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Parte da literatura disponível sobre o Mercosul relaciona a análise deste processo com o movimento integracionista que é verificado em nível mundial, não parecendo haver como negar a influência desses acontecimentos. Em decorrência desse quadro, há que se destacar pelo menos dois tipos básicos de postura que podem ser verificados na integração mercosulina, por um lado, o otimismo bolivariano e, por outro, o oportunismo histórico (PIRES FERREIRA, 2008).

No caso do primeiro, trata-se de associar os antigos ideais na busca pela homogeneização das diversas culturas latino-americanas, com o intuito de

apresentar suas demandas políticas e econômicas a nível global e em uma só voz, o que poderia representar o fortalecimento relativo de cada um dos parceiros. Já no segundo tipo existe a percepção de que iniciativas como a existente no Mercosul são na realidade orientadas para beneficiar grupos poderosos específicos, tanto nacionais como multinacionais. Nessa perspectiva, vislumbra-se a possibilidade de que o fenômeno da integração regional seja o primeiro passo rumo à abertura multilateral das Américas, em um cenário de liberalização generalizada. Com o fracasso da Rodada Uruguai do GATT e o surgimento da OMC, o Mercosul passou a ser visto por muitos como parte de um futuro bloco interamericano de comércio, aos moldes da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

Como destaca Pires Ferreira (2008), no centro dos processos seletivos de liberalização comercial que se desenha no mundo, uma postura pragmática vê a consolidação dos vínculos regionais como uma maneira de evitar os riscos inerentes a cenários futuros adversos em termos comerciais e políticos. Desse modo, a integração pode ser observada como sendo uma arma defensiva, da forma como se apresenta, por exemplo, na Europa, já que superada a Guerra Fria, o continente europeu utiliza claramente os mecanismos da integração para combater a instabilidade política e as disparidades econômicas, assim como as nuanças ocasionalmente violentas que o nacionalismo assume. Este ideário está claramente contido no Tratado de Maastricht7, que preconiza o desenvolvimento europeu rumo a uma união política que articule tanto elementos comuns de política econômica e monetária, quanto de política externa e de segurança.

Transposto para América Latina, o fim dos antagonismos que potencializaram as rupturas jurídico-institucionais internas, desde o início dos anos 60, condiciona os esforços para o desenvolvimento tanto político como econômico desta zona. Assim, pode ser vista como defensiva também a disposição de crescimento conjunto que é reafirmada em praticamente todos os tratados regionais desde a Ata para a Integração Brasil-Argentina (1986), bem como as noções de defesa da plena vigência das instituições democráticas, celebrada esta pela Declaração de Iguaçu (PIRES FERREIRA, 2008).

7 O Tratado de Maastricht ou Tratado da União Européia foi assinado em 07 de fevereiro de 1992, tendo sido um marco significativo no processo de unificação européia, anexando à integração econômica um importante componente de unificação política. O seu resultado mais evidente foi a substituição de Comunidade Européia para União Européia, uma denominação que possui um conteúdo muito mais profundo.

Mais do que nunca, as prerrogativas democráticas são vistas hoje como sendo indispensáveis para o sucesso do Mercosul, bem como deixam claro a necessidade da criação de instituições supranacionais, o que se encontra ainda bastante obstaculizado, talvez pela inércia de alguns setores:

Este parece ser o cerne das questões referidas à dimensão democrática no processo de integração subregional. Subjacente a própria noção de integração está a necessidade de instituições supranacionais como condição basilar para a constituição do MERCOSUL, conforme consagrado no Tratado de Assunção. Porém, apesar dos esforços envidados por alguns setores da sociedade civil, como círculos intelectuais e sindicalistas, o arranjo macro-institucional engendrado para viabilizá-lo não tem sido visto como o mais adequado para os fins manifestos. Centrado no Conselho do Mercado Comum e no Grupo do Mercado Comum, tal arranjo restringe os espaços de participação social e cerceia o envolvimento de outras esferas governamentais, como os poderes legislativos e judiciários de cada país (PIRES FERREIRA, 2008, grifos do autor).

No entender de Pires Ferreira (2008), a estrutura básica em que se organiza institucionalmente o Mercosul, parece seguir, em termos de quadro teórico, o “modelo de equilíbrio” ou “elitismo pluralista” proposto por Schumpeter (1942), sendo que este modelo concede às modernas sociedades industriais (e em menor ou maior grau, também às sociedades latino-americanas) um sistema composto pela articulação das seguintes categorias básicas: equilíbrio, pluralismo e elitismo.

