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O saber global e o saber local: o que dizem

As primeiras discussões mundiais sobre saberes globais e saberes locais giraram em torno da problemática ambiental. As preocupações com as mudanças climáticas no planeta passaram a compor a agenda global de líderes políticos dos principais países, saindo do domínio local ou mesmo nacional para o âmbito global.

Em torno das chamadas questões globais busca-se desenvolver uma solidariedade global, uma comunidade unida na defesa de alguns princípios e de reivindicações pela garantia do exercício da condição humana na terra. Como exemplo, as ações dos Estados Unidos, na questão da indústria emissora de gases CFC, devem considerar prioritariamente o interesse global: o efeito estufa, a camada de ozônio, e não apenas os interesses da indústria daquele país.

Os movimentos sociais, por meio de organizações não-governamentais, buscavam articular o discurso do desenvolvimento sustentável à melhoria da qualidade de vida e diminuição da pobreza no mundo. No final da década de 90, muitos eventos foram organizados com base nessa agenda.

A título de ilustração, destacamos a realização de uma mesa-redonda, em 1999, pela Universidade de Brasília. Os convidados, o pensador francês Edgard Morin e o líder índígena Marcos Terena, discutiram sustentabilidade, saberes locais e saberes globais47. As conferências realizadas no evento foram organizadas em um

livro que procurava mostrar suas preocupações em relacionar as questões locais às questões globais.

Analisamos também textos considerados importantes dentro da atual ordem econômica e cultural mundial. O Relatório Unesco expressa a posição de uma das mais respeitadas e importantes organizações supranacionais na América Latina, responsável pela promoção e disseminação de novos conceitos que influenciam diretamente as reformas curriculares e as políticas de educação nacionais, ajustando-as às necessidades do processo da globalização neoliberal.

47 MORIN, Edgard. Sabers locais e sabers globais: o olhar transdisciplinar. 3. ed. Rio de Janeiro:

O Relatório sustenta que o tema não é novo, mas aparece como uma das tensões a ultrapassar que “constituem o cerne da problemática do século XXI” 48. Há

ainda outros temas correlatos: o universal e o singular, tradição e modernidade. ... Como aprender a viver juntos nesta “aldeia global”, se não somos capazes de viver nas comunidades naturais a que pertencemos: nação, região, cidade, aldeia, vizinhança? A questão central da democracia é saber se queremos, se podemos participar da vida em comunidade (p. 11).

... A tensão entre o global e o local: tornar-se, pouco a pouco, cidadão do mundo sem perder as suas raízes e participando, ativamente, na vida do seu país e das comunidades de base (p. 14).

O mal-estar causado pela falta de visão clara do futuro conjuga-se com a consciência cada vez maior das diferenças existentes no mundo, e das múltiplas tensões que daí resultam, entre o “local” e o “global” (p. 45).

O problema do global e do local é compreendido como tensão e não conflito. Não sendo antagônicos os dois pólos, cogita-se a possibilidade de melhorar essa relação, investindo na formação do cidadão do mundo que, mantendo suas raízes, adquira o conhecimento do mundo, atue ativamente na vida do país e da comunidade, buscando a construção de uma aldeia global.

O local é definido como comunidade de base, raízes ou até mesmo o próprio país. As comunidades naturais, a nação49, a região, a cidade, a aldeia, a vizinhança são outras referências. E a educação deve voltar-se para a noção de identidade na perspectiva de uma dupla leitura: afirmar sua diferença, descobrindo os fundamentos da sua cultura, e reforçar a solidariedade do grupo.

Nesse contexto, a diferença e a desigualdade são levemente relacionadas às questões econômicas e sociais. O indivíduo se sente confuso diante das complexidades da mundialização, principalmente no que se refere às mudanças das estruturas de trabalho. Apesar desse entendimento, não se percebe aí uma proposta de mudança das relações econômicas de dominação, mas atribui-se à educação grande importância, levantando muitas expectativas em torno do seu poder, cabendo a ela (DELORS et. al., 2001):

48

Relatório para a Unesco (1996: 14).

49 Segundo Hobsbawm (1997), o regional e a aldeia não são análogos à nação. A nação é uma

1. A preparação de cada indivíduo para se compreender a si mesmo e ao outro, através de um melhor conhecimento do mundo (p. 47);

2. A formação da capacidade de julgar (p. 47);

3. A reorganização dos ensinamentos de acordo com uma visão de conjunto dos laços que unem homens e mulheres ao meio ambiente, recorrendo às ciências da natureza e às ciências sociais (p. 47);

4. Trabalhar com a noção de identidade com uma dupla leitura: afirmar diferença, descobrir os fundamentos da sua cultura, reforçar a solidariedade do grupo (p. 48);

5. Procurar tornar o indivíduo mais consciente de suas raízes, a fim de dispor de referências que lhe permitam situar-se no mundo, ensinando-lhe o respeito pelas outras culturas (p. 48);

6. O ensino de história, que serviu para alimentar identidades nacionais, pondo em relevo as diferenças e exaltando o sentimento de superioridade, deve descobrir que os outros povos têm uma história, também ela, rica e instrutiva (p. 48).

O teor desse discurso volta-se para a produção e reprodução da ordem social globalizada. Há uma preocupação com o envolvimento de todos na construção de competências, habilidades cognitivas50 e identidades culturais para a vida na sociedade das relações mundializadas, como fruto natural do processo de globalização.

Não se questionam as relações de poder, transparecendo uma visão idílica de um mundo no qual todos possam viver em paz. Parece haver uma crença num grande congraçamento universal, no qual todos viveriam juntos, mesmo com suas diferenças culturais51. Analisemos alguns dos itens destacados acima.

