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A função da culpa na mudança do sadismo em masoquismo

3.1 MASOQUISMO MORAL: A SOMBRA DO ÓDIO MATERNO

3.1.3 A função da culpa na mudança do sadismo em masoquismo

A culpa transforma o sadismo em masoquismo, mesmo não levando em consideração a distinção conceitual entre os dois. A culpa, portanto levará sempre ao masoquismo.

Freud (1919/1996) elucida, com primor, a função da culpa na mudança do sadismo em masoquismo no texto Uma criança é espancada. Nesse texto, Freud apresenta a função da culpa na passagem da primeira fase fálica da fantasia (uma outra criança apanha do pai, eventualmente um membro da família) à segunda fase, a fase masoquista (em que o próprio sujeito apanha do pai).

A fantasia do tempo do amor incestuoso tinha dito: ele (o pai) só ama a mim, e não a outra criança, pois é neste que ele bate. A consciência da culpa não conhece uma punição mais dura que a desordem deste triunfo: “Não, ele não lhe ama, pois ele bate em você.” Assim a fantasia da segunda fase – ter eu mesmo apanhado do pai – iria se transformar na expressão direta da consciência de culpa, que então tem base o amor pelo pai. Portanto, tornou- se masoquista na minha consciência, e sempre foi assim, cada vez que a consciência de culpa é o fator que transforma o sadismo em masoquismo. (Freud, 1919/1996, p. 204)

Esta citação isolada de seu contexto, assim como fora feito, não é representativa do pensamento de Freud, porém é mencionada por representar o sentimento que temos dessa questão. Discorremos que a culpa transforma o sadismo em masoquismo, o que será verdade se percebemos por isso que a culpa contribui com essa transformação, contudo é falso se explicamos que a culpa apenas transforma sempre o sadismo em masoquismo. Vejamos a sequência no texto de Freud (1919/1996): “Mas esse seguramente não é o conteúdo do masoquismo. A consciência de culpa não pode permanecer dona do terreno sozinha; é preciso que a moção amorosa também assuma a

abrangida no sentido genital; sob o resultado da regressão, ela se altera e passa a ser “o pai me bate” (eu apanhei do meu pai). Apanhar é agora, segundo Rosenberg (2003), um “composto de consciência de culpa e erotismo; não é mais somente a punição pela relação genital proibida, mas também o substituto regressivo desta.” (p.58) Diante disto, segundo esse autor, a essência do masoquismo não pode ser definida pela mudança do sadismo em masoquismo pela culpa – à culpa é necessário acrescentar o “erotismo”, a “moção amorosa”, e à punição, o substituto regressivo desta última, mudá-la em posição passiva com relação ao pai; isto quer dizer que haverá excitação libidinal tendendo à descarga. Retornamos à questão fundamental posta anteriormente que é a distinção entre masoquismo moral, culpa, mesmo que inconsciente, e culpa erotizada, sendo esta apenas masoquista.

Falta-nos analisar mais dois pontos: por um lado, o papel desempenhado pela culpa nesse processo; por outro lado, o produto da mudança do sadismo sob o mando de uma culpa não erotizada, não sexualizada.

Retornando para um dos textos essenciais sobre o sadismo e o masoquismo em

As pulsões e suas vicissitudes, Freud (1915/1996) explica que no par de opostos sadismo-masoquismo, o método pode ser representado como sendo primeiro o sadismo incidindo no estágio de violência ou poder sobre uma pessoa como objeto. Segundo, esse objeto é largado e substituído pelo eu do indivíduo. Retornando em direção ao eu, realiza-se também a transformação de um alvo pulsional ativo para um passivo. E terceiro, mais uma vez, uma pessoa alheia é buscada como objeto; essa pessoa tem de assumir o papel do sujeito em virtude da alteração que incidiu no alvo pulsional. Este terceiro caso é o que Freud denominou de masoquismo.

Como vimos, é apenas no terceiro ponto, com a recuperação da distinção sujeito- objeto, que versa o masoquismo. Neste momento, chamamos a atenção para o segundo

ponto no qual o sadismo que volta para a própria pessoa não é o masoquismo. Segundo Rosenberg (2003), esse é o lugar característico da culpa e a influência peculiar desta sobre o sadismo.

Esse lugar característico, essa influência peculiar é o auto-sadismo, ou seja, sadismo refletido. Nas poucas linhas mencionadas no texto As pulsões e suas

vicissitudes, Freud (1915/1996) parece nos explicar esse laço peculiar entre o auto- sadismo e a culpa. Ele mostra que na neurose obsessiva versa-se um auto-sadismo e uma autopunição, porém sem masoquismo. O mesmo expõe que não é excessivo conjecturar a existência da segunda fase pelo desempenho da pulsão sádica na neurose obsessiva. Já que ali existe um regresso em direção ao eu do sujeito sem um comportamento de passividade para com outra pessoa, ou seja, a transformação só vai até a segunda fase. Portanto, o desejo de torturar altera-se para autotortura e autopunição, não para o masoquismo. “A voz muda, não para a passiva, mas para a voz reflexiva média [trata-se de uma alusão às vozes do verbo grego].” (Freud, 1915/1996, p. 133)

Deste modo, a ligação exclusiva entre auto-sadismo e culpa pode ter uma nova formulação, esclarecendo que o auto-sadismo é a autopunição. Esta última é a culpa sob o aspecto de punição pelo próprio Superego, referindo-se ao aparelho psíquico do sujeito, enquanto o masoquismo é uma punição aplicada pelo pai edipiano, uma heteropunição.

Concluímos, a partir disto, que a culpa é a autopunição e que esta é o auto- sadismo, ambos distintos do masoquismo moral e qualquer que seja o masoquismo. O sadismo do Superego é parte complementar da culpa na equação: culpa igual a autopunição igual a autossadismo.

Neste momento, lembro de uma analisanda que casou grávida aos quatorze anos, foi morar com o pai da criança e lá o traiu para em seguida contar-lhe o que havia feito. No dia seguinte este a “devolveu” para casa dos pais, relatou os motivos pelos quais o fizeram assim agir. Aqui está agregado todo mecanismo de culpa, autopunição e autossadismo, e a analisanda a partir daí teve “que pagar um preço alto”, segundo suas próprias palavras, mas ainda longe de perceber seu ato.