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CAPÍTULO 3 – A FORMAÇÃO DOCENTE: do técnico ao intelectual com mandato

3.3 A formação docente na perspectiva crítica

Na seção anterior, tentamos mostrar os limites da perspectiva instrumental para a formação de professores. Ao elaborar tal argumentação, recorremos a Giroux (1997) quando pontua o surgimento de perspectivas críticas para a superação do tecnicismo nesse campo do conhecimento. No que se refere a isso, Zeichner (1993) sinaliza a

9 Em nossa dissertação, analisamos os trabalhos que foram apresentados na ANPEd e no ENDIPE, entre

os anos de 1995 e 2004 e que focalizaram o início da docência, período que abarca os 5 primeiros anos da profissão.

existência de pelo menos 4 vertentes epistemológicas para a formação docente nos Estados Unidos.

De acordo com ele, há a tradição acadêmica que acredita que a melhor maneira de preparar os professores é dar-lhes uma formação sólida na área das Letras, complementada pela experiência de aprendizagem em uma escola. Uma segunda tradição, por ele chamada de eficiência social, acredita no poder do estudo científico para o estabelecimento da base da construção curricular da formação de professores. A tradição desenvolvimentalista parte do pressuposto de que é a ordem natural do desenvolvimento do aluno que estabelece a base para a determinação do que deve ser ensinado tanto aos alunos das escolas públicas como aos seus professores. Por fim, a tradição da reconstrução social defende que a escolaridade e a formação de professores são elementos cruciais do movimento para uma sociedade justa e humanitária. É nesta última tradição10 que adotamos neste trabalho.

A perspectiva crítica, inspirada principalmente em Paulo Freire, ao trazer à baila as discussões sobre a formação de professores para a construção de uma sociedade justa e humanitária, assume que a educação é, inelutavelmente, um ato político.

Se na abordagem instrumental não cabem questionamentos acerca da natureza e da finalidade do conhecimento e do currículo, a perspectiva crítica sugere que sejam concebidos como construção social e histórica. Neste sentido, Freire (2005) argumenta que o conhecimento tem historicidade e não pode ser tratado como isento das relações de poder e dos interesses políticos e ideológicos.

A formação inicial de professores não pode mais ser vista como um momento em que só se realiza a transferência de conhecimentos aos futuros professores. Em vez disso, ela deve ser uma etapa na qual professores e alunos, juntos, construam as possibilidades de interpretação e inserção no mundo.

Essa possibilidade de construção do conhecimento é mediada pelo processo de reflexão. A idéia de formar professores como profissionais reflexivos encontra suas premissas em Donald Schön, que elabora seu pensamento baseado no pragmatismo de

10 Várias são as nomenclaturas possíveis de serem encontradas na literatura para denominar as diferentes

tradições da formação de professores. Nesta tese, optamos pela adoção da expressão perspectiva crítica, com objetivo heurístico de marcar as diferenças epistemológicas em relação à perspectiva instrumental.

John Dewey. Uma abordagem crítica de educação, ao reconhecer a importância de processos reflexivos para a formação e atuação docente, acrescenta ao que fora pensando por Schön, a defesa que tais processos devem possuir um conteúdo, um objetivo, um direcionamento.

No que se refere a isso, Zeichner (1993) ao discorrer sobre a ação reflexiva de professores, defende que ela compreende, necessariamente, três atitudes por parte dos professores. A primeira atitude seria a abertura de espírito, isto é, o desejo ativo de se

ouvir mais do que uma opinião, de se atender a possíveis alternativas e de se admitir a possibilidade de erro, mesmo naquilo em que se acredita com mais força (p. 18). Uma

segunda atitude necessária à ação reflexiva é a responsabilidade social, que implicaria um rigoroso cuidado das conseqüências de uma determinada ação. Para o autor, há quatro tipos de conseqüências: as pessoais, as acadêmicas, as sociais e as políticas. Por fim, uma terceira atitude deveria ser a sinceridade, que se relaciona à abertura de espírito e à responsabilidade na condução do processo educativo.

Desta forma, ganha força a tese de Paulo Freire (2005) de que os condicionantes pessoais (de classe, raça, gênero, orientação sexual, religião, idade, localização geográfica etc.) precisam ser levados em conta nas análises sobre a formação e a prática dos professores. Isto porque o ensino deve ser concebido como uma prática que sofre influências do meio histórico-cultural no qual a escola está inserida, não se restringindo ao interior das salas de aula. Além disso, a história de vida de cada professor precisa ser considerada, pois, como sugere Zeichner (1993), todos os professores são seres interculturais, uma vez que cada um tem um envolvimento com grupos (de raça, classe social, gênero, religião etc) que contribuem para a construção da sua identidade.

É essa análise dos condicionantes sociais que vai permitir que o professor assuma-se como sujeito de sua própria história, uma vez que ele passa a perceber-se como ser em construção que consegue mudar os rumos de sua própria história. Paulo Freire (2005) afirma que o professor é um ser condicionado, mas não determinado pelo seu contexto histórico, social e cultural. Neste sentido, ele argumenta:

Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em

que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam (FREIRE, 2005, p. 54).

A perspectiva crítica parte da premissa básica de que o professor pode fazer diferente, ele não precisa continuar reproduzindo uma educação baseada nas tradições que acentuam a desigualdade. Cortella (2004) argumenta que a educação deve basear-se na ruptura do “porque aqui é assim, sempre foi assim” e a educação crítica deve proporcionar ferramentas ao trabalho pedagógico que permitam fazer tal ruptura.

Além dessa mudança epistemológica na maneira de se conceber o currículo e o conhecimento e o papel docente, há outra mudança conceptual na formação docente. Se na racionalidade técnica, a formação de professores fica restrita a um curso de formação inicial como o momento por excelência, na perspectiva crítica, é um processo contínuo sem um fim estabelecido a priori, acepção essa já trazida pela epistemologia da prática. Assim sendo, formar professores não é algo que um curso de graduação dê conta, pois, como argumenta Zeichner (1993), na melhor das hipóteses um curso pode preparar os futuros professores para começarem a ensinar.

3.4 – O PROFESSOR CRÍTICO: do técnico ao intelectual com mandato de