A questão referente ao equilíbrio, para além da harmonização sistêmica entre os grupos que disputam o poder, diz respeito à consolidação da ordem política e também à estabilidade dos modelos nacionais de desenvolvimento econômico em curso. Nesse sentido, a manutenção das regras, expressa pela continuidade de macropolíticas e na transição pacífica para o poder, é o elemento principal. A importância desse equilíbrio, que deverá ser preferencialmente democrático, define, inclusive, as políticas multinacionais de ajuda e investimento que serão elaboradas. A problemática concernente ao pluralismo está relacionada à forma pela qual grupos de indivíduos orientam suas condutas sociais, sendo que, nesse plano, a atuação dos atores sociais é definida pela identificação razoavelmente precisa de seus interesses no âmbito político, cultural e econômico. Finalmente, o tema referente ao elitismo materializa-se na exclusão no conjunto da sociedade civil das esferas de planejamento, implementação e gestão de políticas públicas (PIRES FERREIRA, 2008).

Para o autor, a articulação dessas categorias em torno de grupos políticos e econômicos relativamente restritos e perenes, faz com que essas políticas busquem na sociedade, de uma forma geral, somente legitimação para suas ações e os recursos necessários para sua implantação e continuidade. Dessa forma, a estrutura político-institucional do Mercosul, além de claramente anti-popular e excludente, parece inadequada para realizar o seu objetivo primordial, qual seja, a construção de um novo modelo de desenvolvimento econômico e produtivo fundamentado em um mercado comum.

Entretanto, para adequar-se aos propósitos de um mercado comum o atual processo de integração mercosulino deveria ampliar suas esferas de participação política não somente a nível governamental, mas em termos da incorporação efetiva de outros atores da sociedade. De todo modo, nota-se, portanto, que para além das considerações de caráter meramente estrutural, o bojo mercosulino expõe os limites e a forma da presente dinâmica de democratização verificada no continente, esta centrada fortemente em propostas e iniciativas do poderes executivos nacionais.

A falta de participação ampla de atores civis das sociedades pertencentes aos membros do bloco o torna um projeto essencialmente de governos centrais – claramente um processo de características intergovernamentalistas –, no entanto, não cabe crítica direta ao processo integracionista, uma vez que parte dessa ausência participativa democrática também ocorre no interior das mesmas nações que o integram, pois nestas, as populações viveram um tempo considerável de sua história sobre os mais diversos domínios, ditaduras e toda sorte de sistemas antidemocráticos.

Democracia ou sua inexistência, não é um termo simbólico que possa ser aplicado de forma irrestrita nas leituras acerca de como ocorrem as interações políticas nas sociedades, tanto nas suas esferas internas, como quando se unem – ou tentam – em projetos maiores como o Mercosul. Há a necessidade de uma vivência democrática relativamente longa para que as instituições as reflitam, e esta experiência longeva é algo do qual carecem as sociedades envolvidas no processo, o qual, naturalmente, as espelha.

Corroborando com isto, Pires Ferreira (2008) assevera que a democracia e a integração assumem significados específicos no contexto mercosulino, pois os conceitos democráticos se opõem diretamente a um passado imediato, fortemente marcado, por exemplo, pelo autoritarismo dos regimes militares. Nesse sentido,

como salienta o autor, a discussão sobre democracia participativa, debatida na Europa e nos Estados Unidos desde a segunda metade dos anos 60, não parece repercutir na região. Em que pesem experiências como o Orçamento Participativo, existente desde 1986 em Porto Alegre (RS) – dentre outras cidades mercosulinas – e a emergente figura do consumidor cidadão, elemento que age diretamente sobre a dinâmica da oferta de bens e serviços públicos e privados, formas amplas de intervenção popular são relegadas a segundo plano pelas classes políticas e econômicas do Mercosul.

Portanto, lembra Pires Ferreira (2008), na ausência de pressupostos democráticos profundos, o processo integracionista mercosulino torna-se basicamente uma estratégia de desenvolvimento que a partir das necessidades impostas pela ordem econômica global, busca na constituição de mercados integrados as opções de intercâmbio comercial facilitado e o conseqüente aumento de produtividade das economias participantes. Esta estratégia pode ser vista como tendo cinco pontos básicos:

a) Inserção competitiva das economias regionais em um sistema formado por grades blocos econômicos;

b) Aumento da produtividade com o auxílio das economias de escala alcançadas;

c) Estímulo ao acompanhamento dos fluxos comerciais existentes no mercado mundial;

d) Contínua expansão para atrair as nações vizinhas que possuem planos semelhantes e;

e) O envolvimento do setor privado como principal agente econômico motivador do processo.

Nessa perspectiva, Cervo (2002) ressalta que a integração do Mercosul se apresenta de forma bastante restrita, tendo diversas limitações, não apenas de ordem político-democrática, mas pelo fato de haverem visões divergentes sobre temas centrais, bem como certa recusa em sacrificar soberania e a busca pela redução da integração assimétrica que vem caracterizando o bloco.

