro) e, no ano seguinte, o Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário (Decreto-lei nº 139-A/90, de 28 de abril), estabelecendo as duas condições constantes das recomendações do exame da OCDE: a profissionalização como condição indispensável de acesso à carreira docente e uma estrutura progressiva dessa carreira. Tais condições, bem como os princípios orientadores e a estrutura da carreira mantêm-se em vigor até hoje, ainda que com alterações introduzidas no estatuto,

ao longo do tempo, algumas das quais foram objeto de forte discussão pública – como as relativas à avaliação dos professores – mas que não modificaram, no entanto, os aspetos essenciais quer do estatuto quer da carreira.

3.3.4 A Lei de bases, a escolaridade obrigatória e a reforma educativa – A estabilização