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O TRATO COM O UNIVERSO DE CONHECIMENTO NA FORMAÇÃO INICIAL: A NECESSIDADE DE MUDANÇAS

3. A formação profissional em Educação Física: o quadro paradigmático encontrado

Nem o conhecimento que os professores ensinam, nem as maneiras empregadas para ensinar são inocentes; ambos estão informados por valores que precisam ser reconhecidos e usados criticamente por suas implicações e efeitos (GIROUX, 2000, p. 72).

A formação profissional em Educação Física tem sido alvo de muitos estudos, principalmente nos últimos vinte anos. De acordo com Barbosa-Rinaldi e Martineli (2003), o aumento de estudos, evidenciados nos principais eventos nacionais da área, como as Reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE), entre outros, e os publicados em revistas especializadas, demonstra a preocupação dos pesquisadores em levantar problemas e apontar caminhos no sentido da intervenção, porque se reconhece a necessidade de mudanças.

Ao observarmos o quadro da educação em geral, observamos que se evidenciam as críticas ao modelo tecnicista na formação de professores. Essa corrente de pensamento destaca que, com o aparecimento, nos anos de 1950, de uma tecnologia35 educativa apoiada na psicologia do comportamento, desenvolveu-se uma imagem do professor como um técnico

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“[...] especializado que aplica as regras que derivam do conhecimento científico, sistemático e normalizado” (PÉREZ GÓMEZ, 1992, p. 98).

Na formação profissional em Educação Física, a visão do professor como técnico encaixou- se com perfeição porque a maioria das disciplinas recebia o nome e o conteúdo de desportos institucionalizados e os docentes, em geral, haviam sido atletas das mesmas modalidades esportivas (BARBOSA, 1999).

A partir dos anos de 1980, estudiosos da área de Educação Física voltam-se para essa problemática na tentativa de buscar uma nova postura para o ensino superior, entendendo que o período de formação inicial é importante, pois é nele que se adquirem conhecimentos indispensáveis para a atuação profissional. É o momento em que os futuros professores poderão ou não, alterar a concepção que possuem de Educação Física, assumirão ou não, uma prática pedagógica permeada pela cultura dominante.

Os estudos sobre essa temática foram desencadeados pela necessidade de reestruturação dos Cursos de Educação Física no sentido de rever sua estrutura, organização e de repensar os fundamentos que deveriam ser priorizados na formação profissional, com vistas a capacitar os professores para atuar nos diversos campos que se constituíram nas últimas décadas. A comunidade acadêmica da Educação Física mobilizou-se para oferecer uma formação coerente com as aspirações da sociedade brasileira daquele momento.

Indiscutivelmente, essas mudanças foram necessárias, mas as discussões sobre a formação profissional continuam sendo temáticas atuais, porque, analisando estudos sobre o processo de formação de professores de Educação Física (BETTI (1992); FARIA JR. (1992); PÉREZ GALLARDO et al. (1997); PALMA (2001); MARTINELI (2001); RIBEIRO (2003)), observa-se que, ainda hoje, evidencia-se como paradigma36 hegemônico a racionalidade

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Termo com o qual Thomas Kuhn (v. kuhniano) designou as realizações científicas (p. ex., a dinâmica de Newton ou a química de Lavoisier) que geram modelos que, por período mais ou menos longo e de modo mais ou menos explícito, orientam o desenvolvimento posterior das pesquisas exclusivamente na busca da solução para os problemas por elas suscitados (KUHN, 2003).

técnica ou tecnológica (instrumental) nos cursos de Educação Física, quer seja na forma como os currículos estão estruturados, ou no fazer pedagógico dos docentes.

Palma (2001, p. 15) salienta que esta área do conhecimento, historicamente, tem-se fixado, quase de modo exclusivo, na técnica, no saber-fazer e no saber-ensinar, enquanto que o “aprender a aprender ficou sem espaço”. Acrescenta que este tipo de formação centra-se na “aquisição de um corpo de técnicas de ginástica, esporte e, eventualmente, de recreação, que originou a supervalorização da prática, sem levar em consideração a base teórica necessária” (p.15).

Nesse sentido, parece-nos que existe um consenso imaginário de que “basta os alunos saberem fazer para saberem ensinar futuramente” (DAOLIO, 1999, p.112), e que, para trabalhar os fundamentos históricos, culturais, antropológicos, psicológicos, etc., existem outras disciplinas que exploram essas dimensões. Fica ainda mais evidente a fragmentação do conhecimento no fazer dos docentes que atuam no ensino superior. Como os professores trabalham de maneira compartimentalizada e individualizada, ocasionam muitas vezes, duplicidade de conteúdos e ausência de outros. Acrescenta-se a isto o fato de que todo processo de fragmentação do conhecimento leva à proletarização e desqualificação do profissional da área.

Acreditamos que um dos motivos para que isso aconteça esteja no fato de que esses docentes não possuem base teórica necessária para uma atuação docente diferenciada, muito provavelmente porque essa base teórica nunca tenha sido colocada em prática e, muito menos tenha feito parte da formação desses docentes. Talvez, também por isso não consigam quebrar com o paradigma vigente.

Nesse sentido, Kincheloe (1997, p.22) afirma que o paradigma dominante, presente na formação inicial e continuada de professores, considera perigoso contextualizar o processo cultural, social no qual estamos imersos, pois o risco de se despersonalizar a culpa é muito grande, inocentando maus alunos e colocando em perigo o profissionalismo do professor. Além do que, seria um risco romper com as crenças, concepções, valores que estão

presentes, mesmo que de forma velada, na maneira como se dá a formação profissional na atualidade, pois, mesmo para os mais críticos, o desconhecido causa um certo temor. Como as idéias novas podem causar mudanças, mas são incertas, é mais fácil fazer como sempre fizemos. No entanto é mais perigoso, porque foram as velhas idéias que nos trouxeram onde estamos e, se não mudarmos, serão elas que nos levarão ao fim.

Nessa direção, os docentes que possuem uma visão crítica e progressista de educação e formação profissional parecem conviver com um constante mal-estar em função dessa realidade que está posta e buscam soluções para romper com o paradigma hegemônico. Entre eles, parece haver um consenso de que mudanças são necessárias, já que, o que é impossível hoje, pode ser o padrão de amanhã. O desafio é estar pronto para intervir na realidade, mesmo sabendo que existem possibilidades e limites para que isso aconteça. O prêmio para tal ousadia será ser pioneiro de uma nova realidade.

Em seu livro, Kuhn (2003) examina como os cientistas mudaram os seus paradigmas em Física, Química ou Biologia, e o que acontecia quando o faziam. O que ele descobriu pode explicar porque, tantas vezes, deixamos de prever grandes e significativas descobertas. Suas conclusões nos ajudam a lidar com a mudança com mais eficácia. Genericamente, os paradigmas, no caso o paradigma tecnológico presente na formação profissional em Educação Física, filtram as possibilidades de mudanças porque existem regras e regulamentos (presente no quadro paradigmático da área) que impedem a mudança no foco de observação. Como resultado disso, o que nos parece óbvio está relacionado ao paradigma vigente e, nesse caso, para que haja mudanças de fato, é preciso que antes de qualquer coisa rompamos com ele. Para tanto, acreditamos ser necessário quebrar os laços com o paradigma vigente, rumo a uma nova epistemologia para a formação de professores, de modo a quem sabe, podermos perspectivar uma sociedade mais participativa e dona de sua história.

CAPÍTULO 2

ANALISANDO A REALIDADE E AS POSSIBILIDADES DE