Outra crítica citada por Pires Ferreira (2008), refere-se ao fato de o modelo de integração regional que vem sendo mostrado para a América Latina ser

essencialmente o europeu, no entanto, apenas as diferenças sociais, econômicas e culturais entre os membros dos dois processos, bem como o tempo de efetivação destes já seriam sinais bastante claros da grande distância que os separa. Nesse sentido, seria fundamental uma reflexão se este realmente é o caminho correto para a integração latino-americana, ou deve ser buscada uma via que seja mais factível com a realidade continental, e que respeite as especificidades, tanto socioeconômicas, como as de ordem cultural.

Além dessa questão, duas variáveis de ordem política devem ser, do mesmo modo, consideradas. A primeira diz respeito ao fato de que, com exceção do Uruguai, as demais nações não completaram seus processos de consolidação democrática, o que significa que são institucionalmente frágeis e politicamente instáveis8, características resultantes das prolongadas dominações autoritárias e

agravadas pelas crises sociais e econômicas estatais, assim como pelo estilo político com que se tem historicamente governado cada um destes países. A segunda variável refere-se ao fato de, ainda que o caráter mercosulino seja intrinsecamente interestatal, os agentes civis, mesmo os diretamente afetados não possuem uma participação real no processo (PIRES FERREIRA, 2008).

Conforme destacado pelo autor, a própria dinâmica imprimida por seus agentes mais significativos, ou seja, a burocracia interestatal e os setores empresariais, revela o modo excludente da integração no Cone Sul. Percebida fundamentalmente por seu potencial de desenvolvimento econômico, ela assume uma identidade direta com a consolidação dos regimes democráticos a nível regional, entretanto, esse aprofundamento democrático não busca chamar a sociedade civil para uma efetiva participação na vida política do Estado, e por conseqüência do Mercosul.

O que Pires Ferreira (2008) nota é que o caminho até aqui trilhado pelo Mercosul aponta para uma clara ambigüidade estrutural, pois, por um lado, assume um caráter essencialmente desenvolvimentista, capitaneado pelas elites políticas e econômicas, embora o objetivo seja a construção de um mercado comum, e por

8 Até que ponto a fragilidade institucional e a instabilidade política de seus membros contaminam o Mercosul enquanto processo de integração regional é discutível pois, se por um lado o bloco se ressente, em alguma medida, da situação interna de seus integrantes, por outro, sua dimensão política é incipiente a ponto de não revelar traços claros das problemáticas nacionais, salvo quando estas se estabelecem diretamente entre dois signatários, como no caso das papeleras que envolveu Argentina e Uruguai.

outro, sua contrapartida política representada pela consolidação democrática em curso, demonstra não possuir a envergadura necessária para realizá-lo, pois limita a participação societal, algo essencial no fortalecimento do processo democrático.

Em termos operacionais, apesar de todos estes problemas, a democracia mercosulina é relativamente materializada através do Protocolo de Ushuaia (ver Anexo E), assinado na cidade argentina de mesmo nome em 24 de julho de 1998, pelos presidentes dos Estados-membro Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, e dos Estados Associados Bolívia e Chile.

Ainda que distante de representar o grau de profundidade existente nos compromissos democráticos assumidos no âmbito da União Européia, por exemplo, fica clara a disposição dos membros do bloco de afirmar um compromisso com os valores democráticos, sendo inclusive, de acordo com Madueño e Mendes (2008), estabelecido pelo referido instrumento legal uma cláusula que condiciona a existência de democracia como sendo um critério para que um país integre, ou mesmo permaneça no Mercosul, o que fica claro nos seguintes artigos do Protocolo de Ushuaia:

Art. 3º - Toda ruptura da ordem democrática em um dos Estados Partes do presente Protocolo implicará a aplicação dos procedimentos previstos nos artigos seguintes.

Art. 4º - No caso de ruptura da ordem democrática em um Estado Parte do presente Protocolo, os demais Estados Partes promoverão as consultas pertinentes entre si e com o Estado afetado.

Art. 5º - Quando as consultas mencionadas no artigo anterior resultarem infrutíferas, os demais Estados Partes do presente Protocolo, no âmbito específico dos Acordos de Integração vigentes entre eles, considerarão a natureza e o alcance das medidas a serem aplicadas, levando em conta a gravidade da situação existente. Tais medidas compreenderão desde a suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos dos respectivos processos de integração até a suspensão dos direitos e obrigações resultantes destes processos (MERCOSUL, 2008c).

O real alcance do compromisso democrático assumido no Protocolo de Ushuaia é ainda discutível, na medida em que existem percepções democráticas relativamente diferenciadas entre os membros do bloco. A despeito disso, para o Ministro das Relações Exteriores do Brasil – Celso Amorim –, a própria existência de um esforço para contemplar a democracia no Mercosul já serve de auxílio para a consolidação da democracia em seus membros mais antigos, além daqueles que

ingressara há pouco tempo, como no caso da Venezuela (MADUEÑO; MENDES, 2008).