• Nenhum resultado encontrado

A formação de professores e a construção de práticas curriculares baseadas

Uma das características da globalização mais antagônicas com a profissão de professor, gerando dúvidas sobre sua permanência nos moldes que conhecemos, é justamente aquela que se assenta na nova qualidade da técnica, especificamente nas novas tecnologias de informação e comunicação. É por isso que a discussão sobre o papel do educador exige que sejam repensados muitos modos, formas, concepções que até agora têm servido de base para a formação inicial e contínua.

O que é ser professor no mundo de hoje? Qual o futuro dessa profissão? Será que não serão substituídos pelas novas tecnologias?110 Se pensarmos nos desafios da atualidade, poderemosmos até temer, considerando as exigências feitas a esse profissional, entretanto, há luta, trabalho a fazer, esperando que arregacemos as mangas e coloquemos as mãos na massa.

É animador saber que podemos contribuir. A profissão de professor é uma daquelas que age sobre as possibilidades, sobre aquilo que Paulo Freire111 chama

de inédito-viável, ou seja, aquilo que podemos fazer, que depende de nós, mas ainda não foi feito.

A história do mundo ainda não está pronta e acabada, porque o mundo não está pronto, mas está sendo, acontecendo112. Eis aí onde devemos atuar, na

construção de um mundo melhor, mais humano, honesto e justo. A história, sob esse ponto de vista, é o nosso trabalho de construção.

Mas como construir a história, se o nosso campo de trabalho é o da educação?

110 Em uma conversa informal com o assessor jurídico da Prefeitura Municipal de Carinhanha, ele

afirmou que chegara às suas mãos uma proposta do governo da Bahia de oferecer curso de ensino médio no município, por meio de educação à distância. Tal proposta se encontrava em estudo, mas sem a aquiescência de tal profissional, tendo em vista que em Carinhanha, município com mais de 28 mil habitantes, há apenas um colégio estadual para atender apenas 1.300 (mil e trezentos) estudantes nesse nível de ensino. Os outros alunos ficam sob a responsabilidade da Prefeitura, já sobrecarregada com a educação infantil e o ensino fundamental.

111 FREIRE, A. M. A. Utopia e democracia: os inéditos-viáveis na educação cidadã, 2000. 112 FREIRE, P. Educação e mudança, 1986.

O compromisso com o educando, a esperança de que ele poderá se desenvolver e se tornar alguém muito importante, um sujeito crítico e consciente, na perspectiva de Freire (1986), já se constitui numa ação histórica. É disso que estamos falando, e não de coisas distantes ou espetaculares e sensacionalistas. São as coisas mais simples que exigem dedicação, participação, responsabilidade, que valem a pena. Por esse olhar, a profissão de professor tem muito futuro, e não será substituída pelas novas tecnologias. Enquanto houver pessoas passando pelo processo de escolarização, a ação do educador não será substituída. Mas não é de qualquer professor que estamos falando. Alguns, sem compromisso, serão naturalmente substituídos; entretanto, os mais sérios, éticos e socialmente comprometidos, não terão o que temer.

O papel do educador é um dos mais importantes na construção de uma sociedade. Referimo-nos ao educador sério, responsável, envolvido em alguma causa social e/ou cultural, com todos os desafios e as exigências de soluções situadas, originais, contextualizadas e éticas.

Referimo-nos ao profissional que atua de modo a desenvolver competências113 técnicas (organização do trabalho pedagógico), humanas

(relacionamento interpessoal, principalmente com alunos, inteligência emocional etc.), políticas (visão crítica sobre o mundo que o rodeia e compromisso de lutar em favor dos grupos socialmente excluídos) e culturais114. Coerente com esses

desafios, esse educador também luta incansavelmente pela melhoria de suas condições de trabalho e pela sua dignidade profissional.

Eis aí a construção do mundo, das possibilidades históricas. Mas, como as possibilidades são muitas, faz-se necessário realizar a delimitação dentro de uma complexa rede de fios e tramas tecida no emaranhado da educação. Em cada contexto, as necessidades se impõem, exigindo dos professores respostas concretas, tendo em vista a história local.

Em nosso caso, o desafio consiste em intervir na escola de uma comunidade negra rural, tomando o currículo e a formação de professores como instrumentos de mudança. A compreensão do currículo como política cultural ocorre dentro de uma

113 Cf CANDAU, Vera Maria. A relação teoria-prática na formação do educador, 1993 e

PERRENOUD, Phillipe. Dez novas competências para ensinar, 2000.

114 Cf. MOREIRA, Antonio Flávio B. e MACEDO, Elizabeth F. de. Em defesa de uma orientação

análise que inclui as diferenças étnicas e culturais, ou seja, significa entender “como a escola recebe, legitima ou rejeita as experiências e os saberes dos alunos/as e como estes/as se submetem ou resistem às determinações e normas escolares“ (GIROUX, apud MOREIRA, 1996: 16).

Para isso, é importante vencer a pura teorização e trabalhar com situações retiradas da prática para captar seus nexos internos. Isso é o que chamamos de “pisar no chão da escola”. Ou seja, qualquer categoria de análise ou proposta somente poderá contribuir se ajudar o professor a refletir sobre aquilo que ele faz no dia-a-dia. Obviamente, é imprescindível incluir nessa reflexão discussões mais gerais, como as críticas sobre a formação colonialista, a qual tem condicionado os professores, que acabam reproduzindo uma cultura europocêntrica, masculina, branca e judaico-cristã.

Assim, apresentamos um pouco do processo da pesquisa, do fazer, ou seja, demos alguns flashes, mostrando como enfiamos as mãos na massa. Isso é importante para que possamos explicitar o processo de construção das categorias que se constituem também em eixos norteadores da proposta curricular da escola pesquisada.

Tivemos que limitar o trabalho às atividades possíveis. Foi assim que acabamos por concentrar a agenda da pesquisa na elaboração do projeto pedagógico e na formação de professores. Por causa disso, a elaboração da proposta curricular, destacando as atividades e áreas de estudo para cada série, no capítulo 4, ficou para ser desenvolvida posteriormente115. Lembramos também que o

trabalho com o calendário escolar, por ser uma atividade que exige maior aprofundamento e, portanto, bastante tempo para pesquisar e sonhar, também é algo a ser organizado na seqüência do processo de formação contínua.

Durante nossa permanência no campo, introduzimos as discussões com o calendário, a partir de uma proposta de calendário afro, mas o grupo achou prematuro mudar as orientações da Secretaria Municipal de imediato, uma vez que esta sequer se interessou em acompanhar os trabalhos, nem mesmo visitando a escola no período de 2003-2004. Tal mudança mexeria com os tempos, as

115 O planejamento das disciplinas é um compromisso entre mim e a escola. Trata-se de um trabalho

a ser desenvolvido após o meu retorno às atividades acadêmicas na Universidade do Estado da Bahia – Uneb, já que dessa forma poderei encontrar o apoio que a Prefeitura Municipal tem negado.

condições de trabalho e as condições objetivas nas quais os professores assumem as atividades profissionais e pessoais. Ou seja, seria preciso, por exemplo, que todos os professores fossem do quadro de pessoal, que atuassem apenas na localidade, que todos residissem no povoado, dentre outras condições.