No item um é atribuída uma força extraordinária ao conhecimento. Se o problema da alteridade dependesse apenas da questão do saber, os países nos quais as pessoas têm mais acesso ao conhecimento deveriam demonstrar essa compreensão e a própria civilização ocidental não estaria passando por um certo mal-estar.

A questão ambiental, destacada no terceiro ponto, não é algo que se possa considerar independentemente da crítica ao próprio desenvolvimento do capitalismo.

50 A sociedade do conhecimento e a qualidade total são alguns exemplos. 51

Heldina Pinto, em Os saberes das práticas religiosas da comunidade rural negra de Barra do

Parateca: uma articulação com a cultura escolar, defende a possibilidade de diálogo entre as

diferenças. Mas, sob a lógica da globalização neoliberal, percebe-se o acirramento da intolerância, principalmente considerando a questão religiosa.

O Protocolo de Kyoto52 é um exemplo cabal: os Estados Unidos da América se

recusam a ratificar tal tratado, jogando por terra os esforços pela construção do “único parâmetro jurídico internacional disponível para efetivar a Convenção do Clima, firmada no Rio de Janeiro em 1992”53, mesmo sendo um dos países que, por sua intensa atividade econômica, respondem pelos mais altos volumes de emissões de gases.

A adoção de medidas de diminuição dos impactos ambientais, causados pela indústria dos países mais desenvolvidos exige a mudança na “matriz energética dos países, substituindo o uso de combustíveis fósseis, como carvão e petróleo, por outras fontes de energia. Exigem também mudanças no uso do solo e redução do desmatamento e das queimadas”54. E isso a indústria do petróleo e outros segmentos da economia norte-americana não aceitam.

É importante salientar as relações de poder presentes nessa discussão. O tema do imperialismo, por exemplo, é deixado de lado nas orientações da Unesco, quando propõe a “reorganização dos ensinamentos de acordo com uma visão de conjunto dos laços que unem homens e mulheres ao meio ambiente, recorrendo às ciências da natureza e às ciências sociais” (p. 47).

O multiculturalismo, o saber local e o saber global, no item cinco, não podem ser analisados em sua plenitude, porque “se situam no contexto hierarquizado das sociedades” (ORTIZ, 1994: 97). No campo da educação e do currículo, mesmo considerando que a diferença não pode ser compreendida fora dos processos lingüísticos e de significação, não se pode enfatizar apenas o processo discursivo e o puro textualismo. É preciso destacar os “processos institucionais, econômicos, estruturais que estão na base da produção dos processos de discriminação e desigualdade baseados na diferença cultural” (SILVA, 1999: 87).

Segundo Silva (1999), as teorias pós-críticas de currículo, como o multiculturalismo crítico, compreendem que as diferenças são produzidas e reproduzidas por meio de relações de poder, não devendo ser simplesmente respeitadas ou toleradas. O mais importante é ir ao cerne das relações de poder que

52 “Tratado internacional firmado em dezembro de 1997 que prevê a redução das emissões de gases

estufa por países industrializados”. Folha de São Paulo, n. 16, set. 2001. Caderno Especial: 10 focos de tensão. (p. A5).

53 Iid., ibid.

54 Id., ibid. “OS EUA são responsáveis por 22,2% de todo o carbono emitido no mundo, embora

comandam sua produção. Um currículo que tenha como princípio o respeito à diversidade étnica e cultural deve insistir na análise dos processos pelos quais as

diferenças são produzidas através das relações de assimetria e desigualdade... A diferença, mais do que tolerada ou respeitada, é colocada permanentemente em questão (p. 89).

Percebe-se uma aproximação do texto da Unesco com a visão do multiculturalismo humanista liberal55 ou igualitarismo abstrato. Verifica-se uma forte crença no poder da educação escolar, no sentido de construir a vida em comum ou a aldeia global. Não se questiona como as diferenças são produzidas no processo de desenvolvimento social e histórico. Os que adotam essa visão acreditam que a “igualdade está ausente [...] não por causa da privação cultural das pessoas latinas e negras, mas porque as oportunidades sociais e educacionais não existem para permitir a todos competir igualmente no mercado capitalista” (MCLAREN: 1997, 119).

Destacam-se as idéias de tolerância, respeito, convivência harmoniosa entre as culturas etc. Por mais que se afirme haver relações entre a economia e a cultura, permanece uma visão essencialista e certa superioridade para com aqueles que são tolerados.

Assim, as categorias progressistas, aparentemente, sinalizam que há uma preocupação mundial com os riscos da globalização perversa. Uma análise mais radical, entretanto, explicita a fragilidade de tal textualismo diante da complexidade da situação. Não se pode negar a existência de conflito com as idéias neoliberais quando se quer realmente que as pessoas vivam num mundo melhor. Assim, o currículo escolar não pode simplesmente ser utilizado para servir à perversidade da globalização.

Acreditamos ser possível a criação de alternativas no uso situado do saber local. Não se trata da busca de um revival, nem de uma volta acrítica da tradição, mas de outra leitura, como apresentamos a seguir.

55

McLaren (1997) criou quatro tipologias que diferenciam o multiculturalismo. Uma delas, a visão humanista liberal, prega a existência de uma igualdade, ao afirmar, apenas no campo teórico, que todos têm, supostamente, as mesmas condições de competir e ascender na sociedade capitalista. Rouanet (apud LICÍNIO, 1997) afirma que o igualitarismo abstrato defende a idéia de igualdade entre todos os homens, não atentando para as diferenças reais entre as pessoas, criadas no processo de desenvolvimento social e histórico.